Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Invasão de privacidade ou direito à informação?

O Observatório da Imprensa na TV exibido na terça-feira (11/9) analisou o direito à intimidade tendo como foco duas polêmicas reportagens publicadas nas últimas semanas. Na primeira delas, o jornal O Globo mostrou imagens da correspondência eletrônica trocada entre os ministros Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia durante uma das sessões do Supremo Tribunal Federal (STF) que decidiu acolher a denúncia da procuradoria-geral da República contra os supostamente envolvidos no esquema de compra de votos que ficou conhecido como ‘mensalão’. Logo em seguida, o jornal Folha de S.Paulo publicou trechos de uma conversa telefônica do ministro Lewandowski na qual ele afirmava que a imprensa teria pressionado o Supremo e alguns integrantes da Corte teriam votado com ‘a faca no pescoço’ a admissibilidade da denúncia.


Roberto Stuckert Filho, repórter fotográfico de O Globo responsável pelas imagens dos e-mails dos ministros, e Vera Magalhães, repórter da coluna ‘Painel’, da Folha de S.Paulo, que presenciou a conversa do ministro Lewandowski num restaurante brasiliense, participaram do programa nos estúdios de Brasília. O debate também contou com as presenças de César Felício, repórter de política do jornal Valor Econômico, em São Paulo, e do jornalista e ex-deputado federal Milton Temer, no Rio de Janeiro.


Após frisar que o papel do Observatório é o de refletir sobre o desempenho da imprensa, e não o de julgar, Alberto Dines questionou: as reportagens invadiram a privacidade dos ministros ou seguiram o princípio de publicar o que é de interesse público? ‘Partimos da premissa que o dever do profissional de imprensa é reportar o que apurou, viu ou ouviu. É isso que a sociedade espera dele. Quem decide se publica a informação e determina o seu destaque é o editor do veículo’, afirmou Dines no editorial que abre o programa, que também examinou a questão do princípio da inviolabilidade da vida pessoal [ver abaixo a íntegra do editorial].


Sorte de repórter


Alberto Dines perguntou a Roberto Stuckert como surgiu a idéia de fotografar as telas dos computadores dos ministros durante a sessão. O repórter-fotográfico explicou que ficara acertado em reunião de pauta ocorrida na noite anterior ao julgamento que a cobertura manteria o foco no assunto principal, mas buscaria um diferencial. Como já havia observado que, apesar do ambiente solene, os ministros mantinham atividades paralelas no computador, ele concentrou o trabalho na intensa troca de correspondência entre os juízes. ‘Com a minha teleobjetiva comecei a olhar que ele [Ricardo Lewandowski] estava trocando mensagens com a ministra Cármen Lúcia’, contou Stuckert. Já na primeira fotografia pôde perceber que não era uma conversa formal e procurou capturar imagens do monitor da ministra Cármen Lúcia para poder reproduzir o diálogo com precisão.


Vera Magalhães atribui à ‘pura sorte de repórter’ a matéria sobre a conversa telefônica do ministro Lewandowski. Ela explicou que no momento em que presenciou a conversa, na noite do último dia do julgamento, estava aguardando o marido na área externa de um restaurante de Brasília. O ministro saíra do restaurante para conversar ao celular e, de acordo com a repórter, ‘não fazia questão de esconder o que estava falando’. Ela permaneceu no local e, quando o ministro retornou ao salão do restaurante, anotou as frases que lembrava integralmente. Vera disse que tomou a decisão de reportar à chefia as informações que escutara porque eram de interesse público e a elas tivera acesso sem qualquer premeditação.


Critérios de edição


Outra situação em que um veículo de comunicação decidiu publicar o conteúdo de uma conversa particular ouvida sem intenção por um jornalista foi relembrada por César Felício. O caso ocorreu em 2002, quando o então repórter do Valor Econômico Ricardo Allan estava hospedado em uma pousada em Pirenópolis, Goiás, e ouviu uma conversa do deputado federal Sarney Filho com a mãe, Marly Sarney, criticando o cunhado Jorge Murad. Naquele período, a Polícia Federal havia apreendido cerca de 1 milhão de reais em dinheiro vivo na sede da empresa Lunnus, propriedade de Murad. Para Felício, tanto no contexto da publicação da matéria da Folha de S.Paulo quando na do Valor Econômico ‘é praticamente um dever publicar o material’.


Milton Temer afirmou que a edição do material que fora entregue pelos repórteres da Folha de S.Paulo e de O Globo diferenciou as coberturas. Para ele, os jornalistas agiram corretamente ao transmitir as informações às editorias, mas estas teriam de funcionar como um filtro e hierarquizar a relevância dos dados. O conteúdo dos e-mails dos ministros publicados por O Globo não revelava ‘nada demais’ naquele momento do julgamento: ‘O problema que criou uma questão constrangedora para o julgamento em si foi a edição. A edição levantou a hipótese de ter um problema imenso naquele diálogo. Tinha problema no que Vera Magalhães captou. O que Vera captou foi um ministro colocando em questão o julgamento dos outros por questões que não se justificam’, disse Temer.


Vera Magalhães contou que teve uma ‘grata surpresa’ ao ser bem recebida pelo ministro Lewandowski no dia seguinte à publicação da matéria, quando foi entrevistá-lo para confirmar a conversa reproduzida. A jornalista disse que o ministro procurou saber as circunstâncias nas quais as informações haviam sido obtidas, mas não negou o teor da conversa: ‘Se disse, sim, invadido, se disse profundamente abalado, profundamente desrespeitado no que ele julgava ser o direito dele à privacidade’, lembrou Vera. Na entrevista, Lewandowski procurou contextualizar as informações publicadas pelo jornal.


Imprensa, o suspeito de sempre


César Felício acredita que a crença da suposta manipulação da mídia é antiga, mas generalizou-se com a entrada do PT no governo. Para ele, os primeiros anos do partido no poder marcaram de forma negativa as relações com a mídia. ‘A imprensa virou o suspeito de sempre, qualquer denúncia, qualquer episódio, qualquer repercussão que haja é uma repercussão artificial inflada pela mídia, manipulada. A gente vê isso em todas as situações’, disse.


Stuckert afirmou que, em sua opinião, não houve invasão de privacidade porque a sessão era pública e qualquer pessoa, a olho nu, poderia ver o que estava escrito no monitor. Os recursos da sua câmera permitiram apenas a leitura dos detalhes. O repórter-fotográfico disse existirem limites para o trabalho da imprensa, e que na Redação é feita uma análise do material enviado para que se decida ou não a publicação. ‘Nós temos uma ética no nosso trabalho e procuramos trabalhar de uma forma que não vá denegrir a imagem de ninguém.’


Jornalismo é sempre investigativo


‘A nossa função é reportar. Não é por outro motivo que a nossa profissão se chama repórter. Não cabe a mim filtrar o que é direito da pessoa saber ou não’, analisou Vera Magalhães. Ela comentou que, em Brasília, é difícil manter uma relação de distanciamento com as fontes. ‘Eu ouvi, eu reportei. Dali para frente tem uma cadeia de responsabilidades do jornal que vai decidir. Eu não tenho medo de represálias, nem vou fazer bravatas’, disse. A jornalista acredita que a democracia no país está suficientemente consolidada para garantir amparo para o trabalho da imprensa.


Os convidados do programa também discutiram se seria invasão de privacidade a veiculação das imagens do assessor especial da presidência da República, Marco Aurélio Garcia, fazendo gestos obscenos logo após o Jornal Nacional ter informado que havia suspeita de falha mecânica no desastre do Airbus da TAM, acidentado em 17/7, em São Paulo. Milton Temer opinou que o cinegrafista que captou as imagens agiu de maneira certa, mas a interpretação do material teria sido incorreta. Para o jornalista, o assessor poderia alegar que estava em ambiente privado ou que estava assistindo a outro conteúdo naquele momento.


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Investigação e privacidade


Alberto Dines # editoral do programa Observatório da Imprensa na TV nº 433, no ar em 11/9/2007


Quarta-feira (12/9), a partir das 11 horas, teremos um novo julgamento que pode entrar para a nossa história. O plenário do Senado vai decidir o futuro político do chefe do Legislativo, senador Renan Calheiros. As primeiras denúncias, assim como no caso do mensalão, também começaram na mídia – primeiro na Veja, em seguida no Jornal Nacional. E, como no caso do julgamento do mensalão pelo Supremo Tribunal Federal, vamos encarar questões assemelhadas: quando Veja revelou as relações extraconjugais do senador, dando início às denúncias sobre os seus negócios, ela invadiu a sua privacidade?


O direito à intimidade foi, por acaso, violado quando um atento fotógrafo registrou com a sua teleobjetiva os diálogos entre dois ministros do Supremo durante o julgamento do mensalão? Foi invadida a privacidade do ministro do Supremo que falava ao celular num restaurante de Brasília?


É bom lembrar que este Observatório não é tribunal, aqui ninguém é julgado. Nosso compromisso é com a reflexão sobre o desempenho da imprensa. Partimos da premissa que o dever do profissional de imprensa é reportar o que apurou, viu ou ouviu. É isso que a sociedade espera dele. Quem decide se publica a informação e determina o seu destaque é o editor do veículo.


É bom lembrar também que o princípio da inviolabilidade da vida pessoal não pode ser examinado abstratamente sem levar em consideração que existe outra cláusula pétrea em nossa Carta Magna: a liberdade da informação, sem a qual não existe democracia.


Uma coisa parece clara: o único poder com a vocação para pressionar os demais poderes é uma imprensa diversificada e livre. Como fazê-lo é uma questão em aberto e, talvez, sem resposta definitiva.

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Jornalista