Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Guardiões do equívoco

O Brasil vive um período de entressafra de heróis nacionais. Na carência de ícones ou de ideologias para lutar, o mundo político e a grande imprensa passaram a cultuar factóides como se esses fossem a causa dos nossos problemas. É cômico ver os políticos, com um pudor recém-adquirido a granel em mercadinho de esquina, encontrarem o ‘inimigo comum’ para ser satanizado. A bola da vez é o nepotismo. Não o nepotismo em seu sentido pejorativo e condenável, de empreguismo desmedido e desavergonhado, mas a simples contratação de parentes.

De uma hora para outra, os parentes, independentemente de capacidade, competência ou conhecimento, passaram a ser os responsáveis pela ineficiência e o gasto excessivos da máquina pública. Essa ‘bandeira’ conseguiu convergir forças de todos os partidos, da imprensa e da sociedade, afinal, quem tem coragem de se declarar a favor da contratação de parentes? E a opinião pública? Esta, coitada, mais uma vez está sendo levada a confundir exigência moral com urgência política.

OAB inquisidora

Essa caça às bruxas está parecendo mais uma manobra com objetivo que, suspeito, nasceu da urgência política de ofuscar a notoriedade do inesperado Severino Cavalcanti, pois sua simploriedade e tolice competem com as do presidente. E isso pode significar uma ameaça para alguns. Há semanas estão desfilando pela mídia políticos, representantes de ONGs, acadêmicos e todos os ‘politicamente corretos’, execrando publicamente a contratação de parentes, independentemente de competência ou não.

Muitos dos ‘caçadores de parentes alheios’ já fizeram o mesmo, quando não são, eles próprios, crias de antigos nepotistas. Mas não se importam, afinal de contas, a noção de moral já se fundiu com opinião pública. Para esses, a moralidade é discernida em pesquisas qualitativas, não em princípios ou ideologias. Desses até se pode entender essa tentativa de emergir no país uma ‘comoção nacional’ contra a contratação de parentes.

O que é inaceitável e chega a ser mais cínico é a OAB iniciar uma inquisição a ‘parentes de parentes’. Seriam todos cegos ou ingênuos, que não sabiam que essa prática existe no Brasil desde o Descobrimento? Teriam eles tomado conhecimento só agora, pela imprensa, ou estão sendo movidos pela urgência política? Deixa-nos aberto o caminho para duvidar se a Ordem dos Advogados do Brasil segue a finalidade que lhe é atribuída na Lei nº 8.906, Título II, Capítulo I, Artigo 44, ou se segue as leis dos noticiários.

Histeria puritana

Estão agindo como guardiões equivocados da boa conduta. Equivocados sim, pois o que devem combater é o empreguismo de incompetentes em troca dos mais variados, banais e muitas vezes obscenos serviços. O foco da luta está errado, não é a contratação de parentes que é imoral. Imoral é o clientelismo desenfreado que se instalou no Brasil, em todas as esferas de governo, em todos os poderes, seja Executivo, Legislativo e mesmo no Judiciário.

No clientelismo, incompetentes podem ser contratados sem que para isso exista relação de parentesco, apenas e tão somente interesse pessoal ou partidário. No clientelismo as nomeações são em geral por motivos alheios ao interesse público. O nepotismo por si só não representa a única ameaça à democracia do Brasil, nem pode ser analisado separadamente sem que se leve em conta o desempenho profissional. Portanto, a Ordem dos Advogados do Brasil se esqueceu dos outros ‘ismos’ que deterioram princípios constitucionais e que abrem a guarda para práticas muito mais lesivas à manutenção da democracia do que a simples contratação de parentes.

Guardiões equivocados da boa conduta, o debate deveria ser quanto à necessária exigência de competência, integridade e aptidão para o exercício da função nas contratações, para assim assegurar qualidade na prestação dos serviços públicos. Do contrário, formarão uma nova casta de excluídos. Isso é hipocrisia. O Brasil está vivendo uma era em que se confrontam a ignorância e o anti-realismo. Isso pode desembocar numa histeria puritana ilusória.

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Economista, especialista em administração pública pela FGV/RJ e pós-graduanda em Gerente de Cidades pela Faap