Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Indelével vergonha ética

Uma ex-aluna de doutorado, dez autores, cópias indevidas de imagens e dois grupos de pesquisa em disputa. O tema do conflito é uma questão tão antiga quanto a ideia de autoria na ciência – o plágio. Em um caso raro de julgamento público no Brasil, um professor da USP é demitido e o título de doutora da estudante é cassado. Os outros oito pesquisadores vestem agora o manto da vergonha pelo que é conhecido como a infração ética capital entre os acadêmicos. O plágio é a cópia indevida e não autorizada de uma criação intelectual. Não é um crime, mas uma infração ética que ameaça a integridade da ciência – embora possa ser crime, se houver direitos autorais envolvidos. O plágio assume diferentes nuances, a depender do campo onde se expressa. Há plágio na música, na literatura, nas artes. Se nos livros de culinária o plágio ganha os contornos de uma cópia criativa e saborosa, na ciência ele escandaliza e emudece seus praticantes.

Seria falso acreditar que os estudantes ou pesquisadores da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, ou da USP, no Brasil, plagiam mais que os outros. Onde há ensino e pesquisa, há a prática do plágio. Grande parte das universidades americanas aderiu aos softwares de caça-plágios pela bagatela de um real por estudante. A ideia é simples e o mercado está em ascensão. Para cada estudante matriculado na universidade, há o registro em um programa eletrônico. Antes de serem avaliados no mérito, todos os trabalhos acadêmicos são submetidos à vistoria do caça-plágio. O programa não emite o veredicto, mas acena para as semelhanças entre o texto e o arquivo do sistema. Para o software mais popular na língua inglesa, Turnitin, o critério mínimo para alertar um possível plágio é o de sete palavras idênticas em sequência. A Universidade de Harvard optou por não aderir à indústria de controle do plágio, pois acredita que a honra acadêmica se ensina e se aprende.

O registro de ‘retratação’

Como professora, nunca identifiquei uma situação de plágio em sala de aula, mas tenho a convicção ética de que o plágio de um estudante de graduação não se compara ao plágio de um colega pesquisador. O estudante está em processo de desenvolvimento moral e intelectual, é um aprendiz das sofisticadas regras da comunicação científica. Antes de descobrir a própria voz, aprenderá as regras da escrita científica. Entre o que se define como citação – a repetição autorizada para o jargão científico – e o plágio há uma fronteira nebulosa para o jovem estudante. O papel dos educadores é continuamente mostrar os limites dessa fronteira e os riscos de ser identificado como um ‘plagiador’. O plágio cometido por um estudante é resolvido com uma reprovação, o castigo máximo autorizado a um professor diante de seu aluno. A reprovação terá consequências permanentes sobre a futura carreira do jovem pesquisador: o registro da infração sempre estará em seu histórico escolar.

Também para um pesquisador maduro o plágio deve ser entendido como uma infração ética e não como um crime. Acredito ser um equívoco usar a força penal do Estado contra o pesquisador plagiador. A diferença entre o estudante e o pesquisador deve estar nas consequências do desvio ético. Um plágio comprovado deve ser publicizado e impor o silêncio obsequioso aos pesquisadores. A vergonha de ser nomeado ‘plagiador’, o dever de retratação pública, a ação da editoria da revista de retirada da autoria são práticas comuns à comunidade científica para o controle do plágio. Como editora de uma revista científica internacional, nunca encontrei um plagiador que assumisse a intenção do plágio: todos sofrem de criptomnésia, memória fotográfica ou desorganização espacial. Aqueles que não apelam para a psiquiatria para fugir do estigma de plagiador alegam ter sofrido o que o crítico literário Harold Bloom denominou, em outro contexto, de ‘angústia da influência’: de tão inspirados em suas fontes literárias, assumem como suas as palavras de outros.

A verdade é que, exceto pelos plagiadores iniciantes, não há como julgar a intencionalidade do plágio. Por inocência ou preguiça intelectual, o resultado do plágio é sempre o mesmo: a violação da honestidade científica. Mas é como uma infração ética que devemos enfrentar o plágio. A comunidade científica brasileira possui uma das ferramentas mais poderosas de controle do plágio – as bases abertas de acesso à comunicação científica, como a Biblioteca Scielo. As mais importantes revistas científicas brasileiras estão disponíveis em formato aberto, uma aposta de democratização da ciência, mas também de vigilância compartilhada sobre a integridade da produção científica nacional. É nesse sítio que os artigos plagiados descobertos serão carimbados com o registro de ‘retratação’, o sinal público de que o manto da vergonha acompanhará para sempre o pesquisador.

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Professora da Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero