Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Futebol e o brilho da liberdade

O Observatório da Imprensa veiculado na terça-feira (6/7) pela TV Brasil exibiu uma entrevista especial de Alberto Dines com o escritor uruguaio Eduardo Galeano, gravada em 30/6, em Montevidéu. O assunto? Futebol, é claro. Em tempos de Copa do Mundo, Galeano interrompe todas as suas atividades para dedicar-se inteiramente aos jogos. Chega a ‘disputar’ três partidas por dia. Na porta de sua casa, uma placa desenhada pelo próprio escritor avisa: ‘Cerrado por fútbol’. E só retoma as atividades após o apito final do último jogo do mundial.






 

Autor de mais de 40 livros de ficção, análise política, jornalismo e história, Galeano completa este ano meio século de atividade intelectual. Entre suas obras mais conceituadas está Futebol ao Sol e à Sombra, uma coletânea de ensaios e crônicas sobre o esporte. Na abertura do programa, gravada no Estádio Centenário de Montevidéu, palco da primeira Copa do Mundo, Dines anota que a equipe da TV Brasil foi ao Uruguai ‘especialmente para encontrar uma das figuras máximas das letras latino-americanas e da cultura uruguaia’.


Na entrevista, Galeano explicou a Dines que a placa é uma antiga tradição dele e de sua mulher, Helena. A cada ano, desenha um novo cartaz. ‘A gente fica aqui vendo todas as partidas. Nós dois somos malucos por futebol’, disse. O escritor admitiu que o esporte, muitas vezes, causa sofrimento, mas ponderou que também é fonte de felicidade. ‘É uma alegria estranha. É uma alegria que dói’, explicou.


Preparo físico


Depois de tantas partidas, já na fase das semi-finais, o escritor sente-se esgotado. ‘Já joguei umas cinqüenta partidas. Não tenho idade para isso. Às vezes, em um dia só, jogo 3 partidas. Meu físico não dá para tanto’, brincou. Perna-de-pau assumido, Galeano contou a Dines que, na juventude, quis ser jogador profissional – sonho compartilhado por muitos pequenos uruguaios. ‘Estou tentando fazer com as mãos o que não consegui com os pés. O que não é nada estranho aqui, onde todos os nenéns nascem gritando gol’.


Dines comentou uma entrevista concedida por Galeano ao caderno de Cultura ‘Babélia’, do jornal espanhol El País, na qual o escritor afirma que o mais importante é o jogo em si e não a cor das camisas em campo. Embora busque admirar o esporte de forma neutra, confessou que, quando a camisa ‘celeste’ uruguaia entra em cena, é diferente. ‘Alguma coisa vibra em mim’, contou. ‘Com o passar do tempo, compreendi que estava além das equipes, clubes e países. O que eu queria era ver o futebol lindo, a festa. A festa das pernas que o jogam, os olhos que estão disputando’. Para Galeano, não importa qual equipe proporciona este prazer.


Há 30 anos o Uruguai – que disputa com a Alemanha, no próximo sábado (10/7), o terceiro lugar no campeonato – não chegava tão longe em uma Copa do Mundo. Rouco de tanto gritar, Galeano contou que as pessoas saíam às ruas de Montevidéu para comemorar cada vitória na África do Sul. A festa, segundo o escritor, desmentiu o estigma de ‘povo melancólico’. Dines comentou que em 2010 a América Latina ‘brilha com todas as cores’ na Copa e perguntou se Galeano concordava que os sul-americanos reprocessaram o esporte inventado pelos ingleses. ‘O melhor que a América Latina tem é a sua diversidade’, disse o escritor. Para Galeano, cada país reinventou o futebol e hoje há diferentes estilos.


Prazer vs. dever


Na opinião do escritor, é preciso ter em mente que as diversas formas de praticar o jogo devem ser feitas pelo ‘prazer’ e não pelo ‘dever de jogar’. ‘Caso contrário, passamos a copiar as fórmulas européias – o futebol de velocidade, de força, de táticas rígidas. Aí, esquecemos a fantasia porque a fantasia nem sempre é rentável. Do ponto de vista da eficácia, é melhor ser uma máquina do que ser uma pessoa’, disse. O espetáculo, para ele, precisa ser diverso e festivo. ‘O futebol brilha quando é livre, quando consegue fugir das prisões, dos esquemas importados da Europa, que nos obriga a jogar um futebol que trai nossas identidades mais profundas’.


Fanático, Galeano assiste a diversos torneios regionais, como o Campeonato Europeu. Fã do jogador Daniel Alves, o escritor acompanha a carreira do atleta desde os tempos em que atuava no Sevilha, da Espanha. A atividade futebolística é constante. ‘Eu vivo cansado de tanto jogar. Eu jogo na minha casa mesmo’. Depois de assistir a tantas partidas na TV, como ‘descanso’, Galeano caminha pelas ruas de Montevidéu para encontrar ‘o futebol na mais pura expressão de uma festa’: meninos jogando nas ruas.


‘É a festa das crianças. Com uma bola qualquer. Qualquer bola serve. Para jogar futebol, não precisa muito, não. O prazer de jogar apenas pelo divertimento se encontra mais no futebol de crianças do que no profissional, que tende a obedecer a regras rígidas nascidas pelo império exercido pelos grandes interesses ao redor’, sublinhou. Dines perguntou se o business do esporte chega a ‘matar’ o futebol. ‘Não mata, mas causa um dano enorme’, disse Galeano.


Poder demais


‘A Fifa é uma entidade de poder absoluto, monárquico. Nem Stálin teve tanto poder. E tudo em segredo. As contas são um segredo. A Justiça é a própria Justiça deles’, criticou o escritor. Em sua opinião, a federação concentra um ‘poder escandaloso’. Para Galeano, os recentes erros de arbitragem na Copa da África do Sul despertam suspeita. Houve pressão popular para o uso dos meios tecnológicos modernos para comprovar jogadas duvidosas – a exemplo do que ocorre no tênis e no basquete –, mas a federação não recuou. ‘No futebol, não. É proibidíssimo. Por quê? É duvidoso’, disse. ‘É um escândalo que a Fifa continue sendo organizada como no século 19’.


Galeano criticou também a exclusão dos jogadores no processo de tomada de decisões, onde apenas a opinião dos ‘altos burocratas’ da FIFA importa. Dines perguntou se o poder excessivo da federação tira do futebol o ‘caráter ético’ e citou como exemplo o gol com a ajuda do braço marcado pelo jogador Luís Fabiano no jogo contra a Costa do Marfim, na primeira fase da Copa. Dines lembrou que a imprensa brasileira usou o eufemismo ‘gol irregular’ para citar o caso. ‘É um futebol resultadista no qual o fim justifica os meios. Mas também tem os meios de comunicação, a mídia, justificando-se e justificando de alguma maneira os aspectos mais feios do futebol’, disse o escritor.


Futebol e Política


A ‘mídia dominante’, na avaliação de Galeano, segue a corrente de que ‘se um produto é rentável, é bom’. Se não gera lucro, ‘não merece existir’. ‘Não é o melhor conselho que o futebol pode receber’, avaliou. Dentro deste cenário, a criação de deuses é imprescindível. ‘Mas o mesmo prazer – duvidoso, mas prazer – é proporcionado na hora de derrubar os deuses criados. Tem essa coisa que está na condição humana e que os grandes meios de comunicação exploram muito bem. É perverso’, disse.


Galeano contou que há alguns anos, no Uruguai, jogava-se um futebol que identificava a coragem com a brutalidade. ‘Antes [até 1950] não era assim. Agora, nestes últimos anos, por sorte, está melhorando. Mas isso foi em grande medida impulsionado pelos meios de comunicação. Por aqueles locutores e jornalistas que diziam antes ‘meta-le, meta-le’ e depois passaram a dizer ‘mate-lo, mate-lo’’, explicou.


Futebol sempre foi objeto de manipulação política, na opinião de Galeano. Ditadores como Benito Mussolini e Adolf Hitler, assim como ditadores sul-americanos, são exemplos de políticos que usaram o esporte como meio de propaganda. ‘Uma das primeiras medidas de Pinochet quando assumiu o poder absoluto no Chile foi que o nomeassem presidente vitalício do Colo-Colo’, destacou. Para Galeano, nas ditaduras ou democracias, os futebol sempre foi uma forma de alcançar o prestígio político.


Um jogo inesquecível


Diante de 200 mil brasileiros que lotaram o estádio Maracanã, no Rio de Janeiro, para assistir à final da Copa de 1950, o impensável. O Brasil, que vinha de uma ótima campanha e só precisava de um empate, perde para o Uruguai. Seis décadas depois, o jogo ainda está vivo na memória dos brasileiros. O carrasco tem um nome: Obdúlio Varella. Galeano disse que sente saudades da nobreza dos velhos tempos do futebol e relembrou a aventura vivida pelo jogador quando ‘fugiu’ da festa de comemoração do título para beber nos bares cariocas.


‘Era uma cidade de luto. Nunca, uma tristeza tão grande. Nunca, uma solidão tão só nas ruas. Ele caminhava e caminhava. Nos botecos abertos, entrava e bebia uma cerveja. E ele via as vítimas chorando. Horas antes, ele havia odiado aqueles caras, quando eram as 200 mil cabecinhas de um monstro que rugia. E ele os odiou com toda a força do seu coração. Mas depois, quando via um a um dizendo ‘Foi o Obdúlio, foi o Obdúlio’ – e ninguém o reconhecia –, ele dizia ‘Mas como eu fui capaz de fazer uma coisa destas assim? Essa gente tão boa…’ ‘, relembrou. Para Galeano, essa é a história de um futebol que não se vê mais.


Ainda sobre os grandes nomes do futebol uruguaio, Galeano citou Walter Gómez, craque do Nacional de Montevidéu e do River Plate. Depois de uma carreira gloriosa no fim da década de 1940 e início da de 1950, o jogador caiu no ostracismo e chegou a trabalhar como guardador de carros. O escritor contou que, ao ser reconhecido pelo então técnico da seleção, Gómez explicou a reviravolta: ‘Eu acreditava que aquilo não terminaria nunca’.


Deuses em campo


‘É uma frase que parece ser dita por muitos, não só por ele. Grandes jogadores que conheceram a glória e depois foram esquecidos vinham dos segmentos mais pobres da população e voltaram depois a essa vida dura. É uma frase que tem muito significado para entender o destino de grandes jogadores uruguaios’, sublinhou.


Uma alegria inesquecível na vida de Galeano foi ver a atuação de Garrincha nos campos. ‘Eu tive a sorte, por um favor dos deuses, de ver Garrincha duas vezes jogando no Brasil. Eu nunca vou esquecer aquilo’, disse. Para o escritor, é uma ‘injustiça inqualificável’ que os autores desta ‘alegria coletiva’ terminem na miséria. Hoje, os jogadores estão mais conscientes sobre a fugacidade da fama, mas ainda é preciso garantir o futuro dos atletas. ‘Agora já melhorou, mas não tanto quanto deveria’, ponderou.

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Jornalista