Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Futebol, Davi e Golias

Contratos mascarados, contratos de gaveta, contratos eivados de suspeitas. É o que está por trás da reedição pós-moderna de nossa conhecida história do Davi contra Golias. Agora, quem interpreta o Davi é o técnico Dunga, que talvez não seja o rei da simpatia que tão bem caracteriza a figura bíblica, mas, sem dúvida, possui aquele jeito marrento de quem se atreve a desafiar o todo-poderoso Golias, ops!, a Globo. As armas desse Davi são o mau humor, a ironia e o destempero verbal. Quanto ao Golias… bem, Golias só tem certeza de uma coisa: sua superioridade acachapante.


O aparente estopim teria sido aceso ali mesmo na coletiva do técnico concedida logo após o Brasil vencer a Costa do Marfim por 3 x 1. Ao responder uma pergunta, Dunga perguntou, dirigindo-se ao repórter da Globo Alex Escobar, se havia ‘…algum problema… ah, não?…’ Este, posicionado provavelmente na última fila de cadeiras, disse que não e que ‘nem estava olhando para ele’. Depois, no Youtube podemos então conferir a versão legendada do vídeo, já com os prováveis palavrões balbuciados, entre dentes, pelo técnico. São dezenas de vídeos que já somam, apenas no Youtube, mais que 1.985.000 visualizações.


A versão que interessa


Fim de domingo (20/6), a platéia desejava mesmo era rever os gols do Brasil. Ansiava por ver Luis Fabiano brilhar fabulosamente, com mão de Deus, com braço de Deus, com o talento que Deus lhe deu. Todo mundo querendo dormir feliz, e de repente irrompe o tal editorial, muito provavelmente redigido nos sétimo céu do processo decisório da TV Globo, recitado de forma solene por Tadeu Schmidt com aquela cadência grave de quem anuncia os minutos finais da vida terrena de Sua Santidade. É bem raro encontrartal grau de gravidade partindo de quem sempre associamos com aquelas coberturas exaltadas, do Brasil-sil-sil-sil, de quem sempre apela para o grito quando desejava enfatizar nada mais que o óbvio, o evidente, o que está a dois metros de nossos olhos. Estamos diante de mais um capítulo de uma disputa inédita por mais acesso à seleção brasileira.


Discordo da postura do técnico: palavrões em situação formal, diante de plateia composta pela nata da imprensa desportiva internacional, nunca caem bem. No mínimo é falta de compostura, civilidade. Mas o repórter da TV Globo agiu com correção? Fica patente, óbvio, absolutamente claro que a emissora foi, no mínimo, tendenciosa. E neste quesito não se trata de algo inédito. Ao analisarmos o vídeo, percebemos quão incomodado estava Dunga, provavelmente por uma ou mais atitudes pretéritas do citado repórter. E não precisamos ir pretérito afora. Por que a Globo não divulgou, também, o comportamento do Escobar minutos antes da fala do técnico?


Há de se convir que, como nenhum casamento acaba do dia para noite – antes, é construção que leva dias, semanas, meses, anos –, a relação do técnico com a atividade jornalística exercida pela TV Globo já devia vir se deteriorando há muito tempo. A coletiva foi apenas, e tão somente, a famosa gota d´água. Ou seja, após um jogo em que nem se sabia ainda se Elano quebrara a canela, após jogo em que um dos nossos principais craques, Kaká, foi expulso de campo injustamente, ficando impedido de defender as cores do país no jogo contra Portugal (o segundo time mais forte da chave do Brasil), em uma situação em que o sangue fervia, a cabeça estava cheia, seria ingenuidade à décima quinta potência crer que Dunga, sem mais nem menos despejasse palavrões, próprios de meninos birrentos, sem antes haver sido provocado. Quanto ao ‘antes’ dos escandalosos palavrões nada sabemos. Sabemos apenas a versão que interessa à empresa líder de audiência no Brasil divulgar.


Exemplo de corporativismo


Não podemos desconsiderar a percepção – abraçada por muitos de nós – de que boa parte dos jornalistas que cobrem esportes na TV Globo assemelham-se a entertainers, ficam ali revezando a tarefa de noticiar com a de entreter os telespectadores. Como clowns em dia de casa lotada: estão ali para fazer graça. Mas, agora, o foco é um só: tornar Dunga persona non grata da população brasileira, a começar, por boa parte dos jornalistas da emissora.


Causa estranheza ver esses mesmos jornalistas que passam horas a fio, tardes e noites intermináveis discutindo futebol, trocando piadinhas e fazendo comentários infames, agora tentam reverter em cima da hora a situação: desejam ser vistos como pessoas muito sérias, quase circunspectas, idôneas em tudo, reis no bom uso da língua portuguesa, campeões da moralidade e das práticas politicamente corretas. Obviamente nunca disseram palavrões, nunca foram grosseiros nem preconceituosos com ninguém. E nunca tiveram rompantes de Pedro Bial em sua pouco polida valoração para os bailarinos do Balé Kirov. Muito menos foram sequer brindados com vazamento de áudio com o estridente juízo de valor de Boris Casoy sobre os garis. Afinal, palavrão, futebol, estádio, técnico, jogador são palavras afins, como bem mostra matéria produzida em 26/3/2008 pelo Globo Esporte.


Outro mistério é por que o vazamento do áudio do Dunga atingiu tanta repercussão, visto que esta não foi nem será a última vez em que técnico tem áudio vazado falando palavrão. Foi o caso do Vanderlei Luxemburgo captado em matéria de Tino Marcos, no dia 26/7/2000, no Morumbi, durante o intervalo de Brasil x Argentina.


Folheando as últimas edições de O Globo, encontramos no dia 20/6 matéria do Marceu Vieira com o título ‘Destempero’. Quem esperava que o foco seria o entrevero – com ares de desgraça grande quando levada à tevê em horário nobre – que foi a coletiva do técnico após ganhar da Costa do Marfim, errou de texto. A matéria reproduz perguntas dirigidas a Dunga que considero no mínimo curiosas, a ser verdade que foram realmente feitas por adolescentes sul-africanos. Escrevo isso porque algumas das perguntas servem à perfeição de escada para atacar o técnico, sem o ônus de revelar o verdadeiro beneficiário da possível enquete. E isto é algo que não concebo nem normal nem natural partindo de quem partiu. Vejam só as perguntas que brotaram da boca dos jovens sul-africanos:


** Domenic Mzima, de 16 anos: ‘Por que você virou técnico? Para ganhar dinheiro?’


** Swprise Nlohlda, de 13 anos: ‘Dunga, quem não quis que o Ronaldinho Gaúcho viesse à Copa do Mundo? Foi você ou outra pessoa?’


E esta de um anônimo, não identificado na matéria:


** ‘Dunga, como você conseguiu o emprego de técnico da seleção brasileira?’


Pois bem, em uma época em que se invoca liberdade de expressão como quem invoca a necessidade de se trocar de camisa diariamente, vale a pena dar uma olhadela na nota emitida pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI). O documento, a bem do bom senso, nem merece ser comentado uma vez que contempla apenas a defesa de um dos contendores (a TV Globo), e deixa Deus-ouvirá o ‘o outro lado’ (Dunga). Mais corporativismo, impossível. Eis a nota:




‘A Associação Brasileira de Imprensa expressa à Rede Globo de Televisão e ao jornalista Alex Escobar sua solidariedade diante das agressões de que foram alvo por parte do técnico da Seleção Brasileira de Futebol, Dunga, o qual mais uma vez revelou despreparo para o contato com profissionais de comunicação e demonstrou que não está afeiçoado às práticas democráticas em vigor no País desde a promulgação da Constituição de 1988. Assim agindo, o Senhor Dunga deu prova, por insuficiência cultural, de que não compreende que os jornalistas desempenham uma relevante função pública e buscam informações não para uso próprio ou das empresas para as quais trabalham, mas sim para atender às necessidades do conjunto da sociedade.’


Luta desigual


Com saudades do grau de acerto de minha amiga madame Carlota, solicitei seus palpites sobre a presente questão Dunga vs. TV Globo e registrei o que ouvi da clarividente senhora:


1. Caso o Brasil conquiste seu hexacampeonato mundial de futebol:


** Dunga não concederá nenhuma entrevista exclusiva ao Fantástico, ao Jornal Nacional, ao Globo Esporte, ao Jornal da Globo nem ao Bom Dia Brasil.


** Dunga será a estrela de todos os programas jornalísticos e de variedades levados ao ar pelas tevês Record, Band, Brasil, SBT e RedeTV. Paulo Henrique Amorim deitará e rolará.


** Dunga será convidado e aceitará comandar o Record Esporte, o novo jornalístico da tevê do bispo Edir Macedo.


** Dunga será recebido no Brasil com honras somente concedidas aos heróis e com direito a homenagens no Palácio do Planalto, no Congresso Nacional e desfile em carro aberto em cidades com população superior a 500.000 habitantes.


** Tuiteiros tripudiarão sobre a TV Globo bem ao estilo: ‘Dunga venceu, Dunga é o cara!’


** Dunga será demitido de sua função pela Confederação Brasileira de Futebol.


2. Caso o Brasil não conquiste seu hexacampeonato mundial de futebol:


** Boa parte da população culpará a TV Globo por haver atormentado o técnico da seleção brasileira, às vésperas de começar as oitavas de final, demonstrando completo desrespeito pelo comandante de nossa ‘pátria de chuteiras’.


** Dunga convocará coletiva de imprensa, excluindo do convite profissionais da TV Globo e contará as razões que o levaram ao fracasso, colocando boa parte da culpa às pressões sofridas no decorrer da Copa e os antecedentes que o levaram a, vamos dizer, desgostar do jornalismo esportivo praticado pela TV Globo.


** A TV Record assestará suas baterias para a TV Globo acusando-a de impatriótica e antibrasileira, dando início a mais uma guerra santa pela audiência, até o momento ganha pela Globo.


** A TV Globo concederá a Dunga o troféu ‘Limão’ por ter personificado o técnico mais ranzinza da Copa do Mundo. E será escrachado em toda sua poderosa grade de programação como o Mister Antipatia na Copa 2010, prêmio ganho de lavada do Domenech, o mal-educado e desastrado técnico da seleção francesa.


** Tuiteiros tripudiarão sobre a TV Globo bem ao estilo: ‘Dunga venceu e a culpa toda é da Globo!’


** Dunga será demitido de sua função pela Confederação Brasileira de Futebol.


Poucas pessoas fazem jus ao nome com que são conhecidos. No caso Dunga é recorrente gracejar relacionando similitudes do técnico com aquele divertido anão da Branca de Neve. Embora popular, esta associação nem ao menos é referida no dicionário Aurélio. E o que temos lá? Que se trata de substantivo masculino, que se diz de ‘homem bravo, valentão’, que no Nordeste brasileiro representa ‘o dois de paus, em certos jogos’, que no Ceará e também na Paraíba significa ‘homem importante; chefe, cabeça, maioral’.


Até agora o técnico está em harmonia com as definições, o que já é uma coisa e tanto. Quanto à TV Globo, em qualquer situação, ficará mal por se tratar de luta absolutamente desigual e estará atacando aqueles que melhor encarnam nossa maior paixão nacional – o futebol.

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Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter