Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Incitações à intolerância

Diálogo surpreendente. Cena 1: Tudo se passa nos anos de 1940, entre um médico bem conceituado de uma pequena cidade, Roseiral, e sua assistente. O médico, preocupado com uma suposta gravidez interrompida de sua cliente, ouve da assistente que o caso deve ser bem-entendido, porque é necessário pôr termo à quantidade de mulheres sofrendo por causa de gravidezes indesejadas. O médico concorda prontamente.

Esta breve conversa foi reproduzida no capítulo do dia 21/11/2005 da novela Alma gêmea, transmitida às 18h pela TV Globo. Para telespectadoras(es) atentas(os), a mensagem não passou despercebida. Na época em que se desenrola a novela, entrava em vigorar o Código Penal que criminalizou o aborto no país. Gravidez indesejada, jamais! Tudo deveria ser por determinação divina, como muitos e muitas ainda querem crer, convencer e impor como verdade única. Crer, enquanto uma questão de foro íntimo, é absolutamente legítimo. Entretanto, querer que uma crença seja hegemônica é ditadura. É sempre bom lembrar que o arcabouço legal de direitos garante que cada um tome a sua própria decisão.

Mudança de cena.

Tributo à violência. Cena 2: No dia 23/11/2005, no plenário da Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) da Câmara dos Deputados, em Brasília, realiza-se audiência pública sobre o Projeto de Lei 1.135, tendo como relatora a deputada Jandira Feghali, o qual descriminaliza e legaliza o aborto no Brasil.

De um lado, feministas defensoras dos direitos humanos das mulheres, portanto, da legalização do direito ao aborto legal e seguro; de outro, representantes de um grupo autodenominado Pró-Vida, com apoio de alguns parlamentares, contrário à idéia. Até aí, nada demais, já que na base do Estado de Direito e do regime democrático estão a convivência e a tolerância entre divergentes.

Contudo, contaminados pela ira, preconceitos e sanha fundamentalista, os Pró-Vida deixam os argumentos de lado e partem para o ataque, para a agressão física e moral, para a ofensa e as acusações aos berros de ‘assassinas’, ‘nazistas’ e outros insultos.

Lamentável que a realidade esteja na segunda cena.

À primeira vista, pode parecer que as duas cenas não têm nada a ver. Mas, observadas com acuidade, retratam o momento da sociedade brasileira onde o debate sobre a descriminalização e a legalização do aborto não pode mais ser adiado e decisões devem ser tomadas. Neste contexto, a intolerância às mudanças e transformações tem sido sinônimo de violência.

Enredo antigo

Epílogo: Não se trata de mera ficção. As mulheres não podem continuar morrendo em função do abortamento inseguro, ou sendo tratadas como assassinas e nazi-facistas por reivindicarem o direito de decidir sobre seus corpos. Infelizmente, nem todas as letras, diante da ignorância alimentada pela ira, são legíveis.

A mídia, os veículos de comunicação, nos momentos de clarividência ou de rendição da ficção à realidade, no caso da TV, têm esta capacidade de conjuminar as mudanças processadas na sociedade. Este é o seu papel, aí reside sua força.

Este enredo tão antigo, porque data do século passado, e tão atual porque ainda penaliza as mulheres, traz no seu rastro estimativas aterradoras de mortes por abortamento inseguro, um número estrondoso de mulheres culpabilizadas. Por outro lado, coloca em cena o incitamento e a legitimação da violência, quando a imprensa publica textos intitulados ‘Aborto, o direito de matar’, do jurista Ives Gandra, no Jornal do Brasil do dia 17/11/2005; ou, no mesmo jornal, ‘Cabeça abortista’, assinado por Olavo Costa, que afirmou que ‘cada abortista honesto, se é que existe, deveria estar pronto para admitir que, se o pegassem de jeito umas horas antes do nascimento, não teria havido mal nenhum em picá-lo em pedacinhos e vendê-lo para um laboratório. Teria sido até uma medida humanitária, contribuindo para o avanço da pesquisa com células-tronco’. Isto cheira a barbárie, esbarra na insanidade, na vulgaridade e na intolerância. Esta combinação levou ao Holocausto e justificou genocídios. Além de representar interesses políticos de poder e de controle sobre os corpos das mulheres.

No braço

Por falar em Jornal do Brasil, este, surpreendentemente, pautou a audiência pública da Comissão de Seguridade Social e Família, sem nunca ter tocado antes no assunto. Mas, há sempre uma primeira vez. Ao reportar a sessão da CSSF, o JB explorou o embate entre ‘militantes pró e contra a descriminalização do aborto’. No dia 23, O Estado de S. Paulo restringiu-se a pequena nota informando que o projeto de lei sobre a legalização do aborto dividiu as opiniões.

O Correio Braziliense, que vem cobrindo o processo desde o início, abriu matéria com a informação de que ‘manifestantes trocam insultos durante 10 horas de discussão na Câmara’, e que a primeira audiência pública para debater implicações e mudanças na legislação punitiva do aborto ‘se tornou um ringue para discursos emocionados da platéia, de deputados e dos palestrantes convidados’.

A matéria também informou que ‘um missionário chegou a tirar as vestes religiosas para defender, no braço, sua posição contrária à interrupção da gravidez. Antes que agredisse alguém, foi contido pelos colegas’. Insultos pessoais, médicos chamados de nazistas pela audiência pró-vida, distribuição de bonecos em miniatura para representar o que seria ‘matar’ um feto de 12 semanas… Houve de tudo, pelo descrito na reportagem.

Ameaças antigas

Algumas atitudes animalescas ainda podem vir à tona se as câmeras instaladas na Câmara dos Deputados passarem por uma revisão cuidadosa para corroborar a apuração que a Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) empreenderá para apurar a agressão sofrida pela socióloga Maria José Rosado Nunes, coordenadora da ONG Católicas pelo Direito de Decidir, conforme divulgado pela Agência Câmara:

A deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) pediu ao presidente da Comissão de Seguridade Social e Família, deputado Benedito Dias (PP-AP), para apurar uma suposta agressão feita à participante da audiência pública sobre o aborto Maria José Rosado Nunes, que é coordenadora da ONG Católicas pelo Direito de Decidir. A dirigente alegou que, ao sair da sala da audiência, foi agredida por manifestantes contrários ao aborto. Benedito Dias assegurou que o fato será apurado. (Tempo Real, 22/11/2005 20h26. Seguridade vai apurar agressão de militantes contra aborto)

Nesta altura é necessário fazer uma releitura do que é liberdade de expressão. Não podemos confundir este direito, garantido na Constituição brasileira e basilar da democracia, com ‘incitamento’ à violência, fruto de regimes autoritários. Quem não estiver de acordo com a penalização ou a criminalização do aborto é ‘assassina(o)’, disseram os Pró-Vida na audiência da CSSF. Portanto, em dívida com a sociedade e passível de punição, como ser picado em ‘pedacinhos’ como ‘medida humanitária’.

Estas ameaças são tão antigas quanto a luta pelo direito das mulheres do Brasil, anunciadas publicamente, e reproduzidas por jornais e revistas, que se dizem liberais e abrem suas páginas a legítimas manifestações pela paz e que se espantam com as crueldades da guerra moderna. Mas esta também é uma guerra, que resulta no genocídio das mulheres. O fato é que a morte dessas mulheres não comove a imprensa, porque elas são vistas como ‘criminosas’, que romperam com o que se espera nas representações mais arcaicas do feminino: ser mãe, exclusivamente. Pois, então, que morram.

Em nome da igreja

Entretanto, é preciso ultrapassar os limites do privado para sensibilizar Estado e seus poderes Constituídos (Executivo, Judiciário e Legislativo), com a morte de mulheres por aborto, assim como as sobreviventes com seqüelas, e obrigar o Estado a enfrentar, com políticas públicas de saúde e leis que não estejam baseadas em credos religiosos ou em verdades sacramentadas e aspergidas por teólogos oficiais da Igreja Católica Apostólica Romana e/ou construídas sob ameaças e agressões de doutrinadores Pró-Vida. É só conferir. A temperatura vai aumentar ainda mais.

Na primeira quinzena de novembro, em ação coordenada, a CNBB conseguiu se tornar a única voz a falar sobre o aborto na mídia impressa. Analisando as matérias publicadas nos cinco maiores jornais de circulação nacional (Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil, O Globo e Correio Braziliense), a igreja publicou artigos assinados na seção de Opinião de três deles: Folha (duas vezes, dias 3 e 5 de novembro), Globo e JB (duas vezes, dias 5 e 17).

Escreveram em nome da igreja Bertrand de Orleans e Bragança, tetraneto do imperador Pedro I e diretor de relações institucionais da fundamentalista Tradição, Família e Propriedade/TFP-Fundadores, na seção Opinião da Folha do dia 2; D. Luciano Mendes de Almeida, na Seção de Opinião da Folha do dia 5; e D. Eugênio Sales, cardeal-arcebispo emérito da arquidiocese do Rio de Janeiro, nas seções de Opinião do Globo e do JB do dia 05; e o jurista Ives Gandra Martins, no JB do dia 17.

Ouvidos moucos

D. Eugênio Sales foi responsável pelo artigo mais violento, que no Globo foi intitulado ‘Aborto é crime de homicídio’. Desta forma, D. Eugênio disse o que pensa das mulheres que o praticam: são assassinas. No dia 17, no mesmo diapasão, o texto de Gandra intitulado ‘Aborto, o direito de matar’.

Este é o mote que tem justificado as atitudes mais violentas contra as militantes pelo direito de decidir. A igreja está alimentando um discurso extremamente perigoso, capaz de construir uma polarização radical no debate sobre o aborto e de impossibilitar o diálogo democrático. E a imprensa está dando voz a este incitamento.

Para o bom entendedor, diz o dito popular, meia palavra basta. Ao colocar seus representantes como signatários de idéias discricionárias, a Igreja Católica Apostólica Romana está incitando, ou no mínimo legitimando, a violência contra as defensoras do direito de decidir sobre o aborto. A mídia, por seu turno, faz ouvidos moucos ou torna-se conivente com isso, na medida em que abre suas páginas para vincular a idéia de homicídio e assassinato ao debate sobre direitos reprodutivos das mulheres. Por isso mesmo, não será demais ressaltar que entre liberdade de expressão e incitação à violência existe um fosso abismal, intangível e intransponível numa sociedade que pretende ser regida pelo ideal democrático.

Desertificação de idéias

É, ainda, sempre bom lembrar aonde este tipo de atitude pode levar. Nos Estados Unidos, esta postura radical tem resultado em atentados contra a vida de médicos e médicas que trabalham em clínicas de aborto, que são legalizadas.

Discutir o conceito de fundamentalismo neste momento é crucial para evitar a idéia simplista e equivocada de que tanto defensoras(es) quanto opositoras(os) da descriminalização e legalização do aborto são fundamentalistas. Não são! Tomar uma posição democrática e assumi-la como um valor inegociável não é fundamentalismo, é convicção política. Nesse sentido, quando as feministas defendem o direito ao aborto, o fazem para assegurar que as mulheres que dele necessitam podem realizá-lo em condições legais e seguras, posto que o direito ao aborto não significa a obrigatoriedade de abortar.

O espaço público é a arena para o debate das convicções e para a elaboração de acordos provisórios de convivência, até que o conflito se acirre novamente e se inicie uma nova rodada de negociações. Negar este devir, sim, é fundamentalismo. Partir para a ignorância, como se fala no jargão popular, é a desertificação de idéias e ideais.

Sem coincidência

No Seminário ‘Estado laico e liberdades democráticas: religiões contra as mulheres? Fundamentalismo e democracia’, realizado no contexto do Fórum Social Brasileiro (2003) – promovido por entidades como Articulação de Mulheres Brasileiras, Católicas pelo Direito de Decidir, Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos, Comitê Latino-americano e do Caribe de Defesa dos Direitos da Mulher e a Rede Feminista de Saúde –, Antônio Flávio Peruche, sociólogo, professor da USP e editor da Revista Novos Estudos, do Cebrap, afirmou: ‘O fundamentalismo é, antes de tudo, uma síndrome religiosa nascida no contexto religioso ocidental protestante e conservador dos Estados Unidos no começo do século XX. O fundamentalismo é, basicamente, contra o modernismo na teologia, contra a crítica literária dos textos bíblicos, contra a pesquisa científica, contra o Darwinismo’.

Peruche explicita que só é possível ser fundamentalista, considerando o conceito stricto sensu, quando a pessoa é religiosa. Mas, além de ser religioso, é preciso que a religião na qual se professa a fé tenha um texto sagrado. Ou seja, não é possível ser fundamentalista em religião sem texto sagrado, pois o fundamentalismo se origina na crença de que há uma palavra revelada. O fundamentalista crê que o texto sagrado, revelado por Deus, é a palavra final. No caso dos católicos, o fundamentalismo está alimentado pelas encíclicas papais, que são a releitura e a interpretação do texto sagrado pelo suposto ‘enviado’ de Deus na Terra, o papa.

Não seria apenas coincidência que a reação da Igreja contra o direito de decidir das mulheres diante de uma gravidez indesejada ou inesperada tenha ocorrido no mesmo período em que tomaram grande visibilidade as denúncias contra padres pedófilos no Brasil. A prisão de padre Félix Alberto Carreiro – pego em motel de São Luís, no Maranhão, na companhia de quatro rapazes, dois deles adolescentes –, em 5 de novembro, teve grande repercussão e obrigou a igreja a declarar sua posição.

Postura condenatória

O Estado de S. Paulo foi o único jornal monitorado que fez a ligação entre os fatos, na edição de 11 de novembro, em matéria na qual divulgou declaração do presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), D. Geraldo Majella Agnelo, sobre o padre Félix: ‘Não podemos compactuar com ele. Cometeu um ato gravíssimo’. O vice-presidente da CNBB, D. Antonio Celso Queiroz, classificou o episódio de escândalo.

As declarações dos bispos sobre o caso padre Félix foram feitas na apresentação dos resultados da Reunião do Conselho Permanente de Bispos, em Brasília. Nesta reunião foi preparada a nota ‘Direito de nascer’, dirigida a parlamentares, na qual os bispos criticam o projeto de lei que descrimina o aborto, em tramitação na Câmara dos Deputados.

Ao que tudo indica, a CNBB, diante da exposição cada vez mais inegável dos escândalos de padres pedófilos – que, diga-se de passagem, é prática tão velha quanto a igreja –, e na perspectiva de maior perda de credibilidade, identidade e fiéis, assumiu a postura condenatória, mas paternalista. Adotou discurso aparentemente duro contra a pedofilia, cortando na própria carne, e tentou colocar (o jornal ou a CNBB) no mesmo saco de aniagem, para não carregar seu fardo sozinha – padres pedófilos e direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Possivelmente, esperando a mesma prática de condenação por parte da sociedade. Direitos das mulheres, não! Amém.

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Jornalista e assessora de imprensa da Rede Feminista de Saúde; bióloga, coordenadora da área de comunicação da Rede Feminista de Saúde