Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Governo?

Há cerca de dois meses, o Papa Francisco foi notícia por ter proferido a palavra ‘genocídio’, ao tratar do centenário do ‘massacre’ ou da ‘mortandade’ de armênios durante a Primeira Guerra Mundial.

Há duas questões em jogo: a culpa (negada) dos turcos e a palavra ‘exata’ para descrever o acontecimento. Minha questão é a segunda. Para os armênios e um conjunto de países e de outras entidades (políticas ou não), inclusive o atual ocupante principal do Vaticano, houve um genocídio. Para outros, houve mortandade, talvez massacre, mas não genocídio. Cada palavra, com seu respectivo sentido e referente, tem diferentes implicações jurídicas e humanitárias.

Muitos acham que a questão da palavra é irrelevante, mas ela é crucial. Dou um exemplo radical, comentado por Alice Krieg-Planque em seu A noção de ‘fórmula’ em análise do discurso (São Paulo, Parábola).

Como está no título, o livro trata das fórmulas – palavras ou sintagmas –, que, em geral, têm uma história (‘em geral’ porque algumas já nascem fórmulas, como ‘perestroika’, segundo a autora). São palavras ou sintagmas, que, aos poucos, adquirem características particulares, que as fazem ocupar um lugar especial nos discursos.

Resumo longamente Krieg-Planque. Na maior parte das vezes, a sequência pré-existe formalmente a seu acesso à condição de fórmula. O analista deve buscar um uso particular, ou uma série de usos particulares, por meio dos quais a sequência assume um movimento, torna-se um jogo de posições, é retomada, comentada, deixa de funcionar no modo ‘normal’ das sequências que usamos tranquilamente, sem nem nos darmos conta.

Jogo de palavras francês

Krieg-Planque comenta um caso exemplar, que envolveu as palavras ‘concertation’ [concertação], ‘négociation’ [negociação] e ‘dialogue’ [diálogo], em 1995, na França, em um período de manifestações e greves decorrentes da apresentação de um plano de reforma da seguridade social.

As palavras ‘concertation’, ‘négociation’ e ‘dialogue’ funcionavam, diz a autora, como palavras ‘normais’ do vocabulário sociopolítico, regularmente utilizadas pelos sindicatos. No outono de 1995, com o anúncio do Plano Juppé, essas três palavras foram postas no centro do universo discursivo e entraram numa fase polêmica.

Os sindicatos esperavam do primeiro-ministro, Alain Juppé, e do ministro do Trabalho e das Questões Sociais que utilizassem a palavra ‘négociation’. Mas essa palavra não aparecia. Apenas ‘dialogue’ e ‘concertation’ saíam da boca dos membros do governo.

Um jornal francês comentou que o governo jogou com as palavras. Multiplicou os apelos ao ‘diálogo’, à ‘concertação’, às ‘reuniões de trabalho’. Mas nada de dizer ‘negociação’. Finalmente, em 10 de dezembro, depois de um milhão de pessoas se manifestarem publicamente nas ruas, a palavra foi pronunciada pelo primeiro-ministro em uma entrevista televisionada. Um jornalista comentou: “Como Alain Juppé se sairá do joguinho da palavra proibida que até aqui se impôs? Ele pode dizê-la! A palavra ‘négociation’ saiu de sua boca como uma batata quente, é verdade, mas pelo menos saiu.”

Elaboração de dicionários

Em outro momento do livro, a autora propõe uma tese que é um achado: podemos ver o discurso sociopolítico como um discurso que elabora dicionários, nos quais as fórmulas são construídas como novas entradas ou como novos sentidos. Cita estudos de Jean-Claude Gardin a propósito de uma análise dos discursos produzidos nos anos 1970 no debate sobre o “programa comum” da esquerda. Ele propunha considerar um debate desse tipo como “estabelecimento de um dicionário”.

De fato, conforme escreve Gardin (citado por Krieg-Planque), trata-se, “para cada grupo: (1) de impor seus próprios significados aos significantes que fazem parte do vocabulário político comum: liberdade, igualdade, democracia, justiça… e de combater a mesma tentativa por parte do adversário: de recusar seus usos dessas unidades; (2) de propor a verdadeira significação dos termos típicos do adversário, denunciando os significados escondidos: impedindo, então, que esses signos do adversário se instalem na língua; (3) de impor seus próprios signos linguísticos: significante e significado: participação, programa comum… […] Cada grupo político constrói, então, dois dicionários: o seu, que ele quer ver transformado em dicionário da língua, e o do adversário, que ele quer ver desaparecer.”

Ler jornais pode ser, todos os dias, um exercício de confirmação dessas teses. Por exemplo, no dia 25/05/2015, em sua coluna semanal na Folha de S. Paulo, Luiz Felipe Pondé toca na questão mais de uma vez. Ele acha que as coisas têm nomes. Os jovens que têm que dar duro, segundo ele, chamam as coisas pelo seu nome, em vez de inventar “nomes sociais”, entre aspas, ou seja, não é o nome exato, ou o nome que ele empregaria. São nomes empregados pelos “professores de humanas” (pode-se ter bastante certeza de que se trata de nomes ligados às lutas sociais, sejam os politicamente corretos, sejam os eufêmicos.

Um pouco adiante é mais claro: para os “professores de humanas” e seus seguidores, jovens que não têm que ganhar seu pão, “bandidos não são bandidos, drogados não são drogados, vagabundo não é vagabundo, […], grana não é grana, mas sim “O Capital”. Só gente que tem dinheiro chama “grana” de “O Capital”.

Descontada a invencionice que é o artigo definido diante do nome com maiúscula, vê-se o ‘filósofo’ decidindo sobre seu dicionário, que, como todos, pretende ser o único verdadeiro.

O título do texto tem a ver com noticiários ou conversas de rua que culpam (ou defendem) o ‘governo’. O que esta palavra designa de fato, em nosso sistema político? E o que é ajuste?

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Sírio Possenti é professor do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas