Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Interferência política no jornalismo da Cultura

Na sociedade do espetáculo tão bem definida pelo francês Guy Debord, a barbárie é sempre servida como prato principal na telinha da TV, e diante dela, não faltam canastrões sempre ávidos por faturar um pouquinho em cima da miséria alheia. Lamentavelmente, o espetáculo pelo espetáculo é a pedra de toque de um jornalismo rico em clichês e pobre em verdadeiro compromisso com o distinto público, que tem direito e merece informação de qualidade.

Não surpreende nem decepciona o sensacionalismo predominante em grande parte das empresas privadas de comunicação. Não se pode esperar muito mais do que nos é servido pelos barões da imprensa nacional, com uma história lastimável de promíscuas relações com governos e seus parceiros do mundo empresarial. Revoltante é que as emissoras de rádio e televisão, concessões de serviço público, comportem-se como donas e senhoras absolutas do espectro eletromagnético. Paciência. A democratização da comunicação, infelizmente, está longe de ser uma luta capaz de mobilizar a sociedade em defesa de princípios já firmados em outros países. Mas os partidos políticos, a academia e as organizações da sociedade já deveriam manifestar intolerância em relação ao uso das emissoras estatais de rádio e televisão.

Até bem pouco tempo atrás, a TV Cultura, de São Paulo, mantida pela Fundação Padre Anchieta, era um belo exemplo da diferença abissal entre emissoras estatais e emissoras públicas. Agora é um exemplo, mais um, da atenção que a cidadania deve dedicar à forma como são geridas essas emissoras. No mês passado, o secretário de Segurança Pública de São Paulo, Saulo de Castro, protagonizou uma cena lastimável na Assembléia Legislativa paulista, quando dezenas de policiais foram arregimentados para formar uma claque para o chefe. Digna da província mais atrasada, a cena foi tratada generosamente no telejornal da TV Cultura.

Uma semana depois a imprensa abriu manchetes para mais um lance da nossa guerra cotidiana. A polícia montou uma operação para desarticular um plano do PCC que pretendia executar agentes de presídio, deixando um saldo de 13 suspeitos mortos em tiroteios. O que deveria ser normal, rotineiro – a interceptação da informação e a ação efetiva – foi tratado como espetáculo pela imprensa em geral. Já as 13 mortes, em vez de causarem espanto, foram banalizadas ou serviram para aferir a ‘eficiência’ da Polícia. Normal.

Mas o enfoque dado pelo Jornal da Cultura, da TV Cultura, foi especialmente chocante. A reportagem, adereçada com uma animação que descreve uma emboscada fulminante, trazia uma entrevista do secretário Saulo de Castro, cheio de valentia, jactando-se pelo grande feito e prometendo mais. De volta ao estúdio, um comentarista elogiou, aliás, enalteceu, o bom trabalho de ‘inteligência policial’. Se tivesse ouvido exatamente isso nos conhecidos programas de mundo-cão das emissoras privadas e de orientação francamente conservadora, teria passado em branco. Mas era o Jornal da Cultura, da TV Cultura de São Paulo. A nossa BBC terceiromundista revelou-se mais vulnerável do que até então se poderia supor à interferência política no jornalismo. Bem mais terceiro mundo, portanto.

Interferência evidente

Que ‘inteligência’ é essa que resulta na morte de 13 pessoas? A polícia sob a suspeita de haver cometido barbaridades tão graves quanto as do PCC nos dias de completo caos em São Paulo não deveria ser elogiada pela autoria de mais 13 mortes. Mesmo que haja provas do envolvimento de cada um com a ofensiva do PCC, é mais razoável supor a utilidade deles todos vivos para avançar no combate à organização criminosa pelo caminho da investigação. Seus depoimentos poderiam servir como prova em eventuais processos contra os líderes do PCC e seus aliados infiltrados no aparelho estatal.

Nada disso. As informações levantadas pelos serviços reservados da polícia serviram apenas para marcar dia, hora e local da abordagem, antes que os bandidos consumassem as execuções planejadas. O PCC teve algumas baixas, só isso, mas continua firme e forte. Para cada ‘soldado’ morto há milhares de ‘recrutas’ esquecidos pelo Estado, mas sempre lembrados pelas organizações criminosas. A PM paulista é a que mais mata no mundo desde os anos 1970, segundo pesquisa do jornalista Caco Barcelos, em seu livro Rota 66. Sob seu tacão e as chacinas nossas de cada dia, nasceu a mais ousada organização criminosa do país. A brutalidade, como manda a tradição brasileira, venceu a inteligência policial mais uma vez, e a guerra continua, assim como o espetáculo bizarro da ‘moderna’ crônica policial brasileira, farta em tiros, bombas e cadáveres.

Os elogios do comentarista distanciam a TV Cultura do jornalismo público com o qual se declara comprometida. A interferência política evidente a aproxima das demais emissoras educativas estaduais, sempre sujeitas às conveniências do governador da hora e/ou dos ditadores de província. Apesar da derrapada lamentável, o jornalismo da Cultura merece ser visto, até para aguçar o espírito crítico de quem costuma se informar principalmente ou apenas pela televisão.

Se os paulistas estão muito atrás da britânica BBC no quesito jornalismo público, estão anos-luz à frente de quase todos os estados que reduzem o jornalismo de suas emissoras educativas ao ridículo papel de diário oficial eletrônico.

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Jornalista e diretor da Associação Bahiana de Imprensa, Salvador