Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Google e a arte da pegadinha em Fortaleza

Considero um exagero o massacre que a imprensa cearense tem sofrido nesse episódio do artista japonês inventado. Recorde-se que tudo não passou de uma ‘pegadinha’ elevada à categoria de arte. Um artista cearense, Yuri Firmeza, planejou a farsa em detalhes e conseguiu convencer o diretor do Museu de Arte Moderna a dar sustentação à mentira. As redações receberam então um release anunciando a vinda de um artista plástico japonês para uma exposição vanguardista. Os jornalistas telefonaram ao museu, que confirmou o evento. O Diário do Nordeste até publicou uma entrevista realizada através de e-mail, intermediada por uma ‘assessora de imprensa’, peça-chave na farsa que fez contato com as redações.


O requinte chegou à inclusão no release de citações elogiosas à arte do japonês produzidas por intelectuais cearenses, entre eles o próprio diretor do Museu! No dia marcado para a exposição o público deparou-se com uma série de prints de e-mails revelando a farsa. No calor do escândalo, toda a culpa foi atribuída à imprensa, acusada de não ter feito o trabalho de casa.


Só quem não tem intimidade com pesquisas no Google é que pode acreditar que ‘bastava uma googlada’ para descobrir a inexistência do artista. Como se fosse assim tão fácil! Criou-se esse mito de que no Google se acha tudo. Nada mais enganoso. Não só o Google não acha tudo, porque há incontáveis sites com conteúdo protegido, como existe uma enorme fatia do planeta onde ele simplesmente não penetra, se estivermos usando o alfabeto latino.


A saída é o correspondente


Ora, o raciocínio que deve ser feito é que o fato de não se achar referências ao nome do artista não quer dizer que ele não exista! Será isto tão difícil de entender? Ainda mais em se tratando de artista ‘japonês’. As buscas no Google usando o romaji (= japonês escrito com alfabeto latino) são totalmente inconclusivas, porque 99,99% do que está escrito em japonês não existe nesta escrita fonética, que se usa mais para comunicação com ocidentais. Todo o resto é escrito com os famosos ideogramas, que na verdade são três tipos de escrita que os japoneses misturam: hiragana, katakana e kanji. Para pesquisar neste universo é necessário um teclado apropriado, digitar nos caracteres japoneses e, naturalmente, entender o conteúdo.


Fica a questão: para ser jornalista é preciso falar e escrever em japonês? E se o ‘artista’ fosse russo, coreano, tailandês, israelense, árabe, vietnamita ou grego? Todas essas línguas têm seu próprio alfabeto e, portanto, são mundos impenetráveis para o Google em alfabeto latino. É necessário saber a língua e fazer pesquisas usando o seu alfabeto. Saber inglês é totalmente inútil nesses casos.


A única forma de penetrar nestes mundos fechados pela barreira linguística é manter correspondentes nesses países, de preferência nascidos lá. Esse padrão de eficiência é incompatível com a realidade cearense. Como sabemos, pouquíssimos veículos de comunicação no Brasil têm recursos para bancar uma rede de correspondentes internacionais.


Pistas da banalidade


Para desprestigiar a imprensa cearense, os teóricos da pegadinha agora se gabam de ter deixado ‘pistas’ intencionalmente, e através delas os jornalistas poderiam ter descoberto a farsa. E o que são essas ‘pistas’?




1. Uma técnica de fotografia chamada ‘shitake’ que vem a ser o nome de um cogumelo japonês, muito famoso no Ocidente pelas propriedades medicinais, e encontrável em qualquer loja natureba. Mas o que há de estranho nisso? Uma palavra pode ter vários significados, shitake poderia ser um cogumelo e muitas coisas mais. Em português nós não temos a palavra ‘manga’, que tem vários significados? Além disso, como o japonês inventou a técnica ele poderia batizá-la como bem entendesse, inclusive com o nome de um cogumelo ou outra coisa qualquer. Não temos o exemplo do Hélio Oiticica, que batizou suas esculturas móveis como ‘parangolés’?




2. Uma foto de um gato e uma outra de caráter mais gráfico e abstrato, que seriam imagens de um videoarte. Tamanha banalidade deveria levantar suspeitas, dizem eles. Mas o que haveria nelas para estranhar? Nosso olhar já está acostumado a ver todo tipo de bizarrices nas artes plásticas, e até fotos desfocadas ou telas em branco têm o seu lugar nos museus.




3. O próprio nome do artista, cuja tradução seria ‘artista inventado’. Bastava traduzir para descobrir a pista, dizem eles. Mas a quem ocorreria traduzir um nome próprio? Por que alguém se daria a esse trabalho? E mesmo se alguém descobrisse a tradução, não haveria razão para estranhar um nome artístico. A arte não é o reino das liberdades, onde valem todas as excentricidades? Não temos no Ocidente um artista que mudou de nome três vezes, primeiro para um símbolo inominável, depois para The Artist Formerly Known As Prince, retomando por fim o velho pseudônimo Prince, que lhe deu fama? Então, por que desconfiar de um nome maluco de um artista qualquer, ainda mais metido a vanguardeiro?




4. No release constava que o japonês era famoso internacionalmente e já tinha exposto em vários países, portanto uma pesquisa deveria descobrir alguma referência nos sites de museus ocidentais ou notícias nos jornais. Ora, quem lida com releases sabe que eles são freqüentemente recheados de exageros, meias-verdades ou mesmo mentirinhas do tipo ‘se colar, colou’. O fato de um artista declarar que expôs aqui ou ali ou que é ‘reconhecido internacionalmente’ não quer dizer que seja verdade. Mas se o Google não confirma tal notoriedade, isso também não significa que o artista não existe! No máximo que ele é um pouquinho pretensioso…


Acredito que muitos jornalistas cearenses tenham feito a pesquisa no Google, afinal isso é hábito na profissão. Mas, na falta de confirmação, preferiram dar o benefício da dúvida e publicar a nota, já que a fonte construiu uma relação de confiança ao longo de oito anos e centenas de releases verdadeiros. Não havia razão para duvidar.

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Jornalista, Lisboa