Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Frivolidades como prioridades

Faltam, da parte de institutos de pesquisa, dados e avaliações numa área que considero indispensável à compreensão do que, efetivamente, vem ocorrendo na vida do cidadão brasileiro. A mídia divulga, quase diariamente, índices econômicos de crescimento nesse ou naquele setor, alta ou baixa nas aplicações de investimentos, porém não se encontram em jornais ou revistas matérias que, por exemplo, informem quanto a classe média gasta em produtos relativos a corpo e esporte e, na contrapartida, quanto destina de sua renda para aquisição de conhecimento (formação escolar / livros) e cultura (cinema / teatro / visita a museus e afins). Segundo parece, ‘saúde corpórea’ e ‘saúde cultural (e mental)’ andam, há muito, dissociadas.

De início, fique clara uma coisa: antes de se remeter a cobrança para instâncias governamentais (municipal, estadual ou federal), que ela seja direcionada para a função exercida pelos mass-media. Procurarei ser mais preciso: as instâncias governamentais elegem, como prioridade, o atendimento a camadas que, por estarem excluídas do direito às necessidades primárias de sobrevivência (alimentação, tratamento de doenças, obras de saneamento, habitação e provimento educacional), requerem de órgãos públicos assistência permanente e direta. Para populações carentes, não há outra opção. A conclusão, portanto, é óbvia: dos carentes cuida o Estado.

País de ‘idiotas felizes’

Pergunta outra se dirige a quem cuida da qualificação cultural, tanto dos setores carentes quanto daqueles cujas necessidades básicas estão asseguradas (classe média). Desses, os ‘carentes’ e a ‘média’, deveria ocupar-se a mídia. Como? Qualificando e aprimorando a elevação da exigência cultural. Todavia, a mídia brasileira não demonstra qualquer inclinação no sentido de reformular seus métodos de codificação, ou mesmo suas pautas. Ao contrário, a mídia ignora os segmentos carentes, oferecendo-lhe, via TV aberta, o que há de pior, além de colaborar para a deterioração cultural da classe média.

No âmbito da mídia eletrônica, a avaliação, ao longo das duas recentes décadas, é espantosa: as grandes redes multiplicaram investimentos em esporte (notadamente, cobertura plena de todas as competições de futebol, nacionais e internacionais, vôlei, fórmula 1), em loteamento de horários destinados à proliferação de ‘seitas religiosas’ e, assim, a vida brasileira segue seu curso não sei para onde. O fato é que as populações carentes gastam, graças a incentivos governamentais (o que é necessário), em alimentação para o corpo. No contraponto, o que a classe média gasta é em ingressos nos estádios de futebol, pacotes de transmissões esportivas, via pay-per-view, produtos rítmico-musicais de qualidade sofrível, aquisição de novos automóveis e, o que sobra, vai para ‘educação’ dos filhos.

Imaginemos outra realidade: há muito se sabe que a preferência nacional se dá pelo apelo audiovisual. Todavia, os programas da maior rede de televisão do país, em lugar de priorizarem temas e entrevistas que estimulem a inteligência, entulham os horários com ‘plantações de abobrinhas’. Escritores e intelectuais não existem no horizonte das TVs abertas. A impressão que fica é a de que o Brasil é um país de ‘idiotas felizes’, a julgar pelo que, diariamente, é exibido.

‘Vampirização mútua’

A avaliação honesta terá de levar em conta que, há muitos anos, em função da escolha tramada pelos meios de comunicação de massa, a taxa de densidade crítica do ser brasileiro atingiu patamar de exigência mínima. A constatação é: mais dinheiro no ‘bolso’ e menos alimento para o cérebro. As grandes redes, há muito tempo, sabem, pelos índices de audiência, quanto da população têm como fiéis telespectadores. No entanto, nada arriscam na direção de algo inovador e provocador. Ao contrário, fortalece-se a acomodação ao modelo mais tosco.

Não fica, também, sem registro a responsabilidade da TV Pública que, pelo menos, até agora, ainda não disse a que veio. Afora alguns documentários latino-americanos (de qualidade discutível e de intenções obscuras), prevalece o modelo anterior da TVE, inclusive com a manutenção das distorções de programação e horários, fato aqui já pontuado algumas vezes.

No âmbito da prática jornalística, verifica-se, progressivamente, embaralhamento de diferentes mídias. Numa ponta, há o modelo impresso (jornais e revistas), congelado num paradigma burocrático. Edições se sucedem, sem mínima diversificação, seja de forma, seja de conteúdo. Na outra, há o recém-chegado noticiário on-line. Entre os dois, trava-se uma luta por ‘ritmo’, ‘velocidade’ e ‘confiabilidade’. Até agora, o que se percebe é o fato de um, em nada, haver produzido melhoria no outro. O que, efetivamente, é observável se refere a uma espécie de ‘vampirização mútua’. Do processo neurótico, resulta maior distorção crítica para o receptor.

O clichê da ‘caridade’

O tempo está passando. O país, apesar de tudo, continua ‘respirando’, independentemente da qualidade do ‘ar’. O problema mesmo é saber se, em algum momento da vida brasileira, os empresários e os codificadores, responsáveis pelos mass-media, demonstrarão sensibilidade para o projeto cívico de aumento da massa crítica. A outra questão se volta para a atuação do Estado, no tocante a cobrar, incisivamente, que as empresas de comunicação cumpram os reais princípios discriminados na Constituição.

Outro apelo, não em grau menor, se volta para o imaginário da classe média cujo padrão de vida evidencia altos níveis de deformação quanto ao que ela elege como elenco de prioridades. A classe média, em razão do ‘lugar’ tenso que ela ocupa (aspiração em ascender x temor em descer) é a única com potencial para auxiliar bolsões carentes na tentativa de estes (em parceria com o Estado) poderem vislumbrar degrau acima, já que as elites, ao olharem para baixo, sempre apostarão no surrado clichê da ‘caridade’. O impasse está posto: incremento na oferta de frivolidades x investimento nas prioridades. Se a ‘bomba’ não for, em tempo hábil, desativada, todos seremos atingidos, irremediavelmente.

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Ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da Facha (Rio de Janeiro)