Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Entreguismo, nacionalismo e manipulação midiática

A grande mídia está construindo perfil nacionalista para caracterizar ideologicamente o presidente do Banco Central da Argentina, Martín Redrado, enquanto o seu oposto, ou seja, a presidente Cristina Kirchner, seria anti-nacionalista, contrária aos interesses populares, em relação à questão das transferências das reservas cambiais para fundo financeiro governamental bicentenário, criado para pagar dívida externa, aliviando recursos orçamentários, e promover investimentos internos, descartando, claro, elevação dos impostos. Destituído do cargo por Cristina K. mediante medida provisória, por resistir à demissão, e restituído ao cargo pela juíza Maria José Sarmiento, sob argumento de que a titular da Casa Rosada agiu de forma inconstitucional, pois a palavra final sobre a questão deve ser dada pelo Congresso, Redrado consegue criar representação de mocinho, enquanto a comandante do poder fica com a pecha de bandida.

O titular do BC portenho vende, com a ajuda fundamental do poder midiático, a idéia de que protege o patrimônio público. Já Cristina K. agiria em sentido contrário, tentando torrar as economias populares e não realizar algo que, no Brasil, também o presidente Lula tenta implementar, ou seja, fundo de investimento público que liquida dívidas e abre espaço aos investimentos públicos.

Dólar podre paga dívida podre

A teoria midiática, na prática, é outra. O que Redrado quer é simples e, na verdade, anti-nacionalista. As reservas cambiais têm que ficar paradas no BC, rendendo nada, enquanto o pagamento dos juros teria que ser feito não com elas, mas com recursos orçamentários. Cristina não quer jogar os recursos da arrecadação tributária no pagamento do serviço da dívida para que sobre mais para investimentos produtivos que resultam, claro, em arrecadação e mais investimentos etc. Ao jogar as reservas para pagar dívidas no Fundo Centenário, criado recentemente, a presidente as utilizaria para evitar cobrar mais impostos da população. Essa alternativa se torna inevitável, se tiver que pagar a dívida não com as reservas em dólares candidatos à desvalorização na grande crise global, mas com ingressos tributários. A inversão dos propósitos midiáticos fica clara. Ou não?

Os dólares acumulados e em processo de depreciação acelerada, por conta dos déficits públicos americanos explosivos aprofundados na grande crise global, provocam, para quem os detém, prejuízos crescentes. Não é outra a motivação, por exemplo, dos chineses de caírem fora da moeda americana, trocando tal ativo desvalorizado por outros ativos mais valorizados, especialmente, nos países emergentes – Brasil, Argentina, Venezuela etc. Cristina K., portanto, quer que esses ativos desvalorizados paguem as dívidas antes que tal desvalorização cambial torne o montante de dólar acumulado insuficiente para liquidar seus papagaios externos. Vale dizer, a titular da Casa Rosada atua com inteligência e não como vendilhona da pátria, como tenta fazer crer Redrado, apoiado pela grande mídia. Dólar em desvalorização acelerada pagaria dívida em dólar candidata à valorização sob juros internos altos.

Todos já sabem o óbvio: as reservas cambiais em dólar se transformam, paulatinamente, em mau negócio. Se, com elas, os governos da periferia continuarem comprando títulos da dívida pública interna dos países ricos, o resultado será tiro no pé. A taxa de juros nos Estados Unidos e na Europa está na casa do zero ou negativa, para não explodir o endividamento governamental, acelerado como estratégia política capaz de salvar o capitalismo da bancarrota financeira.

Inversão dos fatos

Se as reservas não forem aplicadas em títulos governamentais no exterior, ficando imobilizadas, sem aplicação, internamente, nos cofres dos bancos centrais, o prejuízo acontece da mesma forma. Afinal, os juros internos, como é o caso brasileiro, por exemplo, estão na casa dos 8,75% ao ano. Na Argentina, em torno de 5%. Ou seja, não se recebe nada para aplicar no exterior e pagam-se juros positivos/extorsivos para dinheiro parado nos cofres do Banco Central. Essa foi a exigência do Consenso de Washington dos anos de 1980 em diante, depois da crise financeira do dólar que levou os Estados Unidos a aumentarem brutalmente os juros e quebrarem, consequentemente, os países endividados.

Se se pega essa grana das reservas e aplica em desenvolvimento interno, dando utilidade ao que está se caracterizando como inútil ou a utiliza para liquidar papagaio, a indagação passa a ser: quem está, realmente, protegendo o interesse público, Cristina ou Redrado?

O comportamento dos investidores internacionais não deixa dúvida. Deslocam-se com seus dólares desvalorizados do capitalismo cêntrico, onde estão sob a eutanásia do rentista, para a periferia capitalista, onde os juros estão positivos, para engordar as reservas nacionais, nos Bancos Centrais, onde ficaram paradas, pois, pelo conceito de reservas internacionais em poder dos BCs, sua aplicação não se pode dar no interior das economias nacionais, mas no exterior delas. A grande mídia não questiona esse princípio religioso neoliberal como se fosse verdade eterna.

Coloca-se, dessa forma, dinheiro nas mãos do governo, mas se proíbe dar-lhe utilidade, senão no sentido estabelecido pelas regras internacionais, ditadas, naturalmente, pelos países ricos. Cristina K. tenta romper com essa regra e, naturalmente, recebe carga de chumbo grosso, transformando-se em bandida, enquanto o verdadeiro bandido, a serviço do pensamento neoliberal, que criou o conceito de reservas nos BCs, sai ileso como mocinho, herói nacional.

As palavras e o pensamento

Na prática, ocorre algo ainda pior para as economias nacionais periféricas: os dólares que entram para formar as reservas sobrevalorizam as moedas locais, detonando, consequentemente, o poder competitivo das economias receptoras da moeda que caminha para se transformar em papel pintado, no compasso dos explosivos déficits americanos. Dançam as exportações.

Grande favor para os chineses que, com o yuan desvalorizado, estão exportando horrores para todos os lados, abrindo espaço para a supremacia comercial da China no século 21.

O jogo de Redrado é manjado e deve ser lido pelo avesso. As palavras, freudianamente, servem para esconder o pensamento. Viva Freud, que ajuda a desnudar motivações ocultas da grande mídia, aliada do neoliberalismo que comanda o BC argentino.

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Jornalista, Brasília, DF