Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Em redação só passa fome quem quer

Diariamente, linotipistas, paginadores, impressores e jornalistas paravam as máquinas para o jantar gratuito, servido às 20h: arroz, feijão e frango, às vezes com farofa, charque e salada. Assim era o Correio da Imprensa, de Cuiabá (MT), nos idos de 1976 e 1977. Durante uns 40 minutos, o proprietário, J. Maia de Andrade, e o redator-chefe, Ronaldo de Arruda Castro, montavam o seu confessionário numa sala 4 x 4m e recebiam os funcionários. Marmita na mão, eles comentavam o rendimento, expunham problemas familiares, pediam vales e contavam piadas. Já extinto, o aguerrido Correio foi um dos primeiros clientes da Agência JB, ainda na ditadura militar. Fechava suas edições por volta de 1h30 ou 2 da madrugada.

Nunca soube de uma redação distante de um boteco ou de restaurante. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, os grandes jornais têm restaurantes próprios. Em épocas distintas, vi freqüentadores ilustres do Bar Sujinho, na Alameda Barão de Limeira, ao lado da Folha de S.Paulo: Assis Ângelo, Tarso de Castro, José Roberto Alencar, Fernando Fernandes Barros, Luigi Mathiuzo, Lourenço Diaféria, Celso Sávio, Nelson Maenaka, Milton Tuna Mateus, Luiz Salgado Ribeiro, e tantos outros. Também nunca ouvi relatos sobre vendedores de salgados, sucos, roupas, bijuterias, calçados e quinquilharias em geral sendo barrados nas portarias de jornais.

Sempre que encerrava a impressão de O Estado do Maranhão, seu Emílio banhava-se, ia para casa e, de manhãzinha, já atendia no balcão de uma pequena cantina instalada ao lado da redação do jornal de José Sarney, perto da Lagoa da Jansen, no Bairro São Francisco. Em 1987, ele servia caldo de sururu (Mytella falcata), um molusco lamelibranquido da família dos militídeos – nome complicado para pescadores e para os leitores deste relato.

Folguinha do tacacá

Existe sururu de capote (ainda com a casca) e o dispinicado (já tratado, sem casca, pronto para a panela). O bicho prolifera nas partes mais rasas das lagoas, dentro da lama, e vive em colônias numerosas. Cresce, engorda e sobrevive de acordo com o teor de salinidade da água, que não deve ser nem muito doce, nem muito salgada. Além do caldo, seu Emílio emprestava dinheiro a juros a funcionários necessitados.

Nos anos 70, em Porto Velho (RO), vendedoras de tacacá, açaí e cupuaçu trabalhavam próximas aos extintos A Tribuna e O Guaporé. O progresso obrigou-as a migrar para diferentes pontos da cidade. Hoje, elas mantêm uma vasta clientela perto do Diário da Amazônia, no Bairro São Cristóvão, e no Setor Industrial, onde ficam o quase nonagenário Alto Madeira e o decano O Estadão do Norte. Não se considera o tacacá uma refeição. Está mais para sopa, servida em cuias. Depois de beber essa mistura de goma de tapioca cozida, tucupi, jambu, camarão seco e pimenta-de-cheiro – sempre após as 16h –, os jornalistas retornam à redação suados, mas com energia. Assim também ocorre em Manaus, Belém, Macapá e Rio Branco.

Em O Rio Branco (ex-Diários Associados em Rio Branco-AC), a redação inteira costumava debandar, por volta das 15h. Jornalistas, diagramadores, gráficos, office-boys e até as telefonistas tiravam uma folguinha para ir tomar o tradicional tacacá da Base (bairro localizado às margens do Rio Acre), conta o jornalista acreano Chico Araújo, que trabalhou lá e n’O Estado de S.Paulo. ‘Quem não ia para esse estabelecimento, optava pela lanchonete da esquina do jornal, degustando a tradicional saltenha (espécie de pastel boliviano, com farinha de trigo e recheio de carne ou frango). Ou pelo Bar do Zé do Buraco, que preparava caldos, vaca atolada, peixe frito, caipirinhas, entre outras iguarias.

A mulherada em cima

Jota Oliveira, ex-editor regional e de Agropecuária da Folha de Londrina (PR), recorda os áureos tempos da comilança, marcados pela criação do ‘Programa de Alimentação do Povo da Folha’ (Papof), no início dos anos 90. Um restaurante estreito atendia pelo sistema de tíquetes descontados mensalmente no salário. Bem antes do Papof se tornar famoso, durante os anos 70 e 80, os campeões de venda foram os pães caseiros. ‘Entre outros, Marta de Oliveira e Marginal (funcionários da casa) ofertavam diversos tipos de pães. Dalva Barbosa, que fazia frilas para o jornal, fornecia salgadinhos diet e assemelhados’, lembra Jota.

O delivery (entrega em domicílio) já fazia sucesso naquele período. Funcionava com sanduíches, saladas, massas, grelhados e sobremesas. Jota classifica os vendedores desse sistema de ‘fornecedores externos’. ‘Atendiam por telefone numa rapidez impressionante, na verdade, com horário marcado. O chefe de Redação, Valmor Macarini, fazia dieta macrobiótica. Então, a gente pedia comida ou salgadinhos leves e depois saía para os botecos’, ele explica.

A outra ponta da venda era ocupada por vendedoras de cosméticos. ‘Algumas meninas da Redação levavam roupas (brim, tergal, lingerie) e perfumes para vender a si próprias. Promotoras de vendas de cosméticos e peças íntimas faziam freqüentes exibições dos produtos. A mulherada caía em cima, porque os preços eram sempre bons’, lembra Jota. ‘Na Folha se vendia de tudo, menos apostas no imperial jogo do bicho. Apostávamos no Bar do Lema (o Bar do Jorge japonês), na Praça 1º de Maio (da Concha Acústica)’, recorda o jornalista Creso Moraes, que trabalhou no jornal no início da década de 70.

Pão de queijo

Desde 2004, em O Diário do Norte do Paraná (Maringá), a catarinense Dayse Hess leva à redação doces, chocolates e pirulitos. A banca improvisada na mesa da jornalista ganhou do editor de esportes, Cláudio Viola, o apelido de ‘Doces da doce Dayse’. Em Foz do Iguaçu, vendedores de queijo, mel e verdura vendem por encomenda. As mulheres paraguaias levam chipas (biscoito de polvilho) na porta dos jornais e sucursais. Muito conhecida em Foz, dona Carmen, de Presidente Franco (ao lado de Ciudad del Este), já traficou papagaios recém-nascidos, junto com suas chipas e verduras.

Na capital do país, o editor de Cidades do Jornal de Brasília, José Luiz de Oliveira, mineiro de Arapuá, começou no ano passado a vender saborosos panificados em seu mesão. Tem até caderneta de fiado, tradição secular brasileira. A banca abastecida pela irmã dele funciona das 15h às 20h, prolongando-se nos raros dias em que sobra mercadoria. Do mais graduado editor ao mais humilde funcionário, Zé Luiz atende a todos com distinção. Recentemente, o empresário Fernando Câmara, um dos diretores da empresa, provou das iguarias.

Obviamente, pão de queijo nunca falta. Jornalistas já lhe reivindicam o funcionamento aos domingos, dia em que não há cafezinho na casa e as jornadas são estafantes. No mesmo jornal, às quartas e quintas-feiras, a diagramadora Fátima Moraes ‘socorre’ os jornalistas com temperadas empadinhas de frango, brócolis, queijo e tomate. Serve refrigerantes de brinde e aceita encomendas para os fins de semana.

Em redação – ou adjacências – passa fome quem quer.

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Redator de Cidades no Jornal de Brasília, trabalhou em Rondônia, Mato Grosso, Amazonas, Maranhão, interior paulista, norte do Paraná e na fronteira com o Paraguai e a Argentina