Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Folha de S. Paulo

JOÃO GOULART
Simone Iglesias

Goulart foi morto a pedido do Brasil, diz ex-agente uruguaio

‘Preso desde 2003 na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (RS), o ex-agente do serviço de inteligência do governo uruguaio Mario Neira Barreiro, 54, disse em entrevista exclusiva à Folha que espionou durante quatro anos o presidente João Goulart (1918-1976), o Jango, e que ele foi morto por envenenamento a pedido do governo brasileiro.

Jango morreu em 6 de dezembro de 1976, na Argentina, oficialmente de ataque cardíaco. Ele governou o Brasil de 1961 até ser deposto por um golpe militar em 31 de março de 1964, quando foi para o exílio. À Folha Barreiro deu detalhes da operação da qual participou e que teria causado a morte de Jango. Segundo o ex-agente, Jango não morreu de ataque cardíaco, mas envenenado, após ter sido vigiado 24 horas por dia de 1973 a 1976.

Barreiro disse que Sérgio Paranhos Fleury (que morreu em 1979), à época delegado do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) de São Paulo, era a ligação entre a inteligência uruguaia e o governo brasileiro. A ordem para que Jango fosse morto partiu de Fleury, em reunião no Uruguai com dois comandantes que chefiavam a ‘equipe Centauro’ -grupo integrado por Barreiro que monitorava Jango. O Uruguai mantinha uma outra equipe de vigilância, a Antares, para monitorar Leonel Brizola.

As escutas, feitas e transcritas por Barreiro, teriam servido de motivo para matar Jango. Mas, segundo o ex-agente (que tinha o codinome de tenente Tamúz), o conteúdo das conversas não era grave: tratavam da vontade de Jango de voltar ao Brasil, de críticas ao regime militar e de assuntos domésticos. Barreiro afirmou que interpretações ‘erradas e exageradas’ do governo brasileiro levaram ao assassinato.

Segundo o uruguaio, a autorização para que isso ocorresse partiu do então presidente Ernesto Geisel (1908-1996) e foi transmitida a Fleury, que acertou com o serviço de inteligência do Uruguai os detalhes da operação, chamada Escorpião -que teria sido acompanhada e financiada pela CIA (agência de inteligência americana).

O plano consistia em pôr comprimidos envenenados nos frascos dos medicamentos que Jango tomava para o coração: o efeito seria semelhante a um ataque cardíaco. As cápsulas envenenadas eram misturadas aos remédios no Hotel Liberty, em Buenos Aires, onde morava a família de Jango, na fazenda de Maldonado e no porta-luvas de seu carro. Barreiro não exibiu provas e disse que o caso era discutido pessoalmente.

FOLHA – Qual era o interesse do Uruguai em vigiar Jango?

MARIO NEIRA BARREIRO – Após o golpe no Brasil, o serviço de inteligência do governo do Uruguai se viu obrigado a cooperar porque era totalmente dependente do Brasil. Goulart, para nós, era uma pessoa que não tinha nenhuma importância.

FOLHA – Quando passou a vigiá-lo?

BARREIRO – Eu o monitorei de meados de 1973 até sua morte, em 6 de dezembro de 1976. Monitorei tudo o que falava através do telefone, de escuta ambiental e em lugares públicos.

FOLHA – O sr. colocou microfones na casa? Como ouvia as conversas?

BARREIRO – Estive na fazenda de Maldonado para colocar uma estação repetidora que captava sinais dos microfones de dentro da casa e retransmitia para nós. Esta estação repetidora foi colocada numa caixa de força que havia na fazenda. Aproveitamos essa fonte de energia para alimentar os aparelhos eletrônicos e para ampliar as escutas. Isso possibilitava que ouvíssemos as conversas a 10, 12 km de distância. Ficávamos no hipódromo de Maldonado ouvindo o que Jango falava.

FOLHA – Alguma vez falou com ele?

BARREIRO – Sim. Eu e um colega estávamos vigiando a fazenda, fingindo que um pneu da camionete estava furado. Ele nos viu e veio até nós caminhando e fumando. Perguntou se precisávamos de ajuda. Estava frio e ele nos convidou para tomar um café. Eu pensei: ‘Ou ele é muito burro ou muito bom’. Ele me convidou para entrar na fazenda. Meu colega não quis ir.

Depois que fiz um lanche e tomei o café, eu disse: ‘Desculpa, senhor, qual é o seu nome?’. Ele me olhou e disse: ‘Mas como, rapaz, tu não sabes quem sou eu? Tu estás me vigiando. Acha que sou bobo? Fui presidente do Brasil porque sou burro? Estou te convidando para minha fazenda porque não tenho nada a esconder. Sei que estão me vigiando, mas não sou inimigo de vocês’. Eu disse que ele estava enganado, me fiz de bobo, mas ele era inteligente.’

 

Oficiais não têm condição de responder

‘Durante a semana passada, a Folha tentou, sem sucesso, falar com pessoas que pudessem esclarecer as afirmações feitas pelo ex-agente do serviço de inteligência do governo uruguaio Mario Barreiro.

O Exército brasileiro informou que não há hoje ninguém na ativa com condição de responder ou até rejeitar acusações. O mesmo foi dito pela Embaixada dos Estados Unidos no Brasil, questionada se houve participação da CIA na suposta operação para matar o presidente João Goulart, em 1976. Segundo a assessoria da embaixada, todos os funcionários que trabalharam por lá nos anos 70, no Brasil, já deixaram o país.

À Embaixada do Uruguai foram enviadas por e-mail perguntas sobre a eventual participação do governo daquele país. A assessoria disse que, se houver interesse do governo em responder, vai entrar em contato após a publicação da reportagem.

A Folha tentou entrevistar o delegado Paulo Sérgio Fleury, filho de Sérgio Paranhos Fleury, apontado por Barreiro como um dos envolvidos na suposta trama para a morte de Jango. A reportagem telefonou para os seus dois números de celular e deixou recado, mas ele não ligou de volta.

Humberto Esmeraldo Barreto, que foi assessor do presidente Ernesto Geisel (1908-1996) e seu amigo, foi procurado. A reportagem ligou durante toda a sexta para a sua casa, mas ele não atendeu.’

 

Fleury deu a ordem final, diz ex-agente

‘Neste trecho da entrevista, Mario Neira Barreiro conta como João Goulart teria sido envenenado.

FOLHA – Como foi decidido que Jango deveria ser morto?

BARREIRO – O que levou à morte foram interpretações erradas, exageradas do que ele falava. Fleury foi quem deu a palavra final. Em uma reunião no Uruguai, disse que Jango era um conspirador e que falaria com Geisel para dar um ponto final no assunto. Depois, em outra reunião no Uruguai, disse -não para mim, mas para um major e um general- que tinha conversado com Geisel dizendo que Jango estava complicando e que ele sabia o que deveria ser feito. E ele [Geisel] disse: ‘Faça e não me diga mais nada sobre Goulart’. A morte não foi decidida pelo governo uruguaio, mas pelo governo do Brasil, influenciado pela CIA.

FOLHA – Qual foi o papel da CIA?

BARREIRO – A CIA pagou fortunas para saber o que Jango falava e foi responsável por muita coisa, mas não quero falar sobre isso porque tenho medo.

FOLHA – Como Jango foi morto?

BARREIRO – Foi morto como resultado de uma troca proposital de medicamentos. Ele tomava Isordil, Adelfan e Nifodin, que eram para o coração. Havia um médico-legista que se chamava Carlos Milles. Ele era médico e capitão do serviço secreto. O primeiro ingrediente químico veio da CIA e foi testado com cachorros e doentes terminais. O doutor deu os remédios e eles morreram. Ele desidratava os compostos, tinha cloreto de potássio. Não posso dizer a fórmula química, porque não sei. Ele colocava dentro de um comprimido.

FOLHA – Como as cápsulas eram colocadas nos remédios de Jango?

BARREIRO – Ele era desorganizado. Abria um frasco, tomava alguns, na fazenda abria outro. Tinha sete, oito frascos abertos. E colocávamos [referência ao grupo que monitorava Jango] um remédio em cada frasco. Colocamos os comprimidos em vários lugares: no escritório na fazenda, no porta-luvas do carro e no Hotel Liberty.

FOLHA – O sr. concordava com a operação para matá-lo?

BARREIRO – Era contrário, mas era um simples serviçal. Passei a simpatizar com ele. Goulart era um homem bom. Mas se tivessem me pedido para eliminar Brizola, eu mataria: ele era um conspirador nato.’

 

Barreiro foi escolhido porque sabia português

‘Mario Barreiro foi detido pela primeira vez no Brasil em 1999, por tráfico de armas, quando foi sentenciado a 17 anos e três meses de prisão. O ex-agente deixou o Uruguai na década de 80, após ser expulso do serviço de inteligência. Questionado, ele se recusa a revelar o motivo da expulsão.

Após deixar seu país, Barreiro morou em cidades gaúchas na fronteira com o Uruguai e no fim dos anos 90 se mudou para Gravataí.

Lá, a polícia encontrou em sua casa granadas, pistolas e fuzis. Barreiro foi levado para o Presídio Central de Porto Alegre e, em 2000, foi transferido para a Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas.

Em maio de 2003, passou a cumprir pena em regime semi-aberto em Venâncio Aires (RS), mas fugiu da prisão.

Ele foi recapturado e levado para Charqueadas, onde cumpre pena por tráfico de armas, falsidade ideológica, roubo e formação de quadrilha. Barreiro nega a acusação de roubo, mas confirma que usava documentos falsos e tinha armas em sua casa.

Ao ser preso em 1999, ele usava o nome de Antônio Meirelles Lopes. Barreiro diz que aos 18 anos começou a integrar o Gamma (Grupo de Ações Militares Anti-Subversivas), serviço secreto de inteligência do Uruguai.

Disse que coube a ele a tarefa de vigiar o presidente João Goulart (1918-1976) porque sabia português e era estudante de engenharia. ‘Acho que me escolheram porque na época eu já era estudante de eletrônica, era bastante entendido na matéria, e além disso estava fazendo curso de português. Eu não era um homem violento, nem de porte físico privilegiado, nada que pudesse fazer com que fosse escolhido para uma função como essa, tão delicada’, disse.’

 

Fernando Barros de Mello e Felipe Bächtold

Biógrafos de Jango afirmam não haver prova de assassinato

‘A hipótese de que o presidente João Goulart (1961-1964) foi perseguido e assassinado pelo regime militar não é descartada, mas divide as opiniões de estudiosos do tema.

Para Jorge Luiz Ferreira, historiador da Universidade Federal Fluminense que vai publicar uma biografia sobre Jango neste ano, não é possível descartar a tese de assassinato, mas não há prova cabal de que ele tenha ocorrido e também é preciso considerar o histórico de saúde do presidente.

‘A Operação Condor foi uma realidade. Segundo estudos, os militares do Cone Sul estavam convencidos de que, com a política externa norte-americana de Jimmy Carter, os regimes militares estavam com os dias contados. Desse modo, tudo indica que eles queriam fazer uma ‘limpeza’, livrando-se de políticos de oposição’, afirma.

‘Mas é preciso lembrar o histórico de saúde. Ele era cardíaco, no último ano de vida não subia escadas sem ficar ofegante. Naquela época, ninguém se preocupava com colesterol.’

O historiador descreve que Jango consumia gordura, tomava algumas doses de uísque e fumava, apesar de, no último ano de vida, ter diminuído os dois últimos. ‘O primeiro acidente cardiovascular dele ocorreu quando ainda era vice do Juscelino e viajou ao México.’

Segundo o historiador Marco Antonio Villa, da Universidade Federal de São Carlos (SP) e autor do livro ‘Jango, um Perfil’ (2004), dizer que Jango foi assassinado é uma tentativa malfeita de reescrever sua biografia. Para o professor, ele não tinha atuação política na época da morte, o que extinguiria qualquer interesse em matá-lo. ‘Construir uma figura de resistência da ditadura e que por isso foi assassinada é uma versão requentada [da tentativa] de transformar o Jango em um presidente reformista’, diz. Villa não crê na participação do delegado Sérgio Fleury no suposto assassinato. Para ele, o delegado não tinha papel de liderança na repressão no Brasil.

Villa diz que a comissão da Câmara que investigou em 2001 a morte de Jango não achou nenhum elemento que prove homicídio. Já o deputado federal Miro Teixeira (PDT-RJ), relator daquela comissão, diz que as circunstâncias em que Jango morreu são ‘duvidosas’, mas não havia como concluir se ele foi morto ou não. Contudo, há ‘certeza absoluta’ de que Goulart foi perseguido.

Serafim Jardim -secretário de Juscelino Kubitschek e autor de ‘Juscelino Kubitschek: Onde está a Verdade?’- defende a tese de assassinato e diz que é preciso investigar mais as mortes de Juscelino, Jango e Carlos Lacerda: ‘As mortes são coincidências grandes. Eu convivi com Juscelino. Escutei várias vezes ele me dizendo: ‘Querem me matar’. Depois, não deixaram fazer exumação dos corpos. O motorista que dirigia o carro do JK foi o primeiro que fecharam o caixão. Existe muita coisa que ficou no ar. Sobre Jango e Lacerda também.’’

 

Simone Iglesias e Felipe Bächtold

Documento prova vigilância, afirma filho de Goulart

‘João Vicente Goulart, 51, filho de Jango, afirmou que documentos liberados à família pela Presidência confirmam que agentes espionavam seu pai no exílio. Está para ser construído, em Brasília, o Memorial Jango. Com isso, o governo vem liberando documentos à família para que ela forme o acervo. ‘Os documentos que estou processando para a formatação do acervo, liberados pelo Gabinete Civil da Presidência da Republica, estão um a um confirmando a presença dos agentes ou de quem quer que seja que lá estava para monitorar e matar nossos amigos e companheiros’, disse João Vicente.

Em outubro de 2007, ele foi à Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (RS) e entrevistou Mario Barreiro para um documentário que está produzindo sobre Jango. Barreiro disse a João Vicente -como disse à Folha- que espionou o presidente e que ele foi envenenado. Com base nesse relato, a família Goulart pediu à Procuradoria Geral da República a abertura de nova investigação sobre o caso e anexou a entrevista feita por João Vicente em Charqueadas no ano passado. ‘Alguns podem até perguntar se ele tem credibilidade, pois em nenhum momento apresenta provas. Do nosso ponto de vista, a prova é ele.’

João Vicente disse que, agora, aguarda respostas do governo quanto às afirmações do ex-agente uruguaio.

Christopher Goulart, 31, neto mais velho de Jango, disse que o objetivo da família é ampliar a discussão e as investigações. Ney Ortiz Borges, 83, que foi líder do governo Jango na Câmara, defende nova investigação sobre a causa da morte.’

 

NA BOSSA
Carlos Heitor Cony

Bossa nova

‘RIO DE JANEIRO – Não chega a ser uma polêmica entre os entendidos, mas uma discussão que, de vez em quando, inflama os meios especializados. Afinal, quem por primeiro batizou a bossa nova de bossa nova?

É praia estranha para mim. Conhecia a palavra ‘bossa’ desde o delicioso samba de Noel Rosa, ‘o samba, a prontidão e outras bossas, são nossas coisas, são coisas nossas’.

Cinqüenta anos atrás, ouvi novamente a palavra, mas não ainda como referência ao estilo musical que começava a ser praticado por uns rapazes, alguns deles meus amigos. Foi na redação de um jornal. Com outros colegas, inauguramos o ‘copy desk’ de tradicional matutino, que se recusara até então a adotar um grupo de profissionais que davam uniformidade aos textos das reportagens.

Como sempre acontece diante das novidades, a turma mais antiga da redação estranhou, não entendia o que fazíamos ali. Foi criado um espaço cercado de vidros para que houvesse realmente um ‘desk’ destinado a mexer nos textos de todos.

O diretor responsável pelo jornal era um senhor austero, de voz e gestos solenes, seria o último a entender o que fazíamos ali. Uma tarde, mostrando a um visitante ilustre as dependências do jornal, aproximou-se de nós e, sem saber como classificar-nos, informou com hierática certeza: ‘Aqui é… aqui é… a bossa nova!’.

Foi a primeiríssima vez que ouvi a expressão. Só então reparei que ela estava sendo usada para designar um tipo de música popular que marcaria aqueles anos. Bem verdade que o estilo, ainda sem a batida do João Gilberto, tinha antecedentes respeitáveis, e Juca Chaves chamara JK de ‘presidente bossa nova’. Nada disso me impressionou. Guardei aquela voz solene de um diretor austero: ‘Isso aí é… a bossa nova’.’

 

MÍDIA & POLÍTICA
Valdo Cruz

85% da Câmara prefere a Folha, afirma pesquisa

‘A Folha é apontada por 84,6% dos deputados em pesquisa realizada na Câmara como o jornal de sua preferência. A pergunta, feita a 249 dos 513 deputados no final do ano passado, procurou levantar, de forma espontânea, os três jornais preferidos na Casa.

Em segundo lugar está o ‘O Globo’, com 49,2%. Outros jornais (regionais) surgem em terceiro, com 43,9%. Em quarto está ‘O Estado de S. Paulo’, com 32,9%.

Em seguida estão ‘Correio Braziliense’ (32,1%), ‘Valor Econômico’ (11,8%), ‘Jornal do Brasil’ (6,1%) e ‘Gazeta Mercantil’ (4,1%). A soma supera 100% exatamente porque a pesquisa se referia aos três jornais preferidos, sem que uma lista fosse apresentada ao entrevistado.

Segundo os dados da FSB Comunicações, 96,3% dos tucanos apontam a Folha como um dos três jornais de sua preferência, seguidos pelos petistas (92,3%). No caso de ‘O Globo’, os petistas lideram o ranking dos que escolheram o diário como um dos três preferidos -57,7%. Os ex-pefelistas (56,7%) figuram em primeiro lugar na lista dos que optaram pelo ‘Estado de S. Paulo’.’

 

TELECOMUNICAÇÕES
Elio Gaspari

A telebagunça dos comissários

‘HÁ ALGO ESQUISITO nas tratativas dos marqueses da Telemar/Oi com os comissários da Brasil Telecom para comprar a empresa, formando a maior operadora de telecomunicações do país. É um negócio de R$ 4,8 bilhões e ninguém teria nada a ver com isso se a operação não dependesse de um decreto de Nosso Guia, mudando as regras do jogo desse mercado.

Quando duas empresas armam uma transação que depende de um ato do poder público, fica-se numa posição parecida com a do sujeito que tem um terreno onde se pode construir um edifício de quatro andares e negocia sua venda na expectativa de uma nova postura municipal que elevará o gabarito para dez pisos. Se o vendedor e o comprador não conhecem o prefeito e não pretendem influir na mudança da postura, tudo bem. Resta acreditar que os marqueses da Telemar, bem como os comissários da Brasil Telecom não sabem o telefone do Palácio do Planalto, muito menos o do BNDES. Nem eles nem a turma dos fundos de pensão estatais que investiram maciçamente na empresas.

No dia 9, a Telemar informou ao mercado que estudava ‘oportunidades de aquisição’ de outras empresas e queixou-se das ‘notícias desencontradas’ que vinham sendo publicadas sobre o caso. Disse também que estudava o assunto ‘no âmbito do marco regulatório em vigor’. Difícil, por que sem mudar a Lei de Outorgas, o negócio é tão viável quanto abrir um restaurante em Marte.

No dia seguinte, respondendo a uma solicitação da Comissão de Valores Mobiliários, admitiu o óbvio: negociava a Brasil Telecom e seu vasto porão.

Tudo ficaria mais simples se as coisas fossem feitas numa ordem lógica. Primeiro o governo muda as regras. Se possível, discute o novo modelo com a choldra. Depois, as empresas negociam o que bem entenderem dentro do verdadeiro marco regulatório. Foi essa opção preferencial pela anarquia que atazanou a privataria tucana depois da armação do leilão que torrou a Vale e do que permitiu o surgimento da Telemar, cujos controladores foram chamados de ‘telegangue’ pelo então ministro das Comunicações, Luiz Carlos Mendonça de Barros.’

 

CARNAVAL
Folha de S. Paulo

Merchandising é proibido nos desfiles em SP

‘O regulamento do Carnaval de São Paulo veta a presença de merchandising nos desfiles, que leva à perda de pontos da escola.

Para driblar a proibição, muitas usam réplicas de imagens comerciais, mas sem os nomes das marcas.

Marko Antônio da Silva, presidente da Tom Maior e dirigente da liga das escolas, defende os patrocínios para contornar a falta de outras subvenções.

As escolas ganham em torno de R$ 400 mil da prefeitura e perto de R$ 180 mil pela transmissão da TV, mas os gastos superam R$ 1 milhão -alguns passam de R$ 2 milhões.

Em 2008, a liga fez um plano de comercialização de R$ 10 milhões em cotas de exploração de publicidade no Anhembi. Nenhuma foi vendida até sexta -dificuldade agravada pela Lei Cidade Limpa.’

 

TELEVISÃO
Daniel Castro

Casa de Ana Maria Braga na Globo terá galinheiro e horta

‘Um galinheiro, uma horta e um lago estão entre os ‘reforços’ da Globo para ajudar o ‘Mais Você’ a vencer a Record no Ibope a partir de 10 de março, quando o programa de Ana Maria Braga passará a ser transmitido do Rio de Janeiro.

‘Há três anos eu peço um estúdio diferenciado. O programa tem de ter um ‘up’ de conteúdo e na forma de apresentação. Aqui em São Paulo não tem como crescer’, conta Ana Maria.

Inicialmente, o ‘Mais Você’ ocupará um estúdio de 600 m2 no Projac, onde contará com quase todo o elenco da rede. Quatro meses depois, mudará para uma casa cenográfica.

Apesar do galinheiro e da horta, a casa será moderna -um loft, com câmeras fixas e paredes de vidro. ‘A idéia é mostrar se está chovendo ou fazendo sol’, diz a loira.

Ana Maria pretende mostrar toda a construção da casa: ‘Vou começar pela horta e dar dicas de canteirinhos básicos em casas e apartamentos’.

Parte da produção do ‘Mais Você’ continuará em São Paulo, de onde haverá entradas ao vivo diariamente. ‘Estou chamando o novo ‘Mais Você’ de ‘Mais Brasil’. Vou abrir janelas para São Paulo, Brasília, Belo Horizonte. Conto com a estrutura do jornalismo. Se tiver algum fato importante acontecendo em alguma capital, a gente passa’, adianta.

Ana Maria continuará morando em São Paulo. ‘Estou procurando um flat no Rio. Vou com calma. Só trabalharei lá de segunda a quinta.’

DICAS DE PEITO

Uma das musas do Carnaval carioca, Luiza Brunet será o destaque do ‘Superbonita’ momesco a ser exibido pelo canal GNT nesta sexta. No programa, dará dicas para as Renatas Banhara (modelo que desfilou em todas as escolas de SP) de primeira viagem. Tipo essa: ‘O que eu acho interessante para as madrinhas de bateria ou quem sai pela primeira vez é fazer um treinozinho em casa. A sandália tem que ser bem presa, quase como patins’. Para quem tem seios grandes e não abre mão do conforto de um sutiã, la Brunet recomenda ‘mandar bordar em cima’ de uma peça ‘com modelagem bem bacana’. ‘Aí pode sambar à vontade que nada sai do lugar’, atesta.

OS NOVOS MUTANTES

Novos mutantes aparecerão nos próximos capítulos de ‘Caminhos do Coração’, novela da Record. Nesta quarta, entra na trama Iara (Suyane Moreira). ‘Como na mitologia, ela carrega os homens para o fundo das águas’, conta o autor, Tiago Santiago. Depois do Carnaval será a vez de Meduso -’cujo olhar pode paralisar ou até mesmo matar uma pessoa’- debutar em ‘Caminhos’. Com toda a mitologia a seu dispor, Santiago também lançará mão, em breve, do Minotauro, ‘um homem com genes de touro, reforço para a liga dos mutantes do bem’.

A HORA DE MALU

Aos 36 anos, a experiente Malu Galli terá seu primeiro grande trabalho na Globo em ‘Queridos Amigos’, minissérie que estréia dia 18, na qual viverá Lúcia. ‘Por ser psicoterapeuta e ter um casamento saudável, a casa de Lúcia funciona como um centro para o grupo de amigos. Ela é receptiva com todos. No meio da minissérie, vai enfrentar um conflito, mas não posso adiantar’, diz. Malu tem 18 anos de teatro e dez filmes no currículo, entre eles ‘Dom’ (2003) e ‘Achados e Perdidos’ (2005). ‘Na TV só fiz algumas coisas esparsas’, lamenta a carioca.

Sempre quis fazer TV e estou adorando estar nessa minissérie. Eu vivi o momento retratado nela. Em 1989, estava no auge da adolescência

MALU GALLI,

atriz

ROCK ESTRELLA 1

A Globo vai dar uma força para o produtor musical João Guilherme Estrella, o ex-traficante retratado no filme ‘Meu Nome Não É Johnny’. Estrella, que está lançando seu primeiro CD, terá uma música na trilha da próxima novela das sete, o pop-rock ‘Madrugada’.

ROCK ESTRELLA 2

Além de Estrella, ‘Beleza Pura’ terá Frejat, com um tema original para Carolina Ferraz, e as novas cantoras Céu, Ana Cañas e Monica Besser. O tema de abertura será uma regravação de ‘Beleza Pura’, de Caetano Veloso, com a banda Skank -que tocará na festa de lançamento da novela, no próximo dia 10, na Oca, em São Paulo.

Pergunta indiscreta

FOLHA – Quantas peças tem sua coleção de vasos de cemitério?

RONALDO ESPER (estilista e colunista do ‘Superpop’) – Vasos de cemitério não tenho nenhum. Mas outros vasos tenho muitos. Vasos franceses, chineses de várias dinastias, etruscos, romanos e nacionais. Aqueles vasos de cemitério não eram para mim, não iriam sair do cemitério. Eu fui absolvido. O juiz entendeu que eram lixo. Ah, põe aí que, por uma questão de higiene e utilidade, também tenho vasos sanitários.’

 

Lucas Neves

Glenn Close se rende à TV no drama ‘Damages’

‘Depois de concorrer ao Oscar por ‘Atração Fatal’ (1988) e ‘Ligações Perigosas’ (1989) e torturar uma penca de dálmatas na franquia infantil da Disney encerrada em 2000, a atriz Glenn Close, 60, andava um tanto esquecida pelos grandes papéis no cinema.

Desde então, deve ter trocado figurinhas com Patricia Arquette e Sally Field -duas estrelas na mesma situação que reencontraram na TV personagens desafiadores-, pois é na tela pequena que ela volta à forma: ‘Damages’, série em que encarna uma advogada nova-iorquina linha-dura, rendeu-lhe um Globo de Ouro de atriz dramática há 15 dias.

A chegada da recém-formada Ellen ao escritório de advocacia Hewes & Associates, comandado pela temida Patty (Close), é o ponto de partida da trama (que estréia por aqui em 12/2, no AXN). Nesse momento, os esforços da equipe estão concentrados na acusação ao executivo Arthur Frobisher, que, consta, possuía informações privilegiadas sobre a penúria financeira de sua empresa e não avisou os subalternos.

Mas o quadro é bem menos maniqueísta do que anuncia a sinopse: durante o trâmite da ação trabalhista, Patty transgride toda hora as barreiras éticas de sua função para conseguir o que quer e incentiva a pupila a fazer o mesmo.

Na medida em que Ellen se familiariza com as práticas da chefe, sua compreensão de justiça, lisura e caráter é, por assim dizer, reformulada. A cena do episódio-piloto em que ela corre seminua e ensangüentada pelas ruas de NY indica onde a redefinição de conceitos poderá conduzi-la.

Outra novidade da TV paga que chega após a folia momesca é a comédia dramática ‘Dirty Sexy Money’ (12/2, no AXN), com elenco encabeçado por Peter Krause, o Nate de ‘A Sete Palmos’, e Donald Sutherland (de ‘MASH’).

O primeiro vive o advogado Nick, que herda do pai a ingrata função de ‘babá legal’ dos milionários Darlings. É ele quem vai desatar os nós (nem só) jurídicos do junkie Jeremy, da dublê de atriz (que está mais para clone de Paris Hilton) Juliet, do promotor com aspirações políticas (e um affair delicado) Patrick, do pastor Brian, que tem um filho bastardo, e por aí vai. Entre um ‘incêndio’ e outro, Nick tenta esclarecer as circunstâncias da morte de seu pai, em um acidente aéreo.

‘C.S.I.’ volta

Além das estréias, a ressaca carnavalesca traz novas temporadas (veja dias e horários ao lado). Em ‘C.S.I.’, a busca por Sara (seqüestrada pela assassina de miniaturas) mobiliza a equipe e atordoa Grissom.

Em ‘Desperate Housewives’, Bree enfrentará um câncer, ao passo que Gabrielle, recém-(re)casada, pulará a cerca com o ex-marido. E, logo, logo, um tornado vai arrasar Wisteria Lane.’

 

Cássio Starling Carlos

Em papel maquiavélico e ambíguo, atriz veterana torna série viciante

‘A TV norte-americana vem, aos poucos, jogando por terra a maldição de que a vida termina aos 40 para as estrelas.

Como atesta a presença de Glenn Close em ‘Damages’ -série recém-premiada com o Globo de Ouro por seu desempenho-, grandes atores não precisam mais se contentar com os papéis secundários de mães e avós que os filmes lhes reservam nem, desse modo, se submeter à condenação ao ocaso.

O drama judiciário, que o canal AXN começa a exibir em 12 de fevereiro, foi criado pelo trio Todd A. Kessler, Glenn Kessler e Daniel Zelman. O primeiro é um experiente roteirista e produtor que trabalhou na segunda e terceira temporadas de ‘Família Soprano’.

A trama se concentra na figura de Patty Hewes (Close), toda-poderosa chefe de um escritório de advocacia de Nova York. Como seu oponente, Ted Danson, empregado num papel avesso à imagem consagrada pelo ator em ‘Cheers’, também está espetacular.

A série aproveita a memória do imaginário colado à figura da atriz, que veste ainda uma vez a nobreza maquiavélica construída no cinema por meio de seus personagens em ‘Ligações Perigosas’, ‘Atração Fatal’ e ‘101 Dálmatas’.

Hewes, contudo, não é um tipo unívoco -e é sua ambigüidade que torna viciantes os 13 episódios da primeira temporada de ‘Damages’.

Além dessa atração central, a primeira temporada se aventura fora dos eixos previsíveis da linearidade, dispondo as reviravoltas num vaivém temporal que seduz também pela elaborada construção.

Avaliação: ótimo’

 

Bia Abramo

A longa greve dos roteiristas

‘DAQUI A POUCO mais de uma semana, a greve dos roteiristas completará três meses. Já atrapalhou diversas temporadas de séries de alta audiência na TV norte-americana, a entrega do Globo de Ouro e, caso continue, pode ameaçar até mesmo a cerimônia de entrega do Oscar.

É a primeira greve de grande porte a atingir a hoje gigantesca e tentacular indústria do entretenimento global. E, salvo engano, é a primeira vez que uma arma tão clássica do século 20 está sendo usada para combater os dilemas ultramodernos da desigualdade do século 21.

Curiosamente, ninguém na mídia brasileira está chamando os grevistas de baderneiros nem os acusando, em tom grave, de fazer uma greve com fins políticos, como se costuma fazer a torto e a direito quando as categorias paralisadas têm menos simpatia.

Mas o problema é que, por mais ‘americana’ e midiática que seja esta dos roteiristas, toda greve tem por objetivo perturbar a ordem -paralisar um processo produtivo é mesmo uma complicação dos demônios- e toda greve tem, sim, sentido político; trata-se de um conflito entre forças com interesses antagônicos.

Esse caso é duplamente curioso, uma vez que devolve ao sujeito que desenvolve um trabalho intelectual e criativo a condição de trabalhador explorado em sua força de trabalho e reafirma a importância da mobilização coletiva, ao mesmo tempo em que testa a capacidade das grandes corporações de conviver com trabalhadores organizados.

Os roteiristas querem sua fatia de participação nos lucros que já vêm e ainda mais virão das novas mídias -internet, streaming media, download.

Os estúdios afirmam que não vão lucrar tanto assim, que já perdem muito dinheiro com a pirataria e que os roteiristas ganham mais do que os cirurgiões.

Qualquer que seja o cenário de resolução da greve, as perspectivas para o consumidor não são boas. Se ganham os roteiristas, os estúdios vão cortar custos em outros cantos, o que vai afetar a aposta em novos títulos, a qualidade de produção etc.

Se ganham os estúdios, os roteiristas sofrerão retaliações de alguma espécie, o que também influencia na qualidade da produção.

E tudo isso no coração da indústria mais emblemática do capitalismo globalizado, que é a do entretenimento. Ou seja, politiza, de maneira inequívoca, o coração de uma das atividades mais ligadas à idéia de alienação.’

 

Laura Mattos

Disney e SBT exibem seleção do ‘High School’ brasileiro

‘O fenômeno teen ‘High School Musical’ (‘HSM’) não tem hora para acabar. Após dois telefilmes (filmes para TV) e um longa norte-americanos sobre jovens que participam de concursos de canto e dança, agora é a vez das versões argentina, mexicana e brasileira.

A seleção do elenco será aproveitada para produzir um reality show, que no Brasil estréia nos dias 10, no Disney Channel, e 11 de março, no SBT. ‘High School Musical – A Seleção’ ficará no ar até junho, quando serão anunciados pelo menos dois protagonistas para o ‘HSM’ brasileiro. Mais de 18 mil jovens entre 16 e 24 anos se inscreveram. A escolha começou em outubro e teve um evento reunindo mais de 3.000 candidatos no Sambódromo de São Paulo. Atualmente, os finalistas (em torno de 18, segundo o Disney Channel) estão confinados em uma ‘casa/academia’, onde têm aulas de dança, canto, interpretação etc.

Na TV fechada, o reality será veiculado aos sábados, às 19h, e na aberta, aos domingos, às 13h30, além de programetes ao longo da semana nos dois canais. Já o filme, primeiro da Disney a ser rodado no país, deve ser lançado entre janeiro e março de 2009. O diretor e a produtora nacional que se associarão à Disney não foram definidos. Segundo Herbert Greco, diretor de marketing da Disney do Brasil, a história passará por adaptações para se adequar à cultura brasileira.

O basquete jogado pelos alunos da high school, por exemplo, poderá virar futebol no colegial tupiniquim. ‘Nossa idéia não é encontrar imitadores dos protagonistas do ‘HSM’ nem fazer um clone do filme, mas ter traços de reconhecimento da história original’, diz Greco.

Será, então, um processo diferente da franquia do seriado ‘Desperate Housewives’, também da Disney -mudanças significativas no roteiro e cenário foram vetadas para a versão brasileira, exibida pela Rede TV!, e as outras latinas, que são cópias do norte-americano.

Fora o filme brasileiro do ‘HSM’, a Disney fará render ainda mais a galinha dos ovos de ouro com venda de álbuns de figurinhas, revistas, livros e outras tralhas.’

 

INFANTIL
Laura Mattos

A era dos neobaixinhos

‘Super Xuxa luta contra o baixo astral: a apresentadora perdeu seu programa diário na Globo e camela para chegar a 300 mil espectadores no cinema, resultado chocho para quem contava bilheteria em milhão. A rainha dos baixinhos não manda no reino dos neobaixinhos, filhos de uma geração politicamente correta, que vêem programa educativo na TV paga, cantam música de qualidade, ouvem falar sobre aquecimento global, aprendem a reciclar lixo e até lêem poesia.

Nessa nova era -em que pais parecem estar mais preocupados com o consumo cultural das crianças- nomes como o duo musical Palavra Cantada, antes restritos a filhos de ‘moderninhos’ e ‘intelectuais’, ganham o grande público.

A dupla mescla a formação clássica de Sandra Peres, 44, e a popular de Paulo Tatit, 52, e tem a proposta de criar canções infantis de qualidade. Começou em 1994 vendendo CDs pelo telefone e correio. Em um esquema totalmente independente, sem o apoio de uma grande gravadora, atingiu a marca de 14 títulos lançados com 1,4 milhão de cópias vendidas e prepara a turnê do CD ‘Carnaval’, que inclui shows no litoral e no Citibank Hall de São Paulo, em 2 e 3 de fevereiro. O álbum tem a participação de Arnaldo Antunes e seu filho, Bras, e de Mônica Salmaso. Para este ano, a dupla negocia um programa de TV com um canal fechado e um aberto.

‘O sucesso do Palavra Cantada reflete uma tendência de mudança na concepção da infância’, opina a educadora Gisela Wajskop, diretora do Instituto Superior de Educação de São Paulo – Singularidades.

Ela conta que foi convidada a dar uma palestra na Globo, anos atrás, quando a emissora acreditou que poderia transformar o programa da Xuxa em algo educativo. ‘O problema é que a Xuxa nunca teve essa imagem’, analisa Wajskop.

Para a educadora, os pais, ‘que antes deixavam os filhos dançar na boquinha da garrafa, começaram a ficar mais críticos’. ‘Isso tem a ver também com a melhoria da escolaridade no país e com os resultados negativos da geração cujos pais delegaram a educação a babás, enquanto trabalhavam para ganhar mais, achando que assim os filhos seriam felizes’, afirma.

Em sua opinião, ‘a classe média passou a intuir que o consumo de produtos culturais mais educativos poderia melhorar a formação dos filhos, raciocínio antes mais restrito à elite’.

Wajskop também aponta a ‘pressão da mídia’ e iniciativas como a do Palavra Cantada. ‘Eles insistiram na marginalidade e na qualidade e criaram um espaço antes inexistente.’

Tatit conta que ainda hoje, apesar do sucesso, o ‘dinheiro é muito apertado’ e é preciso correr atrás de patrocinadores para CDs e shows. Peres lembra que tudo ficou mais difícil com a pirataria -sim, pais politicamente corretos também copiam CDs no computador.

‘Nós mesmos produzimos e gravamos o nosso CD, e o Palavra Cantada só continua a existir em razão da venda dos discos. O show mal se paga.’

Som das loiras

Apesar das dificuldades, Peres afirma que hoje há um mercado de música para criança, o que nem existia quando eles começaram. ‘A música infantil era a que chegava pela TV, cantada pelas apresentadoras. Hoje tem muita gente fazendo música infantil de qualidade.’

Quem também faz sucesso nesse mercado é Hélio Ziskind, autor de sucessos do programa ‘Cocoricó’, da Cultura, que iniciou a carreira ao lado de Tatit, no grupo alternativo Rumo.

Para Tatit, o Palavra Cantada já atingiu o topo dentro de um esquema independente. ‘Sabemos que, para crescer mais, precisamos ir para a televisão.’ Canções como ‘Sopa’ e ‘Rato’ só chegaram à periferia, no início desta década, graças à veiculação de clipes do Palavra Cantada na TV Cultura.

Na opinião de Peres, as crianças gostam ‘do humor e da poesia das músicas’, que não devem ter ‘intenção de criar modismos’. Tatit diz que, ao compor, preocupa-se ‘menos com o que vai dizer e mais com como dirá’. ‘Busco construir uma sintaxe que as convença.’

Além disso, o que ajudou foi a parceria com escolas, que usam as músicas da dupla nas aulas. ‘Os professores são a nossa rádio. As crianças chegam em casa cantando, e os pais vão atrás de nossos CDs’, afirma Peres.

As escolas têm mesmo sido uma das responsáveis pelo surgimento dos neobaixinhos. ‘Os educadores percebem cada vez mais a importância de preservar a cultura, o folclore, de resgatar cantigas de roda e brincadeiras antigas’, diz Silvia Amaral, conselheira da Associação Brasileira de Psicopedagogia.

Ela faz duas importantes ressalvas: ‘Esse movimento ainda não é tão intenso na rede pública e nem todos os pais têm essa preocupação com qualidade’.’

 

Bia Abramo

Crianças não rejeitam boas novidades

‘Se há algo de arrogância quando se fazem generalizações sobre o gosto do público, no caso específico das crianças, há uma verdadeira incompreensão. O ‘gosto’ delas é mais misterioso e mais flexível do que se imagina.

Na TV, qualquer coisa que pareça minimamente colorido, agitado e barulhento atrai a atenção e é capaz de grudá-las na frente do aparelho. Isso explica, em parte, o longo reinado das apresentadoras loiras, de modos sedutores e merchandising pesado.

Mas não deixa de ser verdade que programas com teor educativo mais bem elaborado, maior sofisticação visual e narrativa e referências culturais mais amplas também podem funcionar quando são oferecidos. Todas as vezes em que a TV apostou em atrações nessa linha, como a TV Cultura nos anos 80 e 90, a resposta foi melhor do que se esperava.

Isso porque crianças gostam de conhecer coisas novas e não rejeitam a priori, como fazem muitos adultos, aquilo que é mais desafiador.

O sucesso mais ou menos surpreendente da turma do ‘Cocoricó’ e do grupo Palavra Cantada, bem como do canal Discovery Kids, por exemplo, apontam para uma nova onda de entretenimento infantil mais ‘inteligente’ que, espera-se, dure mais do que império de Xuxa.’

 

INTERNET
Marco Aurélio Canônico

Site cria ‘webjornal’ com hits da semana

‘Manter-se atualizado sobre os últimos hits da internet é algo que tem se tornado tão importante quanto difícil, dada a profusão de sites, vídeos e histórias que brotam diariamente.

Se você é dos que gostam de saber das novidades enquanto elas ainda estão quentes, mas não tem tempo de abrir todos os links que lhe mandam por e-mail (ou de vagar por sites como o YouTube), vai apreciar o ‘webjornal’ The Digg Reel.

Um subproduto do hiperpopular www.digg.com -mistura de blog, rede social e site de notícias em que tudo é submetido e votado pelos internautas-, o www.thediggreel.com estreou há duas semanas com o formato de telejornal.

Apresentado pela engraçadinha Jessica Corbin, o ‘webjornal’ destaca os vídeos da internet mais assistidos pela comunidade do Digg.

A proposta é apresentar entre sete e dez vídeos por semana, em ordem crescente de número de votos recebidos, com as edições entrando on-line às quartas-feiras.

Há também a promessa de alguns ‘por trás da cena’, para mostrar como os vídeos mais populares foram feitos -mas, pelo menos até a segunda edição, a idéia ainda não havia sido posta em prática.

Comentários na tela

A semelhança com os telejornais também aparece (infelizmente) no estorvo que são os comerciais -aqui, inseridos no meio da apresentação.

Há diferenças notáveis, no entanto, a começar pelo fato de que as videonotícias são, invariavelmente, escolhidas pelos internautas.

A interação característica da internet também aparece com a inserção, após cada vídeo, de alguns dos comentários deixados pelo público no site.

Analisando as duas primeiras edições, nota-se que o tom é puxado para o humor, não apenas nos vídeos mais assistidos mas também na apresentação de Corbin e nos comentários selecionados para aparecerem.

Com a proximidade das eleições presidenciais norte-americanas, os vídeos de temática política, como o do apresentador John Stewart debochando da mídia e de Hillary Clinton, um dos mais vistos das primeiras edições, certamente surgirão com mais regularidade. E o Digg Reel será uma boa biruta para indicar em que direção sopram os ventos da internet.’

 

CENTENÁRIO
Alexandra Moraes e Marcos Strecker

Começa o ano Machado de Assis

‘O centenário da morte de Machado de Assis deve ser marcado pela valorização de aspectos pouco explorados da sua obra, como a correspondência passiva e o conjunto de suas crônicas. Mas pesquisadores ainda apontam uma relutância da crítica em explorar toda a ‘variedade da obra’ do fundador da Academia Brasileira de Letras, assim como indicam uma falta de renovação dos estudos machadianos.

Para lembrar os cem anos da morte do escritor -que se completam em 29 de setembro-, começaram a ser anunciados eventos, publicações de textos sobre e de Machado e edições de novas coletâneas (leia nas págs. 6 e 7).

Na última semana, foi divulgado que Machado será o grande homenageado da 6ª edição da Flip (Festa Literária Internacional de Parati), que acontecerá de 2 a 6 de julho.

A lista de eventos é extensa. A Academia Brasileira de Letras terá exposições comemorativas e conferências. A USP prepara um colóquio. A Unesp promove no fim de agosto um simpósio internacional em São Paulo. Em setembro, a Fundação Casa de Rui Barbosa (RJ) organiza um ciclo de palestras sobre os contos do escritor.

E, em outubro, a Universidade Yale (EUA) vai sediar um congresso sobre o brasileiro.

Correspondência

Uma das boas-novas é a publicação da correspondência passiva do autor. Diretor do arquivo da ABL, o cientista político Sergio Paulo Rouanet prepara o lançamento do primeiro volume das cartas recebidas pelo escritor, que vai até 1889. ‘Sempre me espantou o fato de que uma parcela tão substancial das cartas recebidas por Machado de Assis, hoje em poder da Academia, tivesse permanecido inédita’, diz Rouanet, que estima em cerca de 700 as epístolas recebidas por ele e guardadas na ABL.

‘Comparado com o acervo existente, o que tinha sido publicado nessa área era insignificante’. Para Rouanet, ‘essa pouca importância atribuída à correspondência passiva parece derivar da idéia estranha de que as cartas escritas por Machado são mais relevantes que as recebidas, o que significa desconhecer a especificidade do gênero epistolar, cujo caráter dialógico é evidentemente essencial. Esquecer os interlocutores de Machado é transformar o diálogo em monólogo’.

A correspondência de sua juventude contradiz a imagem carrancuda que é freqüentemente associada ao escritor. ‘Não há sinal de misantropia nessas cartas’, afirma Rouanet. ‘É nas cartas de maturidade e de velhice que se nota o famoso pessimismo machadiano.’ O imortal, porém, observa que ‘nas duas fases são cartas afetuosas, que mostram que Machado podia ser cético, mas nunca niilista, porque acreditava ao menos na amizade’.

Professor-assistente da Universidade Princeton, Pedro Meira Monteiro atribui o interesse pelo lado menos celebrado do escritor à ‘esperança de que o ‘secundário’ ilumine não apenas o material mais conhecido, mas que também ajude a matizar a compreensão do autor, permitindo que se compreenda melhor uma ‘evolução’ da obra não propriamente linear’.

Crônicas

Outro ramo aparentemente secundário que ressurge para a efeméride são as crônicas de Machado de Assis, escritas ao longo de quase 50 anos. ‘São fundamentais para a compreensão do seu pensamento político e estético’, defende Lúcia Granja, professora da Unesp, uma das responsáveis pelo portal na internet que pretende reunir o material -baseado em microfilmes dos periódicos, que estão na Biblioteca Nacional.

O site (www.machadodeas sis.unesp.br, ainda em fase experimental) também deve abrigar textos publicados na imprensa por ocasião da morte do escritor, além de outros escritos 50 anos mais tarde.

Para Granja, a crônica ‘é o lugar correto para questionarmos a pecha de absenteísmo que recai sobre o escritor e o espaço em que ele experimentou esteticamente a forma da narrativa muitas vezes’.

Ela sublinha a ironia ‘devastadora’ como um dos pontos altos desses textos: ‘Ficamos muito mais próximos de seu pensamento crítico’. A pesquisadora também prepara edição das crônicas com o crítico britânico John Gledson, pela editora da Unicamp.

Dificuldade de renovação

Sobre a ainda presente dificuldade de interpretação da obra do escritor, Gledson aponta ‘uma certa relutância em se ver a variedade da obra’. Para o pesquisador, ‘há um velho preconceito que diz que Machado é monótono, que a gama de emoções e até de idéias e situações na sua ficção é limitada’. Para Gledson, ‘esse preconceito vai de mãos dadas com uma incapacidade que muitas pessoas têm de entender a ironia machadiana’.

O crítico português Abel Barros Baptista, autor de ‘Autobibliografias – Solicitação do livro na ficção de Machado de Assis’ (ed. Unicamp), aponta uma dificuldade da renovação dos estudos dedicados ao autor. ‘Há um paradigma que vai se reproduzindo nos novos trabalhos, que ainda giram em torno das interpretações de Roberto Schwarz e Alfredo Bosi’, diz.

Para Barros Baptista, estudos renovadores como o da americana Helen Caldwell, nos anos 60, são raros e muitas vezes precisam partir do olhar estrangeiro. ‘Depois, os trabalhos [no Brasil] apenas tentam restabelecer a normalidade nos estudos machadianos’. Em Portugal, o pesquisador diz que Machado não tem despertado muitas pesquisas e que o centenário não deve gerar debates. ‘Há um desconhecimento grande em relação a Machado aqui. Parte da culpa é da analogia que se faz com Eça de Queirós, de que Machado seria o seu correspondente brasileiro. Isso é profundamente injusto’.’

 

Hélio de Seixas Guimarães

Presença inquietante

‘Às vésperas do centenário de morte, Machado de Assis continua a ser uma presença inquietante. Embora ocupe lugar central e mais ou menos indisputado na história da literatura produzida no Brasil, o escritor e sua obra ainda hoje guardam algo do caráter excêntrico, inclassificável e surpreendente que assombrou seus primeiros críticos. Prova maior dessa vitalidade está nos giros verdadeiramente espetaculares que a interpretação de sua obra sofreu ao longo do tempo -e nas polêmicas que continua a provocar.

Quem era Machado de Assis no século 19? Um grande poeta, homem de teatro e crítico, que também se dedicou à crônica, ao conto e ao romance, mantendo em seus escritos uma postura indiferente às grandes questões do seu tempo. Fino ironista que, do alto de sua torre de marfim, expedia escritos em linguagem levemente arcaizante e estrangeirada, mais condizente com a literatura de outros séculos do que com o que então se produzia nas capitais literárias do mundo.

Quem é Machado de Assis hoje? O maior contista e romancista brasileiro do século 19, não só profundamente interessado pelas questões do seu tempo e lugar, mas talvez o mais agudo e radical crítico das instituições sociais e políticas do Brasil do Segundo Reinado.

Um escritor que nunca se furtou ao corpo-a-corpo com seus leitores, colaborando com jornais e revistas e participando ativamente dos círculos literários. E que teria antecipado na sua escrita procedimentos das vanguardas do século 20, se é que não foi um pós-moderno ‘avant la lettre’. Entre aquele escritor alienado e retrógrado do século 19 e o escritor engajado e quase ‘vanguardista’ de algumas leituras de hoje, uma pequena multidão de críticos procurou entender esse fenômeno improvável no acanhado ambiente literário e cultural do Brasil -tão improvável que até os mais materialistas falaram em milagre.

Três tríades

Na impossibilidade de tratar de todos os estudos fundamentais, tão numerosa, variada e complexa é a fortuna crítica acumulada até hoje, pode-se pensar que a recepção da obra esteja organizada, grosso modo, em torno de três momentos e três tríades, formadas por críticos que se dedicaram de modo mais constante e sistemático ao estudo do caso Machado de Assis.

Entre os contemporâneos de Machado, o desnorteamento que provocou teve muito a ver com sua independência em relação às escolas e modelos.

Num ambiente ávido por ‘ismos’ -realismo, naturalismo, positivismo, evolucionismo- , o escritor manteve distância de qualquer sistema totalizante e de qualquer coisa que cheirasse a dogma.

Em vez de fazer eco ao último grito de Paris, como se esperava, buscou matéria em tradições muito variadas. Nas ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’, por exemplo, lançou mão de fontes da Antigüidade e da tradição satírica em língua inglesa, instituindo como referências autores e modos narrativos até então praticamente ausentes do horizonte literário no Brasil. Com isso, afirmava sua autonomia, provocando perplexidade e deixando exposta a estreiteza dos padrões e expectativas locais.

A crítica não demorou a acusar o golpe e chamou a atenção para o tom estrangeirado de Machado de Assis: ‘macaqueador de Sterne’, acusou Sílvio Romero; escritor recatado, quase vitoriano, deu a entender Araripe Júnior.

Até José Veríssimo, que da tríade inicial foi quem melhor o compreendeu, precisou criar para ele um lugar à parte do que até então se entendia como literatura brasileira, para poder absorvê-lo melhor.

Pêndulo

Às discussões iniciais em torno da pertença de Machado -se mais nacional que estrangeiro, se mais atual ou anacrônico- sucedeu um período marcado por tentativas de compreensão mais sistemática da obra. Também aí o pêndulo oscilou fortemente entre a tentativa de integrá-la ao contexto brasileiro e o esforço de filiá-la à literatura universal.

Esse período, compreendido entre as comemorações do centenário de nascimento, em 1939, e do cinqüentenário de sua morte, em 1958, foi marcado pela atuação de uma notável geração de críticos, que deram início às interpretações modernas da obra machadiana. Entre eles, a tríade formada por Astrojildo Pereira, Lúcia Miguel-Pereira e Augusto Meyer. Astrojildo Pereira enfatizou a inserção de Machado e sua obra na vida social brasileira.

Em ensaio famoso, cunhou o epíteto ‘romancista do Segundo Reinado’, refutando qualquer idéia de indiferença à vida local. Já Lúcia Miguel-Pereira tratou de engastar a obra na tradição literária brasileira, e a partir de dados biográficos detectou temas comuns aos vários romances, que no seu conjunto acompanhariam a ascensão social do homem Joaquim Maria Machado de Assis.

Em outro campo, Augusto Meyer enfatizou o autor em detrimento do homem, com estudos comparativos que teriam desdobramentos importantes nas gerações posteriores. Nos ensaios que produziu entre 1935 e 1958, Meyer identificou e caracterizou a profundidade e a radicalidade do projeto machadiano a partir de comparações com escritores como Pirandello e Dostoiévski.

Esse momento extraordinário da crítica coincidiu com o mapeamento mais completo da obra, reunido por José Galante de Sousa em trabalho monumental. Coincidiu também com a consolidação da imagem de um Machado de Assis oficial, em grande parte patrocinada pelo Estado Novo, que enfatizou no escritor seus traços de homem do povo, mestiço e funcionário público exemplar. Machado era alçado à condição de ‘patrimônio cultural brasileiro’.

A patrimonialização, no entanto, não foi capaz de imobilizar a obra, que a partir da década de 1960 passou por uma verdadeira revolução. Marco importante é a publicação, justamente em 1960, do livro de Helen Caldwell; nele, a crítica norte-americana defende que a traição de Capitu, dada como certa por várias gerações de leitores, não passava de calúnia de um homem enlouquecido pelo ciúme. O livro de Caldwell é o primeiro dos estudos de fôlego produzidos fora do Brasil, entre os quais se destacam a melhor biografia da juventude de Machado de Assis, publicada por Jean-Michel Massa no início dos anos 70, e mais recentemente os estudos do crítico português Abel Barros Baptista, nos quais se contrapõe às leituras que enfatizam os aspectos nacionais.

O livro de Caldwell também marcou o início de uma série de leituras baseadas na não-confiabilidade dos narradores machadianos, com desdobramentos importantes nas décadas seguintes, inclusive no trabalho de outro estrangeiro, o crítico inglês John Gledson.

Com inspiração confessa na obra de Roberto Schwarz, que deriva sua interpretação de Machado de Assis do projeto crítico de Antonio Candido, Gledson também problematizou e recaracterizou os narradores machadianos, principalmente dos romances da chamada segunda fase. Na crítica de Roberto Schwarz, as formas dos grandes romances machadianos imitam processos históricos e sociais, rompendo o quadro local na medida em que as contradições vividas na periferia do capitalismo e condensadas na fatura dos narradores são entendidas como a expressão talvez mais desconjuntada, se não monstruosa, das contradições e falsas promessas do capital, que é internacional. Gledson, por sua vez, tem desentranhado dos romances e das crônicas do escritor uma interpretação sistemática e conseqüente da história brasileira, que o escritor teria intencionalmente cifrado em sua ficção.

No outro vértice da tríade mais recente está a obra de Alfredo Bosi. Sem desconsiderar o contexto histórico-social, em seus ensaios Bosi põe ênfase nas implicações filosóficas, psicológicas e existenciais da obra e propõe a relativização das interpretações de orientação sociológica.

Em meio às divergências de pontos de vistas e perspectivas, as interpretações de Schwarz, Gledson e Bosi têm estimulado a leitura e a releitura da obra de Machado de Assis, como se nota no número crescente de estudos acadêmicos sobre o escritor, que também seguem sugestões e frentes de interpretação abertas pelos estudos de Raymundo Faoro, Silviano Santiago, José Guilherme Merquior, Alexandre Eulálio, Gilberto Pinheiros Passos, Marta de Senna e Alcides Villaça, ainda para ficar em alguns poucos críticos.

Perspectivas

E apesar do consenso que se formou ao longo do século 20 sobre sua importância, Machado de Assis e sua obra parecem estar ainda muito longe da paz dos cemitérios, como o leitor terá a oportunidade de ver em 2008. A publicação da correspondência e de várias séries de crônicas em edições prefaciadas, revistas e anotadas certamente trará novidades sobre o processo de criação do escritor, e até sobre o homem Joaquim Maria. Isso permitirá uma visão menos estanque da obra, tradicionalmente estudada por gêneros (romance, conto, crônica, poesia etc.), o que talvez seja um passo crítico possível e necessário nesta altura dos estudos machadianos. Se há alguma coisa a se esperar de uma efeméride, é que traga novos materiais e idéias, que ofereçam uma visão mais inteira da obra e do escritor, que de fato criou com seus escritos um pequeno universo de densidade, coerência e lucidez espantosas.

HÉLIO DE SEIXAS GUIMARÃES é professor de literatura brasileira da Universidade de São Paulo, autor de ‘Os Leitores de Machado de Assis -O Romance Machadiano e o Público de Literatura no Século 19’ (Nankin/Edusp, 2004).’

 

Sylvia Colombo

Machado divertia-se a cada página

‘Um milagre’. Foi assim que o mais importante crítico literário do mundo, o norte-americano Harold Bloom, 77, classificou Machado de Assis quando elencou, em ‘Gênio – Os 100 Autores Mais Criativos da História da Literatura’ (ed. Objetiva, 2002), os melhores escritores do mundo segundo seus critérios e gosto particular.

Fã do irlandês Laurence Sterne (1713-1768), Bloom conta que percorreu as páginas de ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’ atrás de rastros da influência do autor de ‘Vida e Opiniões do Cavalheiro Tristam Shandy’ (Companhia das Letras, 1998).

Adoecido e com dificuldades de locomoção, Bloom diz que tem na literatura hoje um consolo, e que lembrar Machado de Assis é trazer à memória novamente os momentos em que se divertiu com seus personagens. ‘Li ‘Brás Cubas’ há muitos anos, lembro do modo peculiar como estão separados os capítulos, mas, melhor do que isso, recordo ter dado risadas a cada página’, conta o crítico.

Por causa dos problemas de saúde, Bloom está temporariamente afastado das aulas na Universidade Yale, onde leciona há quase duas décadas. Bloom sempre se manteve distante com relação a certa tendência -percebida desde os anos 60- de críticos e intelectuais que classifica como ‘a escola do ressentimento’. Seriam estes responsáveis por ver a literatura a partir de contextos políticos e ideológicos. E que, por meio de uma interpretação multiculturalista -e principalmente de cunho marxista ou feminista- incluiriam no ‘cânone literário’ autores menores, apenas para abranger minorias políticas ou de gênero.

Essa corrente, expôs Bloom em seu ‘O Cânone Ocidental’ (ed. Objetiva, 1995), acaba por diminuir o valor puramente estético das obras literárias.

O crítico popularizou-se nos anos 70 por conta do conceito de ‘angústia da influência’, teoria que via a tradição literária como um ciclo, no qual os novos escritores se relacionam de forma ambígua com seus precursores na tentativa de chegar à própria originalidade.

Em ‘Gênio’, o escritor fugiu de classificações em voga no meio universitário e, como uma espécie de provocação, agrupou os escritores escolhidos em uma classificação inusitada, sugerida pela cabala.

Machado surge no conjunto denominado ‘Yesod’, que, numa tradução livre, significa ‘fundação’. Com ele estão o francês Gustave Flaubert, o português Eça de Queirós, o argentino Jorge Luis Borges e o italiano Italo Calvino. Todos considerados por ele como ‘ironistas trágicos’.

Bloom classifica Machado como o ‘Laurence Sterne do Novo Mundo’. Apesar disso, ressalta que a atmosfera construída por Machado em seus romances era sempre muito original, a despeito da força da influência do irlandês em sua obra.

De ‘Brás Cubas’, Bloom diz que, apesar de retratar criticamente a sociedade carioca do século 19, Machado não a ataca diretamente, preferindo uma ‘alienação’ e uma ‘frieza misteriosa’ que dirigem o olhar do protagonista. ‘O verdadeiro tema de Machado é a nossa mortalidade’, conclui, em ‘Gênio’.

Leia, abaixo, a entrevista que o autor concedeu ao Mais!, por telefone, de New Haven, Connecticut, onde vive.

FOLHA – Em ‘Gênio’, Machado de Assis é incluído na categoria ‘Yesod’, da cabala, relacionada à idéia de ‘fundação’, mas também do equilíbrio entre homens e mulheres na natureza. Pode explicar melhor?

HAROLD BLOOM – O tema principal dos textos de Machado são as relações entre homens e mulheres. São sobre isso seus melhores livros. Laurence Sterne também foi um dos maiores mestres mundiais no tratamento de temas familiares. E é dele que Machado saca, quase explicitamente, sua principal influência. Em ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’, que considero seu melhor livro, ele retrata essa tentativa de equilíbrio dentro de uma sociedade muito específica, a do Rio de Janeiro e do Brasil do século 19. Machado é um fundador no sentido de que não havia surgido, ainda, no Brasil, um escritor desse talento que retratasse uma época com tanta lucidez.

FOLHA – Pelos seus escritos, conclui-se que a influência de Sterne é o que define sua atração por Machado. Como ela se manifesta?

BLOOM – Há muitos escritores no mundo influenciados por Sterne. Um deles, certamente, é Charles Dickens (1812-1870). Principalmente em seus primeiros trabalhos, como ‘The Pickwick Papers’ (1836).

A relação de Machado e Sterne me fascina porque a obra do brasileiro dialoga com a do britânico na sua superfície, mas diferem em coisas essenciais. Sterne é um cristão e um moralista clássico. E a grande força de Machado é de ter sido um realista muito particular.

É difícil perceber qual dos dois é mais extremo em suas convicções. Machado não acreditava piamente em nenhum valor. Não era cristão, muito menos um moralista clássico.

Acho genial o modo como Machado recebeu Sterne em seu estilo de escrita, mas nunca abraçou os seus valores. Para alguém que lida com o tema da influência, como eu, é fascinante ver esses vínculos entre autores no tempo.

FOLHA – O sr. já disse que não gosta tanto de ‘Dom Casmurro’ como de ‘Brás Cubas’. Isso porque o primeiro seria menos ‘sterniano’?

BLOOM – Ambos os livros são maravilhosos. Se prefiro ‘Brás Cubas’ é por duas razões. Primeiro, porque gosto de procurar as pistas de Sterne nele. E depois, porque acho um livro divertidíssimo, absolutamente hilário. Machado é um grande romancista cômico.

Tenho uma memória muito viva da obra, lembro que ri em quase todas as páginas, mesmo tendo-a lido há tanto tempo. É um livro muito engraçado!

Meu crítico favorito, Samuel Johnson (1709-1784), uma vez disse que o legado de ‘Tristam Shandy’ não duraria. Ele estava errado, isso aconteceu, e esse herdeiro é Machado. ‘Dom Casmurro’ tem a mesma grandeza de ‘Brás Cubas’, mas não a mesma alegria. O fato de também ser escrito em primeira pessoa confere-lhe um brilhantismo que não surge nos seus textos em terceira pessoa, que não são tão bons.

FOLHA – Em ‘Como e Por Que Ler’ (ed. Objetiva, 2001), o sr. diz que ‘a perda da ironia é a morte da leitura, e daquilo que há de civilizado em nossa natureza’. Pode explicar a célebre ironia de Machado de Assis dentro desse contexto?

BLOOM – Sim. Por um lado, creio no significado do que escrevi. Mas é preciso ressaltar que as pessoas reduziram, através dos tempos, Machado ao classificá-lo com um rótulo de ‘irônico’ muito restrito.

Sua ironia é como a de Geoffrey Chaucer (1343-1400) ou de Shakespeare (1564-1616). É algo maior, que não se trata apenas de um jogo de palavras, de uma troca inteligente de colocações em um diálogo, por exemplo. A ironia de Machado está na atmosfera na qual seus personagens e o próprio autor se movem.

Quando ele é extremamente ofensivo, sabe que está sendo extremamente ofensivo, e gosta disso. Trata-se de uma marca especial de seu trabalho. Nós podemos sentir, enquanto estamos lendo, que Machado está se divertindo muito enquanto escreve.

FOLHA – Entre o senso comum, no Brasil, ‘Dom Casmurro’ é mais popular do que ‘Brás Cubas’. O sr. tem uma explicação?

BLOOM – Sim, é claro. Isso parece muito natural, pois trata-se de um livro que oferece algo a que alguém possa se agarrar com mais facilidade, uma intriga, um mistério, um clima de suspense que são fascinantes.

FOLHA – O sr. acha que Capitu é culpada ou inocente?

BLOOM – Antes de tudo, acho-a uma grande invenção. Mas não se deve deixar que ela obscureça as outras grandes mulheres que Machado criou, como a própria Virgília de ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’.

FOLHA – Falando em influência, há muita proximidade também entre as obras do português Eça de Queirós (1845-1900) e as de Machado. O que acha disso?

BLOOM – Essa foi a principal razão para que eu os colocasse lado a lado em ‘Gênio’, na mesma categoria. Quando li ‘A Relíquia’ (1887), imediatamente pensei: ‘Isso é Machado’. Pelo estilo, pela humanidade profunda e vil dos personagens e no que ambos têm de descaradamente audacioso e agressivo. O que o protagonista do livro de Eça [Teodorico Raposo] faz com a tia é algo atormentador. Ao mesmo tempo, ‘A Relíquia’ é hilariante, tem um humor parecido ao de Machado. Dizem que a obra mais importante de Eça é ‘Os Maias’, mas eu não concordo. ‘A Relíquia’ é o melhor que ele escreveu. Há também a grande coincidência de ambos terem sido escritos em português. Mas isso eu não sei explicar direito por que. Não conheço bem as particularidades da relação entre os dois países naquela época.

FOLHA – O sr. já veio ao Brasil?

BLOOM – Não, nunca. Tenho idéia de um lugar gigante, de um mundo à parte. Mais ou menos como vejo a China. É curioso dizer isso a alguém para quem o Brasil é uma realidade. Mas para mim é assim. Uma imagem. Um dos meus maiores arrependimentos é nunca ter ido ao Brasil. Agora sei que não haverá mais tempo.

FOLHA – O sr. trata Machado, desde o começo, como um escritor afro-brasileiro, ‘o maior literato negro surgido até o presente’. No Brasil, até pouco tempo atrás não era comum que se admitisse de imediato que ele era negro. O sr. sabia dessa controvérsia antes de escrever?

BLOOM – Eu tive uma grande surpresa quando li o cubano Alejo Carpentier (1904-1980). Pensei que ele fosse negro, porque questões de raça estão de alguma forma colocadas, mesmo de modo sutil e às vezes inconsciente, em ‘El Reino de Este Mundo’ (1949). Já a literatura de Machado não traz traço algum de raça. Então pensei que ele era branco e Carpentier, negro. Curiosamente, ao final, descobri que se tratava do contrário. Machado foi o maior escritor ‘afro’ que conseguiu escrever na língua do Novo Mundo sem trazer a questão da raça para seus textos. A sensibilidade que teve para ver uma certa decadência do homem define sua escrita. Não uma decadência do ponto de vista negativo, mas como um dado posto. E isso está acima da questão racial.

FOLHA – Os escritores que o sr. perfila em ‘Gênio’ ou no anterior ‘O Cânone Ocidental’ habitam principalmente o século 19. Como o sr. relaciona Machado a seu século?

BLOOM – O século 19 foi profícuo em gênios literários porque veio depois do florescer altamente romântico do século 18.

O tempo de Machado é o tempo de Oscar Wilde (1854-1900) e de uma imensa transformação no Ocidente. A ironia e a decadência estão por trás de toda a grande literatura produzida na época. Digo que Machado é um milagre porque incorpora isso, a que adiciona a digressão de Sterne.

Machado pode ser considerado, no contexto histórico em que surgiu, um espanto e um milagre. Mas o que me encanta de forma mais particular é o fato de que ele estava, o tempo todo, pregando peças nos leitores e nele mesmo.’

 

Eduardo Giannetti

Um mergulho em Dom Casmurro

‘O texto semeia, a leitura insemina. O leitor lê o livro, mas existem livros que lêem o leitor. À medida que lia, relia e me preparava para escrever este artigo -santa ousadia!- fui também me dando conta de uma imagem teimosa que volta e meia aflorava em meio ao trabalho: o olhar zombeteiro de Machado de Assis emergindo do fundo das páginas de ‘Dom Casmurro’ e caçoando do meu esforço em devassar os segredos da obra.

Não era uma imagem propriamente visual. Era a sensação difusa e semiconsciente de estar sendo observado. De que Machado calculara de algum modo tudo aquilo, armara milimetricamente o jogo, e depois se postara em algum camarote da eternidade para desfrutar do seu engenho e entreter-se às minhas custas.

De repente, sentia, os papéis se invertiam: a obra se divertia comigo. Ela me interrogava; eu me explicava. Se os livros tivessem olhos, os de ‘Dom Casmurro’ seriam oblíquos e dissimulados -capazes de tragar em suas linhas gerações de intérpretes empenhados em decifrá-los.

Textos seduzem. ‘Dom Casmurro’ se oferece ao nosso deleite, enfeitiça-nos com sua arte, bule com a nossa intimidade, mas jamais se deixa possuir inteiramente. O romance secreta ambigüidade por todos os poros. A superfície polida que o envolve é análoga à da vida que retrata: uma fina película de decoro sob a qual se agitam -sem nunca irromper- as mais ferozes, traiçoeiras e inconfessáveis correntezas.

‘Dom Casmurro’ não tem prefácio. A autobiografia ficcional de Bento Santiago é uma redoma intransponível. Só temos acesso aos estados mentais e ao universo subjetivo de um narrador que resolve contar, movido pelo tédio de uma velhice amarga e reclusa, episódios cruciais de sua vida.

Farta em divagações, a narrativa carece de acontecimentos. Atrofia da vontade, hipertrofia da cogitação. A máxima que inspira a trama não é o ‘no princípio era verbo’ bíblico ou o ‘no princípio era a ação’ faustiano. Para o Otelo anêmico de Machado, ‘no princípio era a elucubração’.

A perspectiva interna de dom Casmurro -o Bentinho cético da velhice- governa brutalmente o retrospecto de sua vida. Tudo o que sabemos dos personagens foi filtrado por sua memória. A grande incerteza -a dúvida que Machado semeia- reside no grau de confiabilidade do relato.

Até que ponto a retrovisão do narrador corresponde ao que de fato se passou com ele? A incerteza é radical. Quanto mais se busca contê-la, pinçando aqui e ali resíduos de objetividade, mais ela se espalha. Imagine no que se transformaria aquela mesma trama, só que reconstruída a partir do ponto de vista de Capitu ou Escobar.

O desfecho é fatal. O leitor termina e a pergunta o assalta. Afinal, traiu ou não traiu? Por mais irrespondível e irrelevante que seja, a questão não cala. O leitor volta ao texto e, lupa na mão, sai à cata de pistas: interroga os personagens, esmiuça as alusões eruditas. Não há chave, não há prova.

O equilíbrio das evidências é exato. A saída lógica, no caso, seria a suspensão da crença, mas a curiosidade não arreda. Quem sabe um fato novo? E se, por absurdo, um manuscrito inédito de Machado ou uma carta extraviada de Capitu revelassem toda a verdade? Estaria resolvido o mistério?

O verdadeiro enigma de ‘Dom Casmurro’ não é tanto o suspense indecidível que nos propõe, mas a força do transporte ficcional que o romance proporciona, a ponto mesmo de despertar uma demanda espontânea por respostas objetivas às dúvidas que suscita. Quase sem se dar conta, o leitor é transportado ao universo suburbano de Bentinho e se descobre a cobrar a verdade dos fatos em meio a um enredo que, como bem sabe, não passa do relato semidelirante de um narrador casmurro.

O mais intrigante é que tanto essa ilusão de realidade como a demanda por uma suposta verdade objetiva que esclareça os fatos emerjam de uma narrativa que prima pela violação sistemática das regras e convenções do romance realista.

Como em ‘A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristam Shandy’ de Sterne ou no ‘Jacques, o Fatalista’ de Denis Diderot [Perspectiva], seus tios-avôs europeus, o romance de Machado vira do avesso o intento de se buscar embalar o leitor fazendo-o esquecer que está lendo um livro.

‘Dom Casmurro’ sapateia sobre os cânones do realismo, ainda que preservando um meticuloso andaime de referências às datas e ao sítio urbano-geográfico dos acontecimentos, às idades e feições dos personagens e, principalmente, ao modo como parasitam seu ganha-pão. O surpreendente é que essa ruptura libertária com o bom-mocismo narrativo em nada prejudique o alcance do transporte ficcional que a leitura do romance suscita. Ao contrário. Ao escancarar as entranhas do fazer literário e tudo que ele tem de postiço e arbitrário, o livro produz um efeito não de frio distanciamento, mas de hiper-realismo.

O narrador-personagem Casmurro não deixa a ‘querida leitora’ na mão. A troça do romance escapista também se presta ao escapismo. A negação metaboliza e ultrapassa o negado: a rejeição do realismo intensifica a ilusão de realidade.

Mas nem só de alquimia narrativa e fria perfeição de engenharia sintática é feito ‘Dom Casmurro’. Se o romance rompe com o realismo literário, ele abraça com revigorado ímpeto o realismo psicológico. O apuro formal é o veículo de uma causa cognitiva precisa.

A vida mental dos personagens é dissecada com precisão cirúrgica pelo bisturi machadiano. O cientista Fortunato, do conto ‘A Causa Secreta’, não faria melhor. Do verme das pequenas vaidades que envenenam o cotidiano ao alvoroço íntimo do amor que desponta, poucas vezes o psiquismo humano foi flagrado com tamanha acuidade. Bem lido, ‘Dom Casmurro’ vale por um tratado de psicologia moral.

Cada indivíduo é um microcosmo. A idéia de que a mente em seu estado normal abriga pulsões desconhecidas e, por vezes, capazes de assombrar quem as detecta em si, não precisou esperar pelo advento da psicanálise. Platão vai ao ponto: ‘Em cada um de nós, mesmo naqueles que parecem mais comedidos, existem desejos terríveis por seu caráter selvagem e sem leis, e que se deixam revelar pelos sonhos’ (‘República’). A fera subterrânea aí está. Como lidar com ela?

As estratégias para se chegar a um ‘modus vivendi’ com os impulsos arcaicos e exigências instintivas que nos habitam em segredo configuram o campo de forças da personalidade.

O equilíbrio é tênue e sujeito a súbitas reviravoltas. O mesmo Bentinho que recém-formado ouvia fadas (‘tu serás feliz, Bentinho!’) e recém-casado ‘inventava passeios para que me vissem, me confirmassem e me invejassem’ transformou-se no morto-vivo dom Casmurro (‘moro longe e saio pouco, tenho-me feito esquecer’); alguém que, ao receber a conta das despesas com o túmulo do filho Ezequiel, limita-se a suspirar: ‘Pagaria o triplo para não tornar a vê-lo’.

‘Aquele que deseja, mas não age, fomenta a pestilência’. O provérbio de [William] Blake vai ao cerne do drama de Bentinho. Filho único e superprotegido de mãe viúva, educado em casa por um padre antes de ser mandado a contragosto para o seminário, Bentinho se transforma no protótipo do bom-moço. Vive para agradar os outros. ‘O homem mais puro do mundo’, no dizer de Capitu.

Ocorre, porém, que a vida de ‘anjo do céu’ não é fácil. Para nunca desapontar os que o cercam, ele maltrata a si mesmo. O efeito dessa auto-anulação sistemática é que os impulsos e apetites que não encontram vazão no mundo passam a se voltar para dentro, minando a sua relação com Deus e consigo mesmo. Preserva-se a respeitabilidade, salvam-se as aparências e o decoro, mas o preço do desejo inibido é cada vez mais alto: a pestilência se espalha.

O conflito intrapessoal e o retorno do reprimido pontuam a trama. As escaramuças e armistícios viscosos entre o anjo e a fera dão a tônica do romance. Em três momentos críticos, a escalada do conflito aflora à superfície da consciência e permite entrever a besta atiçada em ação: o seminarista Bentinho deseja secretamente a morte da mãe enferma; o marido da adorada Capitu beira o adultério com a esposa de seu melhor amigo e o pai outrora exemplar de Ezequiel por um triz não mata o filho inocente, servindo-lhe o café com veneno preparado para o seu malogrado suicídio.

O relâmpago de egoísmo e luxúria no episódio do ‘desmaio da piedade filial’ é exemplar. Bentinho está obcecado pelo desejo de casar com Capitu. Ocorre que não pode consumar a paixão, pois foi prometido pela mãe à vida religiosa. Uma tentativa de pedir-lhe a compreensão para o caso resulta em humilhante fiasco. A covardia o emudece e o futuro seminarista aquiesce. Em vez de confessar o que sente por Capitu e, assim, magoar a mãe, ele apenas declara: ‘Eu só gosto de mamãe’.

Um dia, porém, a mãe adoece. Bentinho é chamado às pressas do seminário e, em meio à aflição, vislumbra um raio torto de esperança. Em vez de rezar pelo seu pronto restabelecimento, como era dever de filho, abriga a fantasia de que, com a mãe morta, o caminho ficaria livre para os braços da amada. ‘Mamãe defunta, acaba o seminário’.

D. Glória melhora e Bentinho se arrepende da maldade contemplada. Propõe-se a expiar a culpa com um gesto típico das transações fraudulentas por meio das quais restaurava seu armistício moral.

‘Então levado do remorso, usei ainda uma vez do meu velho meio das promessas espirituais, e pedi a Deus que me perdoasse e salvasse a vida de minha mãe, e eu lhe rezaria 2.000 padre-nossos… Eram mais 2.000, onde iam os antigos? Não paguei uns nem outros, mas saindo de almas cândidas e verdadeiras tais promessas são como a moeda fiduciária -ainda que o devedor as não pague, valem a soma que dizem.’

Bentinho dissimulou da mãe o que sentia. O que ele afinal não consegue, porém, é dissimular de si mesmo, sem fraquejar, o que sentia por ela. Nem sempre é fácil sentir o que em nós está sentindo.

Bentinho compreende que a arte da dissimulação requer não apenas duplicidade, mas duplo talento. Fingir para fora não é o mesmo que fingir para dentro: ‘Uma certidão que me desse 20 anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim’. Ou, como ele se queixaria mais tarde, na maré montante da suspeita e da repulsa pelo filho que cada vez mais faz lembrar Escobar, ‘mas o que pudesse dissimular ao mundo, não podia fazê-lo a mim, que vivia mais perto de mim que ninguém’.

Ele se acostuma de tal modo a se disfarçar dos outros que acaba se disfarçando de si. Na liga insossa do seu caráter, as fronteiras desvanecem -à falsidade externa do hipócrita social, virtuose da afabilidade, junta-se a falsidade essencial do hipócrita interior, virtuose do auto-engano.

O resultado é a perda de vitalidade, fruto da desintegração psíquica, e o esfarinhamento progressivo da personalidade. Idéias sem pernas, fantasias profusas, orgias de racionalização. Agir, só em último caso.

Ameaça muito, nada executa; promete e jura de boa-fé, não cumpre. Premido pela fera do ciúme, Bentinho perde o pé de sua realidade interna e o senso de realidade. Desesperado, decide matar-se.

Vai à farmácia e compra o veneno. Sai pela ruas levando a morte no bolso. Visita os parentes, janta fora e vai ao teatro -estão levando ‘Otelo’. Quando Desdêmona morre pelas mãos do marido suplicando inocência, o público irrompe em ‘aplausos frenéticos’. Do que o Mouro não foi capaz por causa de um simples lenço! A desproporção agride. A conclusão de Bentinho tem a força de um teorema: ‘O último ato mostrou-me que não eu, mas Capitu devia morrer’. Do que a distorção egocêntrica aliada à lógica do ciúme -’green-eyed monster’- não é capaz?

Bentinho vagueia até a madrugada. Retorna, mete-se no escritório e decide que é hora de consumar o ato. Manda vir o café para misturar a droga. Uma imagem lhe vem à cabeça.

É que Catão, o paradigma da virtude entre os romanos antigos, antes de se matar, leu e releu um livro de Platão. Por que não reviver a bela cena? ‘Não tinha Platão comigo; mas um tomo truncado de Plutarco, em que era narrada a vida do célebre romano, bastou-me a ocupar aquele pouco tempo, e para em tudo imitá-lo, estirei-me no canapé.’ Assim disposto, nosso Catão de subúrbio se entrega por alguns instantes à leitura edificante e à ‘cocaína moral dos bons livros’.

Logo outra imagem lhe surge. O que imaginarão os outros quando ele for encontrado ali, estirado no divã, o volume caído ao lado? Bento imitando Catão? Resolve desistir da idéia. Repõe o volume na estante ‘antes de beber o veneno’.

A inversão é sublime. Sozinho no escritório, Bentinho simula a pose de varão romano perante si mesmo -é como se imagina. Quando lhe ocorre que a pose, veiculada nos jornais, pode empanar a integridade do ato, ele dissimula a simulação -é como deseja que os outros o imaginem. Para não parecer o que ele é (simulacro de Catão), finge ser o que não é (ele mesmo). Onde termina o hipócrita social, onde começa o hipócrita interior? Como dialética entre pose íntima e pose pública seria difícil pedir mais.

Questão da paternidade O enigma da paternidade de Ezequiel seria passível de solução: um teste de DNA o resolveria. Mais escorregadia é a questão da paternidade autoral do livro. Machado é o genuíno pai da criança. Mas qual a natureza da relação que mantém com o pai de aluguel da obra, este híbrido de memorialista e moralista cético que é Casmurro?

A opção pela primeira pessoa narrativa permite ao escritor dizer o que pensa (ou não) sem jamais se expor. Machado deita e rola no uso do estratagema.

Em ‘Dom Casmurro’, como já fizera em ‘Memórias Póstumas’, sua voz se insinua de forma intermitente nas falas do narrador, sem que nunca saibamos se é ele mesmo ou o personagem que tem a palavra. O espantoso talento literário do filho de d. Glória só faz crescer a suspeita de contrabando.

Em algumas passagens o timbre machadiano é inconfundível. Penso nos epigramas lapidares, muito ao estilo dos moralistas franceses do século 17, espalhados como dádivas pelo texto. Mas a presença de Machado não se reduz a pitadas virtuosísticas. O romance traduz uma concepção geral e uma atitude frente à vida. Que visão da condição humana emerge das profundezas do livro?

Amor, religião, política, ciência, poesia, filosofia, amizade -escolha um caminho para a salvação do homem, um sentido possível para o existir: nada escapa ileso do raio-X machadiano. Ele não faz concessões: escava e goza; descasca e ri.

O contraste com Dostoiévski é gritante. Mesmo no mais tenebroso crime do escritor russo há um vislumbre de esperança. Em Machado não há crime: tudo se afrouxa e esmorece. Mas também não há esperança. Machado escarafuncha a miséria inconfessa dos personagens, mete a agulha na ferida e escancara o que há de postiço, mesquinho e absurdo em suas crenças e aspirações. ‘Oh! como a esperança alegra tudo’, recorda Casmurro de sua mocidade. ‘Amai, rapazes!’

O pessimismo machadiano é um fato, mas como interpretá-lo? Mário de Andrade indagou: seria possível amar Machado?

A comparação com outros mestres, mais esperançosos do homem, leva-o a concluir: ‘Aos artistas a que faltem esses dons de generosidade, a confiança na vida e no homem, a esperança, me parece impossível amar. A perfeição, a grandeza da arte é insuficiente para que um culto se totalize tomando todas as forças do crente. A um Machado de Assis só se pode cultuar protestantemente’.

Cito a opinião de Mário de Andrade para me contrapor a ela. É mais fácil admirar Machado do que amá-lo. Mas o parecer do modernista padece de uma falta de empatia e generosidade ainda maior do que aquela que atribui a Machado.

O diabo em forma de pessimismo em seu legado talvez não seja tão feio como se pinta. Machado castiga e escarnece de muita coisa: o sentimentalismo derramado dos românticos; o consolo precário e oportunista das religiões; as pretensões da ciência moderna; as aberrações da política; o ardor fugaz dos amantes; os embustes da moralidade; a vaidade do fazer literário; sonhos de glória; qualquer forma de entusiasmo ou exaltação do ânimo. O capítulo das negativas vai longe.

Seu pessimismo, contudo, não é um lamento queixoso ou a lamúria das ilusões perdidas.

Nele não há traço de rancor. O que temos é um pessimismo viril, no qual o distanciamento, o apuro da forma, o humor e uma espantosa acuidade psicológica sustentam uma atitude de crítica perante nossa tragicomédia de subúrbio.

À negatividade de superfície que recobre o projeto machadiano de flagrar nossa miséria inconfessa é preciso contrapor os valores que sua obra afirma: o valor estético da perfeição formal; o valor cognitivo de sua psicologia; o valor existencial do humor como arma de defesa, reação e transcendência diante da vida tal como está.

Parafraseando Albert Camus, para quem o ‘desprezo’ seria a resposta do homem diante do seu absurdo, em Machado não há destino que não se transcenda pelo humor.

Quem escreve uma obra, por mais sombria, revela algum otimismo. Se os pessimistas realmente acreditassem no que pregam, não haveria sentido em dizê-lo. Se tudo é falso e nada importa, então por que haveria de importar a falsidade e desimportância de tudo? Se ela importa, então negamos a premissa -algo tem valor. Mas se não importa, como de resto tudo mais, então voltamos ao ponto de partida- a pregação pessimista também não importa. A vida segue o seu curso.

Imagine um cético da possibilidade do conhecimento, mas que defende o seu ponto de vista com argumentos robustos, evidências cuidadosas e lógica impecável. Instabilidade análoga perpassa Machado.

Por mais compacto e implacável que possa parecer à primeira vista, o fato é que o pessimismo machadiano aloja em si uma singular contradição: ele almeja compartilhar o seu desencanto. A pergunta que não cala é: por que dividir e espalhar assim a desesperança? Em nome do que imortalizar o legado de sua descrença?

O ato desmente a fala. A busca e o sofrimento humanos não lhes são indiferentes. A vida errada é senha de outra vida, não a que é narrada. Do fundo do desencanto compartilhado, a voz humilde da esperança teima em se fazer ouvir, a dizer que há algo por que existe e por que vale a pena viver.

‘Todas as coisas boas’, observa Nietzsche, ‘estimulam à vida, mesmo um bom livro escrito contra a vida’. O pessimismo machadiano, concluo, não é ponto de chegada, mas travessia. É preciso passar por ele, mas justamente para assimilar sua força e ir além dele. A casca protege o fruto.

EDUARDO GIANNETTI é economista, cientista social e professor do Ibmec-SP. É autor de ‘O Valor do Amanhã’ (Companhia das Letras), entre outros livros.’

 

Carlos Heitor Cony

Quincas diante de si mesmo

‘Freitas, personagem secundário de ‘Quincas Borba’, define-se como ‘arquiteto de ruínas’. Outro Freitas, meu amigo Edgard Freitas Jr., me lembra que Machado não é para ser lido, mas pensado.

Por isso mesmo, dando razão aos dois Freitas, ao personagem e ao amigo, sempre que me perguntam qual é o romance que mais aprecio na literatura brasileira, digo sempre que é ‘Quincas Borba’, continuação quase natural das ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’.

Comecei a percorrer o labirinto-enigma de Machado pelo óbvio ‘Dom Casmurro’. Durante uns 20 anos considerava o drama de Bentinho e Capitu como o ponto alto da ficção nacional. Depois, passei a gostar mais do ‘Brás Cubas’, aquele capítulo final dos ‘não’ é uma das melhores páginas da literatura universal. Somente na maturidade, depois de algumas releituras, cheguei ao ‘Quincas Borba’. E fiquei com ele para sempre.

Não entendo de crítica literária, por isso me limitarei a transcrever algumas linhas que assinalei no texto ao longo de várias releituras. Como disse um dos Freitas citados acima, são para ser pensadas e salvadas no disco rígido de nossa vida e memória.

‘O maior pecado, depois do pecado, é a publicação do pecado. Em todo caso, é mais seguro crer no pior. O silêncio é um tumulto. A moral é uma, os pecados são diferentes. Que sabe a aranha a respeito de Mozart? Ignorar era um benefício. (A suspeita) vinha de si mesmo ou de fora? Há entre o céu e a terra muitas mais ruas do que sonha a tua filosofia -ruas transversais.’

Pedir-lhe perdão. De quê? ‘Não sabia, mas queria ser perdoado. Acabou por escrever todos os livros que lera. Conversar com os seus botões. Os botões operam sincronicamente conosco; formam uma espécie de senado, cômodo e barato, que vota sempre as nossas moções. Minha vida é uma imagem fiel da minha cara, e vice-versa. Aqui é que o ciúme trouxe ao nosso amigo uma dentada de sangue. O desejo de saber tudo era, em resumo, esperança de descobrir que não havia nada. Tão certo é que a paisagem depende do ponto de vista, e que o melhor modo de apreciar o chicote é ter-lhe o cabo na mão.’

‘Ao vencedor, as batatas! Tinha-as esquecido de todo, a fórmula e a alegoria. De repente, como se as sílabas houvessem ficado no ar, intactas, aguardando alguém que as pudesse entender, uniu-as, recompôs a fórmula, e proferiu-a com a mesma ênfase daquele dia em que a tomou por lei da vida e da verdade. Não se lembrava inteiramente da alegoria; mas a palavra deu-lhe o sentido vago da luta e da vitória: Ao vencedor, as batatas!’

Paro com as citações. Poderiam ser muitas, como ‘os morangos adúlteros’, os ‘olhos amotinados’, que me parecem mais reveladores do que os olhos oblíquos e dissimulados de Capitu. Gosto especialmente de certas pontuações que são freqüentes em ‘Quincas Borba’: sem público, diante de si mesmo. A alma espanada. É muito; é demais. Toda nada.

Machado tem sido criticado por desprezar a paisagem. Coelho Neto dizia que as casas de Machado não tinham quintais -aliás, é o que não faltava nos romances tradicionais daquele tempo, sobretudo nos de José de Alencar e do próprio Coelho Neto. Para explicar esse desprezo machadiano pela paisagem, Gilberto Freyre, este sim, um apóstolo de quintais, observou que Machado não abria janelas para não se deparar com o morro fatal, onde nascera.

Não aprecio pensamentos sofisticados. Prefiro os de Quincas Borba, não o filósofo mas o cão que deu título ao livro: ‘Não dorme, recolhe as idéias (…) Mas já são muitas idéias, -são idéias demais; em todo o caso, são idéias de cachorro, poeira de idéias’.’

 

Ernane Guimarães Neto

A ilha da razão

‘A centenária Biblioteca Municipal Machado de Assis, em Itaguaí, recebeu novas instalações em 2006. Prospera o município que sedia um dos principais portos de exportação de minério do Brasil. Nos tempos de Machado de Assis, Itaguaí não era um lugar tão desenvolvido. Itaguaí não era um lugar, era um nome.

A cidade era um nome distante. Hoje, com cerca de 95 mil habitantes, celebrizada por ‘O Alienista’ e citada de passagem em outras páginas machadianas, Itaguaí é mais conhecida pelos cariocas de Santa Cruz (extremo oeste do Rio) como uma boa parada para consertos e borracharia nas oficinas espalhadas a caminho do porto.

Cem anos atrás, a cidade do Rio de Janeiro não havia chegado tão perto: o centro fica a cerca de 70 quilômetros dali. Em ‘O Alienista’ a viagem requer uma comitiva e não se cogita ir e voltar no mesmo dia.

O misto de isolamento e proximidade em relação à capital fazia de Itaguaí um terreno conveniente para a história de ficção em que uma população inteira é submetida ao exame psiquiátrico e sua maioria é internada por insanidade -mesmo que Machado só conhecesse o lugar por ouvir falar.

Lucro

Apesar de serem facilmente encontráveis referências à estada de Machado em solo itaguaiense, não há documentos que atestem sua passagem por lá. Diz-se até mesmo que o escritor teria morado em Itaguaí.

‘Isso é ridículo, sem fundamento. Ele pode até ter conhecido Itaguaí, mas não existe registro’, diz Ubiratan Machado, que pesquisa a vida do escritor e é autor de livros como ‘Bibliografia Machadiana’ (Edusp). A própria prefeitura, que reproduz em seu sítio (www.itaguai.rj.gov.br/historia.asp) a lenda de que Machado morou na Casa Verde, declara à reportagem não haver provas documentais.

Assim como o escritor pode se apropriar de um nome de cidade para fazer ficção, itaguaienses não perderam a chance de identificar uma Casa Verde. ‘Não era verde, na realidade, mas possuía janelas verdes, tal qual no conto’, afirma Thomaz Amorim, doutor em literatura comparada que foi à cidade em busca do edifício.

Autêntica fonte de inspiração machadiana ou inspirada simulação, o casarão não rendeu lucro ao ‘turismo machadiano’. Com um PIB per capita de R$ 26.788, maior do que os do Rio (R$ 19.524) ou de São Paulo (R$ 24.083, valores de 2005), o município tem outras necessidades. A casa teria sido demolida para a construção de uma agência bancária.

O nome

Alguém com conhecimentos de história pode tentar identificar em quem especificamente Machado pensava ao criar uma cidade de loucos; qualquer leitor sabe que, além da crítica específica, há um assunto universal.

E a biblioteca Machado de Assis ajuda a entender como a pequena cidade se prestava à escrita alegórica. Um mapa na parede mostra a geografia local: a foz do rio Itaguaí formando um delta, isolando uma porção de terra diante da baía de Sepetiba. ‘Tem material sobre a história de Itaguaí?’ A bibliotecária puxa da própria mesa um fichário com cópias de livros, jornais e material governamental.

Lêem-se interpretações divergentes para o nome da cidade: ‘Tagoahy, água amarela’; ‘Itaguay, lago entre pedras’. Eduardo Navarro, professor de tupi na USP, critica as traduções, preferindo aquela em que ‘ita’ é pedra, ‘ku’a’ é enseada e ‘y’ é água ou rio – ‘rio da enseada de pedras’. Mas diz não acreditar que tal etimologia pudesse ‘estar implícita num texto sem uma nota explicativa do escritor’, mesmo numa época em que os leitores tinham mais afinidade com o idioma.

‘A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente’, diz Simão Bacamarte, o alienista. No texto de Machado de Assis, na geografia e na língua essa cidade fica perto, mas para chegar lá é preciso ultrapassar um limite.’

 

Ivan Teixeira

O altar e o trono

‘Consensualmente, pensa-se que ‘O Alienista’ (1882) fala da loucura como condição para satirizar o positivismo. Sustenta-se também que o texto ridiculariza a centralização do poder.

Em outra perspectiva, é possível interpretar a novela como paródia da luta pelo controle social, singularizada em momento agudo da disputa entre a igreja e a ciência, que dominam as verdadeiras hipóteses de comando -na narrativa, a política (vereadores e povo) nada mais faz do que se desgastar em gestos de retórica inoperante.

De modo mais amplo, trata-se de uma resposta alegórico-humorística a um conjunto de questões do Segundo Reinado: dissidências entre o Estado e a igreja; consolidação da psiquiatria no Brasil; discussões sobre a unidade do Império.

Fiel a certa diretriz internacionalista da Igreja Católica, o bispo de Olinda, dom Vital de Oliveira, proibiu, em 1872, a presença de maçons nas irmandades de sua jurisdição, no que foi seguido por dom Antônio de Macedo, em Belém. O Estado manifestou-se contra os interditos episcopais.

Como os bispos relutassem em sobrepor a Coroa ao Vaticano, o Conselho de dom Pedro 2º condenou-os a quatro anos de prisão. O Vaticano protestou, e a população brasileira ficou dividida. Houve mobilização política e cultural, até que, em 1875, os prelados foram anistiados. O imperador ter-se-ia, então, declarado ‘vencido, mas não convencido’.

Os caricaturistas das revistas ilustradas produziram intenso discurso anticlerical. Rafael Bordalo Pinheiro, sintetizando o desfecho da crise, publicara uma charge em que o imperador recebe golpes de Pio 9º, com a legenda: ‘Afinal… deu a mão à palmatória!’.

Sete anos após o conflito, Machado de Assis entrou no debate por meio da alegoria de ‘O Alienista’, empregando o ceticismo irônico contra todas as forças em jogo, particularmente contra a Igreja Católica.

A novela pode ser entendida como uma variante verbal das caricaturas do período, das quais se pode tomar a de Bordalo Pinheiro como símbolo, graças a seu poder de síntese.

Nas veladas insinuações da autoridade do padre Lopes sobre Simão Bacamarte, vislumbra-se o interminável debate entre a teologia e a ciência, empenhadas com igual obstinação em apresentar a melhor hipótese sobre a origem do mundo e os meios de governá-lo.

Na trama, a igreja não só vigia como procura orientar os movimentos da ciência. Esse pormenor, aliás, será um dos enigmas da narrativa, que, em meio ao crescente prestígio da ciência, como que esconde, para revelar, a camaleônica autoridade da igreja sobre aquela noção que se projeta até o final do texto, quando o vigário pronunciará o veredicto sobre a insanidade do alienista.

Bacamarte, impondo-se como o mais elevado grau de racionalidade civil, será metáfora não só de d. Pedro 2º, mas do governo ilustrado da razão. Sua face cômica decorre do exagero da convicção no poder moderador do juízo, propriedade que, não obstante, torna-o primeiro e único na cidade.

Padre Lopes, por outro lado, será interpretado como encarnação das infiltrações dos arranjos de corte e do suposto bom senso, orientados para o controle da população. As alusões contra a igreja não pretendem caricaturar sua disposição para o mando, mas ironizar os artifícios empregados para dissimular essa disposição.

Apesar do zelo do clero contra a ciência, padre Lopes não resiste ao segundo conceito de loucura da novela e é internado na Casa Verde. Mas, como a terapia lhe oferecesse a hipótese de uma fraude vantajosa, reduz-se imediatamente à normalidade do vicio e é solto.

O alienista, por suspeitar que ele próprio seja a única pessoa com retidão de caráter em Itaguaí, põe-se à prova diante de um conselho presidido pelo padre Lopes. O vigário não hesita em denunciar as invulgares qualidades éticas do médico -o que o obriga a se internar como anormal, por correto.

Assim como, na narrativa da história, o Vaticano triunfou sobre o imperador, não se pode negar que a novela termina pela vitória da teologia.

Após encarcerar a ciência na Casa Verde, padre Lopes, que antes elogiara as virtudes do médico, impõe-se o trabalho de espalhar o boato de que jamais houvera outro louco em Itaguaí a não ser o alienista.

No limite, o livro insinua o princípio de que o poder deve emanar da razão, encarnada em feixe ideal de forças concêntricas de virtudes absolutas, que se associam à ciência, à isenção e à verdade, concebidas como adequação do logos à práxis. Mas, como o mundo vive às avessas, essa noção também não resiste ao riso.

IVAN TEIXEIRA é professor de literatura brasileira na Escola de Comunicações e Artes da USP e na Universidade do Texas, em Austin.’

 

 

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