Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Imprensa brasileira derrapa na cobertura

Os jornais brasileiros têm dedicado bastante espaço ao governo de Barack Obama, como de resto a mídia do mundo inteiro, tanto em decorrência da crise financeira nascida no coração do império quanto pelo fato de o presidente norte-americano ser realmente uma novidade histórica, seja pela cor da sua pele ou por sua peculiar trajetória.


No Brasil, pelo menos até agora, a cobertura oscila entre um olhar provinciano e frívolo, atento a detalhes desimportantes (e com leve carga racista, perceptível no tratamento dispensado à primeira-dama Michelle), e, em outro extremo, muito oba-oba e bajulação, como se Obama fosse um novo messias que apareceu para redimir o capitalismo e os valores americanos. Entre esses dois pólos, o que não se vê na mídia brasileira são análises mais detidas e alentadas sobre os atos que o novo presidente vem tomando, dia após dia, desde que assumiu o cargo.


Um bom exemplo de cobertura rasteira em um episódio que merecia – e continua merecendo – aprofundamento pode ser encontrado na maneira com que a imprensa brasileira tratou o anúncio do primeiro Orçamento elaborado pela equipe de Obama. Nos Estados Unidos, o ano fiscal começa em outubro e a peça orçamentária, que deverá ser votada até abril, foi apresentada na semana passada pelo presidente. Segundo o economista e prêmio Nobel Paul Krugman, o Orçamento de Obama representa uma ruptura não apenas com o governo anterior, mas ‘com as tendências políticas dos últimos 30 anos’. De acordo com Krugman, se o Congresso americano aprovar ‘qualquer coisa parecida com o plano anunciado’, Obama ‘terá posto os EUA em um novo rumo’.


Antes de mais nada, é preciso lembrar que Krugman vinha criticando bastante as medidas tomadas pela equipe econômica do novo governo, especialmente no que diz respeito aos planos de resgate anunciados antes do Orçamento. A mudança no tom da análise decorre, portanto, dos números que estão na peça orçamentária. Krugman leu e percebeu que movimentos muito importantes estão planejados ali. Se o Congresso mantiver a essência do texto enviado pelo presidente, a ruptura será real e profunda – os 30 anos a que Krugman se refere estão relacionados a um ciclo iniciado no governo Reagan e que depois acabou conhecido como reaganomics. Sob Reagan, a essência da receita aplicada ao país foi diminuir o gasto do governo e a taxação sobre o capital, desregulamentar a economia e adotar uma política monetária rígida para conter a inflação. A rigor, mesmo no governo democrata de Bill Clinton este ciclo não terminou.


Enterro do reaganomics


Agora, sob Obama, parece que o reaganomics vai finalmente ganhar um enterro definitivo, mas por aqui ninguém está dando muita bola, e a coisa foi tratada como mais um lance do presidente que sofrerá alguma oposição republicana no Congresso. Sim, os jornalões brasileiros publicaram traduções do artigo de Krugman, mas o noticiário sobre o anúncio do Orçamento ficou pobre e se ateve muito mais a algumas das medidas que dizem respeito diretamente ao Brasil, como a redução nos subsídios agrícolas. Aliás, neste ponto vale a pena lembrar que durante a campanha eleitoral, no ano passado, os principais colunistas políticos e econômicos do país apostavam que a gestão democrata seria mais protecionista do que um eventual governo republicano de McCain. Obama, porém, já surpreendeu os sábios de Pindorama ao mostrar que democratas não necessariamente são mais protecionistas do que os republicanos.


Voltando ao que interessa, a verdade é que a imprensa brasileira não compreendeu o alcance e a importância das mudanças iniciadas sob Obama em tão pouco tempo. O caso do Orçamento é apenas um deles; na esfera política a mídia tupiniquim também derrapou feio. Duvidava (e ainda duvida, pois apresenta a promessa com laivos de ironia) que o presidente tivesse coragem para acabar com a base de Guantánamo e com a guerra no Iraque, mas eis que Obama cumpre o prometido e dá os primeiros passos nas duas direções.


No fundo, há uma certa perplexidade dos jornalistas brasileiros com este novo personagem. A campanha de Barack Obama se assemelhou, em vários pontos, à do presidente Lula em 2002 (‘yes, we can’ e ‘hope’ lembram muito a ‘vontade política’ e ‘a esperança vai vencer o medo’), mas diferentemente do líder brasileiro, Obama começou a governar cumprindo o que prometeu, fazendo o que disse que ia fazer. Claro, muita coisa ele não revelou, preferiu respostas evasivas, mas do que poderia ser considerado o seu programa básico de campanha, a verdade é que o presidente vem encaminhando as propostas, e até com grande agilidade. Uma parte da imprensa brasileira não conseguiu encaixar um tom para a cobertura justamente porque esperava sair logo questionando Obama pela falta de cumprimento das promessas ou contava ainda com um tempo maior para que ele de fato começasse a aplicar o ‘change’, outro slogan eleitoral.


Sim, um pouco de ceticismo não faz mal a ninguém e é verdade que o governo Obama está só começando, mas é preciso atenção para não assistir ao bonde da história passar bem na frente sem levar aos leitores e telespectadores a essência do itinerário. E aparentemente muita coisa está mudando nos EUA, com Obama e com a crise econômica. Não é o que a cobertura da mídia tupiniquim está conseguindo captar.

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Blog do autor: Entrelinhas – mídia e política