Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Em respeito ao repórter

Dois anos depois do assassinato de nosso saudoso Tim Lopes, ele não merecia ser usado em disputas eleitorais. O texto de Mário Augusto Jakobskind [veja remissão abaixo] mereceria apenas desprezo, mas, em respeito ao Tim, não posso deixar de voltar a prestar esclarecimento aos leitores deste Observatório. A essa altura da vida, de uma coisa eu tenho pouca dúvida: a memória é curta e, quando apenas se ignora uma mentira, na suposição de que a verdade está bem estabelecida, corre-se sempre o risco de ver uma tomar o lugar da outra. Vamos então aos fatos:

.1.

Cristina Guimarães, enquanto era funcionária da TV Globo, jamais solicitou segurança particular à emissora ou se disse ameaçada. Em 12 de novembro de 2001, três meses após a exibição da reportagem ‘Feirão das Drogas’, no Jornal Nacional, ela enviou um e-mail ao diretor da Central Globo de Jornalismo (CGJ), Carlos Henrique Schroder, dizendo-se ameaçada e pedindo segurança. Schroder solicitou a mim, diretor-executivo de jornalismo da CGJ, e a Cesar Seabra, então editor regional do Rio, que providenciássemos a segurança, como é praxe. Schroder foi então informado de que ela estava em licença médica. No mesmo dia, procurou-se entrar em contato com a jornalista, mas soube-se que, desde quatro dias antes – 8 de novembro –, ela, sem nenhum aviso prévio a seus colegas de trabalho ou à sua chefia imediata, decidiu entrar na Justiça contra a TV Globo, solicitando a rescisão indireta de seu contrato de trabalho, segurança pessoal e pagamento de vantagens trabalhistas.

Antes que a emissora pudesse falar com Cristina, a Justiça concedeu à repórter, liminarmente, apenas o desligamento unilateral da empresa, e indeferiu todos os demais pontos. Com a funcionária desligada da empresa, a TV Globo estava impedida, portanto, de lhe fornecer segurança privada. Mas, imediatamente, entrou em contato com o então secretário de Segurança Pública, Josias Quintal, solicitando que a Polícia tomasse as providências para protegê-la. Fez isso por telefone e, ao longo dos meses, em dois ofícios por escrito encaminhado ao secretário.

Na ação, Cristina, entre outras coisas, alegou que fora obrigada a fazer a referida reportagem, que a expôs a riscos extremados, sem que a TV Globo lhe oferecesse segurança pessoal. A jornalista usou um suposto seqüestro de um funcionário do departamento de esporte como fato motivador para entrar na Justiça. O argumento dela era o seguinte: um funcionário fora seqüestrado para que revelasse o nome dos autores de ‘Feirão das Drogas’ e, mesmo assim, a emissora não ofereceu segurança aos jornalistas envolvidos na reportagem. Sobre este suposto seqüestro, falarei no item 2.

Após a morte de Tim, Cristina, em entrevistas à imprensa, passou a acusar, ainda mais fortemente, a TV Globo de negligência. Em todas as ocasiões, a TV Globo se defendeu. Nunca se furtou a oferecer segurança a seus funcionários. A título de exemplo: apenas no ano de 2001, ano da reportagem de Tim, 22 funcionários do Rio e 15 de São Paulo tiveram segurança privada, 24 horas por dia, em média de 30 dias por pessoa. Esta é a praxe da TV Globo.

Vitória da verdade

Uma vez tendo tomado conhecimento da ação judicial, a TV Globo levou à Justiça todas as provas materiais e testemunhais de que dispunha para atestar a sua boa conduta:

a) jamais obrigou jornalista ou qualquer outro profissional a fazer reportagens de risco;

b) jamais foi informada por Cristina Guimarães sobre seus temores, pois, como fez com os outros jornalistas, teria tentado acalmá-la, repassando as informações da polícia sobre o suposto seqüestro do funcionário do Esporte; e, se os temores persistissem, teria oferecido segurança privada, como é praxe na emissora.

A Justiça indeferiu todos os pedidos de Cristina Guimarães. Diz, entre outras coisas, a juíza do Trabalho Juliana Ribeiro Castello Brando em sua decisão:

‘Também declararam as testemunhas da ré que a repórter pode se recusar a fazer a matéria, sem que sofra punição por isso. A própria reclamante deixou claro que é possível a recusa por parte do empregado, quando declarou que o motoqueiro ‘sr. Pereira’ se recusou a acompanhá-la para fazer a reportagem e foi substituído por outro.’

Em outro trecho, diz a juíza:

‘Ou seja, não houve descumprimentos por parte do empregador de medidas de segurança, mas sim um risco integrante do próprio trabalho de jornalismo investigativo desenvolvido pela empregada, e do qual ela sempre teve ciência, ao longo de todo o contrato de trabalho. Tivesse a TV Globo exigido algo além do que a empregada sempre fez, expondo-a a perigo imprevisível, poderia-se pensar na configuração de justa causa do empregador.

‘Contudo, não era esta a realidade vivenciada pela reclamante. Tanto que a testemunha T. [a abreviação do nome é minha], seu companheiro de equipe, declarou que a pauta pode ser recusada caso o jornalista `entenda seja insegura ou inviável jornalísticamente ou fisicamente impossível´. Essa recusa ficava, pois, a critério exclusivo do profissional, não da empresa. Não por acaso a própria reclamante, em outra oportunidade, se recusou a realizar uma matéria, que entendeu ser perigosa, conforme consta de seu depoimento pessoal [destaque meu]’.

É uma decisão da Justiça que deixou a TV Globo, sempre consciente de seus deveres, certa de que a verdade sempre vence. Cristina Guimarães interpôs recurso ordinário contra a sentença, mas o Tribunal apenas mudou a sentença para acolher o pagamento de salário substituição, mantendo todo o resto da decisão, a favor da Globo. Cristina já interpôs embargos de declaração e recurso de revista, que aguardam julgamento.

.2.

Um funcionário do departamento de esportes da TV Globo desapareceu na sexta-feira, 16 de agosto de 2002. Vou omitir o nome dele para não prejudicar o seu processo de recuperação. Era a terceira vez que ele desaparecia, sem dar notícias. Na primeira, faltou a um plantão de fim de semana e, quando reapareceu, disse que passara o fim de semana negociando, com sucesso, a libertação do pai, seqüestrado após um assalto. O funcionário jamais apresentou provas do seqüestro do pai e, na época, alegou que decidira não registrar queixa à polícia.

Na segunda vez em que desapareceu, também num fim de semana de plantão, o funcionário contou história diferente, ao reaparecer: teria sido ele próprio seqüestrado por traficantes da Rocinha, interessados em saber os nomes dos autores da reportagem ‘Feirão da Droga’, nomes que sempre foram públicos. O caso foi registrado na 15ª DP. Investigações da polícia davam conta de que tudo levava a crer que o seqüestro de fato jamais existira. Mesmo assim, a TV Globo forneceu segurança privada, 24 horas por dia, ao funcionário do esporte por 44 dias. Só suspendeu o serviço, a pedido do funcionário, com o apoio da polícia.

À época, mesmo informada de que o seqüestro fora uma fraude, a emissora preservou a imagem de seu funcionário, deixando de tornar pública as informações da polícia, por entender que ele agira daquela forma por problemas ligados a drogas. Mas, aos funcionários envolvidos na reportagem ‘Feirão das Drogas’, informou tudo o que se passava. Por esta razão, eles consideraram desnecessário que fossem adotadas medidas de segurança fora da rotina. Na ocasião, Cristina Guimarães estava em licença médica.

No dia 16 de agosto de 2002, o funcionário desapareceu novamente. Apesar das suspeitas da polícia de que, mais uma vez, tudo não passava de fraude, a TV Globo noticiou o desaparecimento do funcionário, informando que ele era o mesmo funcionário que alegara ter sido seqüestrado tempos atrás. O desaparecimento durou 9 dias. A polícia do Rio empenhou-se ao máximo para desvendar o caso. No dia 22 de agosto de 2002, Cristina Guimarães, mesmo já informada dos problemas de saúde do funcionário, declarou à TV Record que o último desaparecimento dele era esperado e que fazia parte das represálias que traficantes de drogas fariam contra os autores da reportagem: ‘Não vai parar nisso. Um a um, vão todos sumir’, disse a jornalista.

Inquérito arquivado

No dia 25 de agosto, o funcionário do esporte reapareceu, contando novamente a versão segundo a qual fora seqüestrado por traficantes da Rocinha, desejosos de saber os nomes dos autores da reportagem ‘Feirão das Drogas’. Ocorre que, àquela altura, a polícia já tinha provas documentais e testemunhais demonstrando que, na verdade, o funcionário esteve, por conta própria, hospedado em hotéis e motéis do Rio, tendo inclusive contratado a companhia de terceiros. Rastreamento em caixas eletrônicos, dotadas de câmeras de vigilância, tornaram possível reconstituir todos os passos do funcionário, assim como descobrir em que companhias ele andava. Depoimentos de porteiros de motéis, recibos de cartão de créditos assinados por ele, tudo provava com enorme documentação que os seqüestros foram uma fraude. No reaparecimento do funcionário, a TV Globo exibiu reportagem sobre o assunto, omitindo os detalhes mais sórdidos para preservar a imagem do funcionário, por entender que ele era um homem doente. Mas não se furtou de pedir desculpas à polícia pelos transtornos que causou.

A TV Globo entendeu como gravíssima a conduta do funcionário, que trouxe intranqüilidade aos seus colegas de trabalho e levou a polícia a usar preciosos recursos para elucidar um crime que não houve. Por outro lado, a TV Globo entendeu que o funcionário, como milhares de pessoas, é vítima, de algum modo, do tráfico de drogas, que leva a pessoa a ultrapassar os limites da razão, destruindo laços com a família e com o trabalho. Por esse motivo, a TV Globo auxiliou-o em sua recuperação, até o ponto em que ele demonstrou estar disposto a se reerguer. A empresa custeou o tratamento dele por seis meses e pagou integralmente seu salário. Quando recebeu alta, foi, por decisão consensual, desligado da empresa. O funcionário respondeu a inquérito policial por comunicação de falso crime. Como prevê a lei, o inquérito foi arquivado quando o funcionário se dispôs a pagar multa e a não reincidir no crime. Hoje, ao que tudo indica recuperado, ele reconstrói a vida em outra atividade.

Todos esses fatos foram comunicados às entidades de classe, que acompanhavam o desenrolar dos fatos.

.3.

Desde o primeiro instante, a TV Globo foi transparente em relação a todos os episódios que culminaram no brutal assassinato de Tim Lopes. Tudo foi informado à polícia, às entidades de classe e à população em geral. Os jornalistas de todos os órgãos de imprensa do país acompanharam o caso com empenho e não descansaram até que o bando que assassinou Tim estivesse preso. Os jornalistas, de todas as empresas, uniram-se para que o caso fosse esclarecido. Com empenho. Com garra. E com sucesso. Os assassinos de Tim estão presos, à espera de uma condenação que certamente virá.

.4.

Em relação ao ‘turista de Cuiabá’, os esclarecimentos já foram dados à época à polícia, às entidades de classe e aos jornalistas que de perto acompanharam o assunto. Mário Augusto Jakobskind, se quisesse, teria tido acesso também à mesma informação. De fato, em minha participação no Observatório da Imprensa, na TVE, nos dias que se seguiram ao assassinato de Tim, eu mencionei a existência do tal turista. Ao me encaminhar para os estúdios da TVE, chegou-nos a informação de que um turista teria visto o momento em que Tim fora capturado pelos bandidos. Nossa orientação foi gravar com ele uma entrevista. Nos estúdios, eu dei essa informação. No dia seguinte, como de praxe, checamos a veracidade do que dissera o turista. Tudo o que ele disse não se pôde comprovar: ele mentiu em relação ao hotel em que se hospedara, deu uma descrição sobre a Vila Cruzeiro que nada tinha com a realidade e, mais grave, errou totalmente na descrição da roupa que Tim usava na ocasião. Era apenas mais um, entre tantos, em busca de 15 minutos de fama. O fato, à época, foi comunicado à polícia e às entidades de classe.

Desde o primeiro instante em que pisei na TV Globo tive um relacionamento especial com Tim, de que os e-mails que pude guardar são testemunhas. Nunca escondi dele a admiração que tinha pelo trabalho que ele sempre realizou na imprensa, como um jornalista que verdadeiramente amava a profissão e tinha orgulho dela. Tim era acima de tudo um repórter, um grande repórter, um repórter apaixonado. Dedicava-se, às vezes, meses inteiros para conseguir realizar o que queria. Quando conseguia, abria um sorriso tão verdadeiro que jamais esquecerei.

O assassinato de Tim foi o acontecimento mais traumático da minha geração. Sei que todos que o conheceram guardam no peito uma dor que não passa. Meus pensamentos sempre estão com a família de Tim, o filho, a mãe, os irmãos, cujo sofrimento, intenso, dolorido, merece mais do que solidariedade, respeito. É preciso não esquecer isso nunca. Mesmo nas inevitáveis e legítimas disputas eleitorais.

Nossos pensamentos estão também, sempre, com a viúva de Tim, a despeito das afirmações disparatadas de seu advogado que, é preciso que se diga, representa somente ela e não o filho, a mãe e os irmãos de Tim.

Tim foi um mártir na estrita acepção da palavra. Um mártir da busca da verdade, da busca da informação correta. Foi por isso que tentei ser o mais exato, o mais detalhista. Mesmo a custa de repetir informações já conhecidas por muitos.

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Diretor-executivo de Jornalismo da TV Globo