Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Em nome de Deus, contra a Universal

Os telespectadores já estão acostumados com o festival de clichês no melhor estilo ‘resgate da cidadania’ ou ‘resgate da auto-estima’. Há tempos os chavões, frases prontas e palavras de efeito estão lá, nas inúmeras reportagens sobre o trabalho de ONGs camaradas ou quaisquer outras iniciativas bem-intencionadas, muito bonitas e bem organizadas, mas que na maioria das vezes não resistem à mais elementar manifestação da dura realidade na qual o povo vive, e para a qual não há boa vontade que dê jeito.

Portanto, quem viu a série de reportagens ‘Os Evangélicos’, exibida pela Rede Globo em horário nobre, do dia 26 ao dia 29 de maio, surpreendeu-se mesmo foi quando ouviu, em tom apologético, notícias como ‘metodistas salvam almas no subterrâneo’ ou ‘missionários traduzem a Bíblia para índios no Mato Grosso’ (assim, como um press release saído diretamente da assessoria de imprensa de alguma versão protestante da Companhia de Jesus).

William Bonner e Fátima Bernardes tentaram justificar a decisão da Globo de reservar espaço no Jornal Nacional para a divulgação dos trabalhos sociais de algumas igrejas evangélicas alegando que as obras da Igreja Católica já são mais conhecidas junto ao público. Seria, digamos, mais cristão admitir que a série especial de reportagens exibida de terça a sexta-feira se inscreve em um momento-chave da guerra pela primazia da audiência há tempos travada entre a emissora da família Marinho e a Rede Record, propriedade do bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus.

Os projetos e ações sociais da Universal obviamente ficaram de fora da série exibida no JN, ainda que estejam entre os maiores do Brasil. Não que sejam melhores ou piores do que os projetos e ações das igrejas escolhidas pela Globo para objeto de cobertura altamente favorável, nem tampouco que mereçam mais atenção. A bem da verdade, as oscilações recentes do Ibope – e o medo de oscilações futuras ainda maiores – dizem muito mais sobre a decisão de levar a série ao ar do que a excelência do padrão Globo de qualidade.

O interesse jornalístico por iniciativas que autodeclaradamente visam ‘contribuir para a redução do sofrimento da população através da pregação da palavra de Deus’ deveria ser balizado por princípios laicos e olhos críticos. Um jornalismo que faz jus ao nome não pode perder de vista a natureza profundamente alienante das promessas deste tipo, que tendem a desmerecer qualquer espécie de ação política transformadora em favor de um conformismo onde a realidade é um destino imutável, ‘a vontade de Deus’, para a qual o assistencialismo ora alardeado é o complemento óbvio. O conselho dado ao povo pobre é cantado em altíssimo e bom som nos templos de cada esquina: ‘segura na mão de Deus, e vai!’.

Fiéis, e fiéis telespectadores

No Jardim Botânico, entretanto, o rigor jornalístico parece ter ficado para depois dos comerciais. Costuma-se dizer que em guerra vale tudo; em guerra pela audiência, então, nem se fala. E no caso, o inimigo que chega pelos flancos é uma emissora que tem a seu favor o fato de que os programas evangélicos têm ganhado público na TV aberta, e cujo slogan atual é nada mais, nada menos do que um ameaçador ‘a caminho da liderança’.

A Record vem encostando e até ultrapassando a Globo no Ibope em horários outrora dominados com folga pela emissora carioca. E mais: na madrugada do último dia 13 de maio, pela primeira vez um programa religioso do canal da Igreja Universal deixou a uma atração ‘global’ comendo poeira. Na ocasião, o Fala que eu te escuto chegou a registrar sete pontos de audiência, contra apenas quatro do Programa do Jô. O resultado foi comemorado como histórico na sede da Record, no distrito paulistano da Barra Funda.

Além de tudo isso, a Record vem investindo pesado em um novo programa de esportes para as manhãs de domingo. A nova atração da grade, batizada de Esporte Fantástico, terá como âncora a jornalista Milena Ciribelli, que deixou a Globo após 18 anos de casa, e medirá forças no Ibope com o quase homônimo Esporte Espetacular, que até outro dia era apresentado pela própria Milena.

E a guerra não para: a série ‘Os Evangélicos’ terminou de ser exibida exatas 48 horas antes da estreia na Record do reatily show ‘A Fazenda’, visto na Globo como uma das maiores ameaças dos últimos tempos à sua hegemonia. Tanto que no Jardim Botânico se armou uma verdadeira operação de contenção para a noite do domingo (31/5), a fim de não deixar o Ibope fugir. O Fantástico foi recheado com as mais apelativas celebridades, e teve até o anúncio em rede nacional da data do casamento entre a jovem atriz ‘global’ Sthefany Brito e o ainda mais jovem futebolista, Alexandre Pato.

Vista à luz de todo este contexto, a estranha série do Jornal Nacional de quatro longas matérias rendendo loas ao trabalho social de igrejas protestantes históricas e pentecostais pode nem parecer tão estranha assim. Pelo contrário: foi até minuciosamente criteriosa, tendo em vista que a Igreja Universal se insere em uma outra estirpe de seitas, a neopentecostal. Logo na primeira reportagem, um dos focos foi a Assembleia de Deus. Com 8,5 milhões de fiéis espalhados por todo o país, a seita que abriu o desfile dos evangélicos que a Globo gosta é também a maior concorrente não-católica dos templos de Edir Macedo, que reúnem cerca de 5,5 milhões de membros, e subindo.

Nesta guerra nada santa por fiéis, e por fiéis telespectadores, é o público quem paga seus pecados, ali mesmo, na frente da TV.

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