Tem tradição no Brasil um certo deslumbramento da mídia com ações policiais violentas, desde que em territórios habitados por pobres. Vem de longe a relação promíscua da imprensa brasileira com a polícia, que até por motivos operacionais era praticamente a única fonte de informação dos repórteres – não por acaso chamados ‘de polícia’, denominação que desagradava tanto um deles, Jorge Antônio Barros, que o levou a criar, em 2005, um blogue chamado ‘Repórter de Crime‘.
E não se suponha que a troca de figurinhas se dava apenas entre policiais e jornalistas reacionários, ligados ao poder, sobretudo durante a ditadura (em 1968 conheci alguns, do O Globo, do O Dia, da falecida A Notícia, que andavam armados e entravam na Secretaria de Segurança Pública com a mesma desenvoltura com que o faziam nos jornais onde trabalhavam; como se um fosse extensão da outra). Não, a fascinação por relatos policiais contaminava igualmente gente que fazia oposição ao regime.
Como na longa entrevista feita na segunda metade dos anos 1970 pelo saudoso Octávio Ribeiro, o Pena Branca, e pelo cartunista Jaguar, com Sivuca, assim apresentado pelo primeiro: ‘José Guilherme Godinho Ferreira, uma massa de músculos de 1m90 e muitos quilômetros de valentia (….), um ‘cana dura’, estimado pelos colegas novatos e veteranos da polícia carioca, superestimado pelos bandidos, que sempre evitam atuar em sua jurisdição: Madureira e adjacências.’ A entrevista faz parte do livro Barra pesada, publicado em 1977 pela Codecri, a editora do Pasquim.
Da Polícia Especial e do Esquadrão da Morte à Assembleia Legislativa
Quem é Sivuca?
Notícia relativamente recente (fevereiro de 2008) publicada no Dia e encontrada na internet reza o seguinte:
‘A Assembléia Legislativa do Estado do Rio (Alerj) exonerou dois funcionários acusados de aliciamento ‒ um deles, filho do ex-deputado estadual José Guilherme Godinho, o Sivuca ‒ e adotou regras mais rígidas para a concessão do auxílio-educação [….]. Renato [Sivuca Ferreira] é filho do ex-deputado Sivuca, famoso por usar o bordão ‘Bandido bom é bandido morto’. Na década de 1970, foi apontado como um dos fundadores da Scuderie Le Cocq, um grupo de detetives da Polícia Civil dos mais temidos pela criminalidade do Rio de Janeiro, por sua atuação violenta e por suas ligações políticas.’
A Scuderie Le Cocq foi criada na década de 1960 para ‘vingar’ o assassinato do detetive Milton Le Cocq de Oliveira pelo bandido Manuel Moreira, o Cara de Cavalo. Usava as iniciais ‘E.M.’ em seu brasão, que os associados podiam colar, sob a forma de adesivo, no para-brisa do carro. Achavam que essa insígnia afugentava assaltantes ou ladrões de automóveis. Segundo Sivuca, a abreviatura não significava Esquadrão da Morte, e sim ‘Esquadrão dos Motociclistas’, que ele e Le Cocq haviam sido na Polícia Especial, criada durante o Estado Novo. Mas em cartazes deixados em locais de ‘desova’, como ilustra foto no livro, a sigla aparece embaixo de uma caveira com as tíbias cruzadas.
Sivuca descreve assim o grupo, na ocasião da entrevista:
‘A Scuderie Le Cocq tá tranquila, muito bem organizada. Existem cerca de 2.500 sócios, entre eles policiais, jornalistas, médicos, advogados, militares e outros profissionais liberais. A Scuderie foi criada para perpetuar a memória de Le Cocq. O presidente era o Euclides Nascimento e o jornalista David Nasser é o presidente de honra. Ele era muito amigo de Le Cocq.’
Convém lembrar que os esquadrões da morte se espalharam por vários estados e se ligaram a atividades como proteção a bicheiros e traficantes, roubo de carros, falsificação de documentos e venda de armas. Participaram, também, da repressão política durante a ditadura, especialmente em São Paulo. Geraram, no Rio de Janeiro, as atuais milícias.
Eliminação…
Os entrevistadores questionam em alguns momentos os métodos da polícia, mas o tom geral é amistoso. Octávio Ribeiro e Jaguar mostram-se mais interessados em extrair do interlocutor histórias espetaculosas, e também informações relevantes, como nas seguintes passagens, ilustrativas de um padrão de selvageria que é antiga marca registrada da polícia na cidade e no estado do Rio de Janeiro:
‘Octávio ‒ Qual foi o primeiro bandido que você matou num tiroteio?
Sivuca ‒ Não posso determinar quem matou o primeiro bandido num tiroteio. Nosso grupo se defendia a todo vapor. Todo mundo atirava.’
Em outra passagem:
‘Sivuca ‒ Pior. Quebramos o pau no Estado do Rio [o antigo, anterior à fusão com a então Guanabara, ocorrida em 1975]. Matamos os marginais que resistiram e prendemos os que esconderam Cara de Cavalo.’
… pancadaria e…
O entrevistado menciona também pancadas que distribuía. Relata o caso de um bandido que o enganou e comoveu fazendo-se passar por trabalhador e pai de família: ‘Apanhou porque mexeu com o que há de mais puro, que são os meus sentimentos’.
…tortura
A tortura não é omitida.
‘Sivuca ‒ [….] Colocamos dois marginais no xadrez, o outro foi pro setor de Roubos e Furtos. Ficou pelado durante o interrogatório. Le Cocq achava muito importante tirar a roupa do assaltante. Motivo: abate moralmente, torna-o uma presa mais fácil através de um interrogatório razoável.
Octávio ‒ Diga o grau de um interrogatório razoável.
Sivuca ‒ É razoável porque não temos uma polícia científica, temos uma polícia empírica. O interrogatório razoável é aquele em que você não utiliza meios científicos. Tratando-se de marginais, de vez em quando tem que dar um cascudo que é pra ele se lembrar de que não tá sendo tratado como uma pessoa decente. Tem que haver uma distinção entre o interrogatório de um trabalhador e o de um assaltante. Se os dois forem feitos da mesma maneira nós estaremos sendo injustos com o trabalhador. Esta é a razão por que, em algumas ocasiões, o marginal necessita de levar uns cascudos.
Octávio ‒ E o pau-de-arara, Sivuca? É razoável ou científico?
Sivuca ‒ Você não sabe, irmãozinho? Eu conto. É um pau mais ou menos deste tamanho (abre os braços). E aí… uma arara fica andando pra cá e pra lá em cima do pau. (Imita com dois dedos o movimento de duas perninhas de arara.) É por isso que chama de pau-de-arara.
Jaguar ‒ Então tá. Continua a história do crioulo nu e cheirando a barata.’
‘Interrogatório científico’
Outra passagem sobre tortura:
‘Jaguar ‒ Como descobriram que foi Tião Medonho o autor do assalto ao Trem Pagador?
Sivuca ‒ O delegado Amil Ney Rachid, do Estado do Rio, levantou que um sujeito chamado Miguel Gordinho tava envolvido no assalto. Este delegado pediu a colaboração de Perpétuo [delegado da polícia carioca], que manjava muito o Morro da Mangueira. Ele prendeu o Miguel Gordinho na Mangueira. Foi levado pro Alto da Boa Vista, com o coronel Ardovino [Barbosa, depois deputado estadual; era ligado a Carlos Lacerda]. O sujeito foi submetido a um interrogatório científico.
Octávio ‒ Como é essa ciência?
Sivuca ‒ Interrogatório científico é um eufemismo, entendem? É apenas uma gíria policial. Deixo a critério da cada um. Cada um interpreta como quiser, entendem? Foi assim que se iniciou o levantamento do caso.
Octávio ‒ Desculpe a insistência. Não vai ‘sinvucar’ [corruptela que deu origem ao apelido do delegado]. Mas esse tal interrogatório científico tem alguma coisa a ver com choque elétrico?
Sivuca ‒ Isto não sei. Que eu saiba o choque elétrico é usado no hospício. [….]’
O ‘cemitério’ do Rio Guandu
‘Octávio ‒ Falando em Rio Guandu, quem matou quem?
Sivuca ‒ Muita gente matou e morreu. Bandido tombou bandido. Talvez existam maus policiais matando também.
Jaguar ‒ O Guandu não é um dos cemitérios do chamado ‘Esquadrão da Morte’?
Sivuca ‒ Quando se fala no tal ‘Esquadrão da Morte’, liga-se logo à polícia. Não concordo. Ninguém pode provar que são realmente policiais que jogam cadáveres de marginais naquele rio. Desconheço isso, irmãozinho. Sei apenas que existem grupos de contrabandistas, contraventores e todo tipo de bandido matando por aí. Os mortos são abandonados no Guandu, entendem? Não trazem letreiro com nomes de seus matadores, né?
Jaguar ‒ Os matadores são todos bandidos?
Sivuca ‒ É fácil matar alguém na Baixada [Fluminense]. Ali impera a violência. Muita gente se locupleta com a Lei do Cão. Mata e joga no rio. A culpa sempre recai na polícia…
Octávio ‒ Tá bom, Sivuca. O matador é invisível. O morto sempre era irrecuperável. A correnteza lava todas as pistas, né?
Sivuca ‒ É opinião sua, irmãozinho. Cada um na sua. Não tenho a mínima preocupação. Nunca participei destas mortes. Continuo insistindo: apesar de agora entender que bandido é recuperável, se ele reagir mando brasa. Isto é assegurado pelo próprio Código Penal: legítima defesa putativa, estrito cumprimento do dever legal, exercício regular de direito, estado de necessidade. Sou contra a matança a sangue-frio. Todo mundo tem direito a uma defesa.
[….]
Jaguar ‒ O policial Vianinha realmente é matador?
Sivuca ‒ Não sei, irmãozinho. Nada tá provado contra ele. Sempre foi um bom policial.
Jaguar ‒ Quantos bandidos você já matou?
Sivuca ‒ Sozinho, uns dois ou três morreram duelando comigo. Com o grupo de Le Cocq, uns 19 bandidos. Sempre trocando tiros com eles. Fui absolvido em todos os inquéritos. Satisfeitos? Não sou o Coelhão, que disse brincando que já tinha jogado mais de 100 mortos no Guandu.
Jaguar ‒ Defina o Coelhão.
Sivuca ‒ Era um policial do antigo Estado do Rio. O mais ferrenho caçador de bandidos que já conheci. Atirava capengando. Tinha um defeito na perna. Seu apelido era Coelhão Toco-de-Vela. O bandido morria em tiroteio, ele virava o cadáver de barriga para cima, cruzava os dedos do morto e acendia um toco de vela.
Jaguar ‒ Êta ritual macabro, hein?
Sivuca ‒ Coelhão achava que o sujeito morreu, acabou… Deixou de ser bandido.
Octávio ‒ Você afirmou que Coelhão brincou dizendo que era responsável por mais de 100 mortes no Guandu. Será que não era verdade?
Sivuca ‒ Não sei. O homem matou adoidado. Mas é muita cenoura para um só coelho, né? Certa feita, durante a construção de uma ponte no Guandu, a draga recolheu cerca de 15 esqueletos, um amarrado ao outro. Coelhão comentou, rindo: ‘O cacho de uva é de minha autoria. Isso dá samba’.’
Recuperar ou matar?
Uma resposta do então delegado de polícia reitera que ele mudou de discurso quando, duas décadas depois, apresentou-se sob o slogan ‘Bandido bom é bandido morto’:
‘Sivuca ‒ [….] Algumas autoridades se propuseram a apresentar Cara de Cavalo à Justiça. Não concordamos.Resolvemos matar aquele bandido.
Jaguar ‒ Hoje você pensaria assim?
Sivuca ‒ Hoje sou um advogado, estudei muito o Código Penal e agora acredito na recuperação do bandido. [….]’
Favela, sempre pobre, sempre visada
O padrão de miserabilidade das favelas não mudou muito. No trecho abaixo, os moradores levam objetos da casa de um assaltante, como fariam, mais de cinquenta anos depois, no Morro do Alemão:
‘Sivuca ‒ [….] Arrombamos seu barraco [de Cara de Cavalo], jogamos ventilador, rádio, ferro, fogão, o diabo pela janela. Os moradores apanharam os objetos [….].’
O discurso da remoção ficou superado, mas na época era fortíssimo:
‘Jaguar ‒ O morro é um ninho de marginalidade, certo? Tentaram resolver com soluções como Vila Kennedy. Como você vê a questão? Tem que acabar com as favelas?
Sivuca ‒ É evidente que temos que acabar com as favelas. Se não houver urbanização teremos um mal maior. [….] A favela deve acabar, sim. E ser transformada em grupos habitacionais. A Vila Kennedy demonstrou que é um objetivo que pode ser alcançado.’
A triste sina do Morro do Cruzeiro
Uma passagem diz respeito ao Morro do Cruzeiro, objeto da ‘operação’ policial que antecedeu a recente ‘conquista’ do Alemão. Mostra que o lugar é reduto de criminosos há décadas:
‘Octavio ‒ Depois da morte de Cara de Cavalo, algum bandido teve peito pra matar alguém do grupo?
Sivuca ‒ Naquela época, os bandidos eram mais atrevidos e covardes [sic]. Luís Cabeleira matou Chocolate [policial] no Estado do Rio. Fazia misérias no Morro do Cruzeiro, na Penha.’
‘Safári’ contra a ralé
São dignas de menção as legendas de algumas das fotos que ilustram a entrevista. Elas seguem a retórica policial da época. Só na terceira aparecem reparos aos métodos dos policiais.
Numa, em que aparecem Sivuca, segurando um fuzil, e outros policiais: ‘Os caçadores de Cara de Cavalo com Sivuca guiando o safári’.
Três retratos 3 x 4 feitos na polícia: ‘Murilão, Micuçu e Liece de Paula Pinto ‒ três ‘pernas-curtas’ que já partiram para o além’.
Três cadáveres enfileirados. Sobre o primeiro, um cartaz do esquadrão da morte com a inscrição ‘Nós íamos assaltar bancos’: ‘Segundo a polícia, essa ralé já não incomodará ninguém. É a justiça medieval, tempo de brucutu das cavernas’.
Trapalhões armados
As lambanças policiais são antigas e antológicas. Como no exemplo a seguir.
‘Sivuca ‒ [….] Cercamos a casa [de Cara de Cavalo]. Combinamos que eu entraria pela porta dos fundos e Paulista pela frente.
Jaguar ‒ A imprensa estava presente?
Sivuca ‒ Estava. Os repórteres Amado Ribeiro, Anver Bilate, um fotógrafo e parece que mais um ou dois jornalistas, não me recordo bem. Entramos na casa. Eu e Paulista chegamos juntos na sala. Aí surgiu um imprevisto: Euclides Nascimento bateu com a coronha da Winchester na janela, a arma disparou e quase acertou no Guaíba, que estava atrás. Se Guaíba não é mais baixo que Euclides, a bala pegaria nele. [….] O tiro assustou todo mundo. Aí a rapaziada disparou no telhado, nas janelas, nas portas. Pedaços de telhas começaram a cair na minha cabeça. Saí da casa berrando: ‘Tão malucos? Parem de atirar’. Os tiros cessaram. Paulista entrou novamente na casa e fui atrás dele. Tropecei num pedaço de telha no momento em que o bandido atirou em mim. Errou por pouco. Maneco gritou: ‘Cuidado, Sivuca’. Cara de Cavalo ia disparar novamente. Aí os colegas me salvaram. Pegaram o bandido com uma rajada de metralhadora. Então todo mundo atirou no bandido. Mais de 100 tiros. Sérgio Rodrigues gritou: ‘Chega. O homem já tá morto’. Ninguém escutou, ninguém pareceu ouvi-lo. O umbigo do cara ficou colado na parede.’
O bom policial, à moda de Sivuca
Para finalizar, o conceito de boa polícia externado por Sivuca. Entende-se por que, em matéria de (in)segurança pública, as coisas só fizeram piorar nas décadas seguintes. Com a colaboração da mídia.
‘Octávio ‒ Você acha boa a polícia brasileira?
Sivuca ‒ Acho a polícia brasileira altamente capaz, dada a sua capacidade de improvisação, de inventiva, e principalmente um estímulo interior que talvez vocês denominem como vaidade. O policial brasileiro gosta de aparecer. Indiscutivelmente, não dispomos dos recursos do FBI ou da Scotland Yard. Mas dentro das nossas limitações alcançamos êxitos excepcionais. [….]
Jaguar ‒ Defina um bom e um mau policial.
Sivuca ‒ O bom policial é aquele que, embora contrariando alguma orientação superior, procura fazer o serviço de modo a satisfazer a sociedade que serve, o bairro onde tá lotado. [….] O mau policial é aquele que nunca é processado. É o que não opera, vem à delegacia e fica sentado. Atende a todos com um sorriso, não resolve caso de ninguém. Em sua ficha não tem elogios. Também não tem punição. É um inútil. [….]’