Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Imprensa, outros poderes e os silêncios do presidente

A mídia foi recurso importante na longa caminhada do sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva rumo à conquista da presidência da República. De 1989, a primeira derrota, até 2002, a mais que desejada vitória, passou-se mais de uma década. É um tempo curto para um sonho tão grande.


Mas o projeto começara ainda no final dos anos 1970. Foram mais de 20 anos desde então. No meio intelectual e artístico, é pouco tempo: são escassas as personalidades de referência nos diversos campos da atividade cultural que obtiveram consagração em tão curto período. Em geral leva-se a vida inteira para isso e às vezes o reconhecimento da sociedade só virá depois da morte.


Tome-se o Prêmio Nobel de qualquer área, mas sobretudo das Humanidades, o campo por excelência da política antes que a economia tudo dominasse, e ver-se-á que a idade bíblica predomina entre os agraciados.


A mídia comporta-se como se George W. Bush, Vladimir Putin, Tony Blair, Jacques Chirac e outros hierarcas do mundo político fossem mais importantes do que as referências do mundo dos livros, especialmente da literatura por motivos óbvios, do cinema, do teatro, da filosofia e de diversos outros campos da atividade humana em seus respectivos países ou domínios.


Formas de poder


Os jornalistas deveriam fazer uma reflexão: da Grécia antiga, ficou quem? Qual poderoso rivaliza com Aristóteles, Sócrates ou Platão na memória da Humanidade? Da Roma antiga, tome-se o exemplo de Júlio César. Quantos tiveram o poder dele? Ainda assim, é mais lembrado pelo que escreveu, a De Bello Gallico (A guerra gaulesa), em que narra, na terceira pessoa, apesar da falta de modéstia, os próprios sucessos militares na região que hoje compreende a França, a Bélgica e a Suíça. Já se passaram mais de dois mil anos e a obra mais importante de César é um livro!


No entanto, a mídia atual parece imbuída de projeto, inconsciente talvez, mediada por diversos arquétipos, de nos fazer crer que de Juan Domingo Perón a Néstor Kirchner, passando pelos sátrapas da ditadura militar que devastou a Argentina em décadas recentes, aquelas figuras, e não Jorge Luís Borges, são as referências do nosso vizinho.


Em quase todas as nações dá-se o mesmo e no Brasil não é diferente, embora nas duas últimas décadas, por ter sido transformado em negócio multinacional, o esporte tenha contribuído com alguns luminares.


Ora, mesmo que a preocupação fosse apenas com o poder, à luz de um mundo como o concebido por Michel Foucault, há outras formas de poder, esquecidas da mídia.


O caso do Brasil e de seu presidente


Provavelmente nenhum escritor, intelectual ou artista apareceu mais na imprensa do que Lula nesses anos todos. Vejamos como o governo Lula – vez que, investido da presidência, não pode mais ser considerado como pessoa física apenas – trata a imprensa que tanto o ajudou, que teve boa vontade com suas notórias insuficiências com a palavra escrita, a começar pelo falta de domínio da norma culta, editando, arrumando, maquiando suas falas, tomando temas, cenas e ângulos que mais o favorecessem em seu projeto político.


Empossado, o presidente Lula demorou 850 dias para dar a primeira entrevista coletiva. Foi no dia 29 de abril de 2005. O político, que chegara ao poder embalado pela mídia, confinou nesse dia quase todos os entrevistadores ao silêncio, permitindo que apenas 14 jornalistas fizessem perguntas, sem direito à réplica. (ver artigo de Thaís Naldoni, ‘Lulinha, guerra e silêncio’, revista Imprensa, julho de 2006, número 214, ano 19). Veículos da internet sequer puderam participar do sorteio de entrevistadores!


Hoje, o Palácio do Planalto paga caro pela exclusão. A internet tornou-se um nicho de resistência à fala do trono, o território fértil de uma guerra de guerrilhas, trincheiras de onde são disparados torpedos velozes, precisos, disfarçados e quase invisíveis em meio a nuvens de gafanhotos da prolixia da rede que falta de tudo, a maior parte das vezes sem editores.


Corria o ano de 2003 quando – inacreditável – um sindicato de jornalistas, o do Distrito Federal, publicava um manifesto assinado por 71 jornalistas reivindicando tratamento digno do Palácio do Planalto.


‘A falta de traquejo do governo Lula com os jornalistas não pode ser chamada de novidade para a mídia’, diz Thaís Noldoni no seu artigo. Antigos simpatizantes parecem perder a paciência. ‘Lula é fóbico com relação à imprensa’, diz Tereza Cruvinel, colunista de O Globo.


O governo Lula teve até há pouco tempo uma concepção de mídia que só a concebia como submissa ao poder político. Há sinais de mudança, mas as cicatrizes de 2004 ainda doem em todos os espíritos livres. Em abril daquele ano, o presidente Lula enviou ao Congresso o projeto de lei do Conselho Federal de Jornalismo – dá-se às coisas o nome que elas têm: era um projeto de censura –, e em maio o jornalista americano Larry Rohter quase foi expulso do país não fosse a decisiva intervenção de figuras como o ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, que conseguiram enfim ser ouvidos pelo presidente, por ter dito que o presidente era chegado numa cachacinha.


O governo Lula levou quatro meses para se refazer do bafafá irrompido em Paris, em julho de 2005, quando da ‘entrevista’ à freelancer Melissa Monteiro. Em novembro do ano passado, ele foi ao programa Roda Viva – ou melhor, o programa foi até ele. Em dezembro de 2005, o presidente concedeu entrevista à revista CartaCapital.


E 2006? Estamos em julho. Em janeiro o presidente foi entrevistado no Fantástico, da TV Globo. Em fevereiro falou à revista The Economist.


Exemplo emblemático


No meio da velha concepção de que a mídia deve ajoelhar-se aos pés do poderoso do dia – e o dia dura tão pouco: apenas quatro anos! – há, entretanto, exceções e uma delas é a Radiobrás. Ali o comandante faz a diferença. E é ele quem esclarece: ‘A Radiobrás publica tudo aquilo que é de direito do cidadão saber, sem qualquer tipo de proselitismo partidário em favor do governo’ (Eugênio Bucci).


Embora juízo controverso – e quais os critérios para decidir o que é de direito o cidadão saber? – é um raio de luz num governo que começou com o projeto descarado de empregar os derrotados na esfera federal ou fazendo de cargos moedas para trocas de apoio político com abjetas figuras, cujos métodos já tinham sido repudiados mais de uma vez pela sociedade brasileira, sem prestar atenção às suas credenciais. Vários deles já foram flagrados em ilícitos que, não a mídia, mas o procurador-geral da República classificou como ‘organização criminosa’.


Há inegáveis avanços no governo Lula, e é claro que certa mídia se compraz em ares da antiga UDN, buscando apenas escândalos. Mas se eles não existissem, ela os encontraria? E por que tanta demora em punir? E especialmente por que tanta ambigüidade no trato com notórios ladrões do dinheiro público? Por que tanto silêncio sobre o Fome Zero?


A mídia está devendo explicações a telespectadores e ouvintes, especialmente a leitores. Por que figuras como Carlos Lessa, Frei Betto e Ricardo Kotscho, entre outras, abandonaram o governo? Por que o ministro Roberto Rodrigues deixou o ministério da Agricultura? A Copa do Mundo, o julgamento de Cravinhos & Suzane ou o PCC são temas mais importantes do que a saída de um ministro de uma pasta essencial para a alimentação dos brasileiros, que deixou o cargo inconformado, mas inconformado com o quê? O que houve? Ninguém contou nada aos leitores!


Há, porém, sim, implicâncias que irritam a muitos, não apenas o governo. Um exemplo emblemático é o MST. Neste caso, o divisor é claro. Na maioria das vezes em que o MST aparece na mídia, trabalhadores que pedem terra para plantar são tratados como bandidos do PCC. Ou por outra: no Brasil, a questão social ainda é um caso de polícia.


Habitantes das cavernas


Diz-se que a imprensa é o quarto poder. Talvez tenha arrebatado mais funções do que a sociedade democrática lhe conferiu, de que são exemplos as apropriações que faz do Judiciário, acusando, julgando e administrando penas irrecorríveis, sem direito à defesa, mas uma coisa é certa: não é tentando amordaçá-la que será aperfeiçoada.


Em resumo, é problemático o desenho do confronto entre o Palácio do Planalto e a mídia que se desenha com o novo projeto de regulamentação da profissão de jornalista.


Os áulicos podem continuar fazendo o que mais gostam: elogiar o governo em tudo, mas quem mais contribui é quem lhe aponta os erros, tenham ou não curso superior, como faz o jornalista Bernardo Kucinski de dentro do Palácio.


Que esta função não seja só dele, porém. Todos os cidadãos brasileiros merecem o título de ouvidores da República. A mídia é um eficiente canal para levar ao conhecimento dos cidadãos, para providências, o que se passa no Brasil e no mundo.


Afinal, o eleitor mais qualificado é o leitor. Infelizmente ainda não podemos exigir o mesmo dos candidatos, e muitos ágrafos continuarão a ser eleitos e depois a exercer o poder como se a escrita ainda não tivesse sido inventada. Viverão numa sociedade moderna como se habitassem cavernas da Idade da Pedra Lascada. E, o que é pior, mandando na sociedade.

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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde dirige o Instituto da Palavra; www.deonisio.com.br