Tuesday, 05 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Israel sob fogo das manchetes

Quem sempre contraditou as versões israelenses era a rede de TV sediada no Catar, al-Jazira. Agora quem condena as versões do governo de Israel é a imprensa do país.


O título ‘Sete idiotas no governo’ não foi reproduzido de um jornal árabe, turco ou palestino. Estava na terça-feira (1/6) no mais importante diário israelense, o Haaretz, em seguida ao bárbaro ataque ao navio Mavi Marmara que chefiava a flotilha com suprimentos para a faixa de Gaza.


Quem são os idiotas? O premiê Bibi Netanyahu e seis ministros subalternos que o assessoraram nesta insanidade (nenhum deles de pastas implicadas na tomada de decisões militares).


O Haaretz é um jornal de esquerda, encarniçado oposicionista, mas o Yediot Ahronot, o mais vendido em Israel, não ficou atrás e indagou: ‘Como conseguimos ser tão estúpidos?’, titulou.


Mudanças profundas


A pergunta mexeu com os brios da sociedade israelense. Pela primeira vez, ela parece dividida e indignada. A prova são as imediatas e revoltadas manifestações dos mais conhecidos escritores israelenses – Amos Oz e David Grossman – condenando a paranóia militarista que produziu grandes repercussões, internas e externas [ver os textos abaixo].


Abriu-se o caminho para que as organizações pacifistas e humanitárias ganhassem de repente uma proeminência que em outras crises não tiveram. Até uma entidade ‘Rabinos para os direitos humanos’ conseguiu demarcar-se do tradicional apoio dos religiosos à extrema direita.


A Folha de S.Paulo foi a primeira a perceber a importância do noticiário sobre o repúdio da oposição israelense. Mas o único texto oposicionista foi publicado pelo Globo (quinta, 3/6, pág. 29), assinado pela comentarista Sima Kadmon, com o título ‘Quando deixamos de ser inteligentes?’ [íntegra abaixo].


Desta vez as manchetes israelenses podem correr o mundo e produzir grandes mudanças em Israel.


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A frota de Gaza e os limites da força


Amós Oz (*)


Reproduzido da Folha de S.Paulo, 2/6/2010; tradução de Paulo Migliacci


Por 2.000 anos, os judeus só conheciam a força da força em forma das chibatadas que lhes eram aplicadas. Há algumas décadas, porém, nos tornamos capazes de também exercer a força. Seu poder, no entanto, nos embriagou incontáveis vezes. Incontáveis vezes imaginamos que é possível resolver todo grande problema que encontramos por meio da força.


Como diz um provérbio, para o homem que carrega um grande martelo, todo problema tem jeito de prego. No período anterior à fundação do Estado, larga proporção da população judaica na Palestina não compreendia os limites da força e imaginava que fosse possível usá-la para atingir qualquer objetivo.


Por sorte, durante os primeiros anos de Israel, líderes como David Ben Gurion e Levi Eskhol sabiam muito bem que a força tem seus limites e cuidavam em não ultrapassar essas fronteiras.


Mas, desde a Guerra dos Seis Dias, em 1967, Israel sofre de uma fixação pela força militar. O lema é: aquilo que não pode ser realizado pela força pode ser realizado por uma força ainda maior.


O cerco de Israel à faixa de Gaza é um dos fétidos produtos dessa visão. Origina-se da errônea suposição de que o Hamas pode ser derrotado pela força das armas, ou, em termos mais gerais, que o problema palestino pode ser esmagado em lugar de resolvido.


O Hamas é uma ideia


Mas o Hamas não é apenas uma organização terrorista. O Hamas é uma ideia. Uma ideia desesperada e fanática nascida da desolação e da frustração de muitos palestinos.


E ideia alguma jamais foi derrotada pela força nem por bloqueios, nem por bombardeios, nem soterrada sob as esteiras dos tanques de guerra ou atacada por forças especiais da Marinha. Para derrotar uma ideia é preciso oferecer uma ideia melhor, mais atraente e mais aceitável.


A única maneira de remover o Hamas é que Israel chegue rapidamente a um acordo com os palestinos para o estabelecimento de um Estado independente na Cisjordânia e na faixa de Gaza, tais como definidas pelas fronteiras de 1967, com capital em Jerusalém Oriental. Israel precisa assinar um acordo de paz com Mahmoud Abbas e seu governo e, com isso, reduzir o conflito entre Israel e os palestinos a um conflito entre Israel e a faixa de Gaza.


E o último só poderá ser resolvido, em última análise, pela integração entre o Fatah, de Abbas, e o Hamas. Mesmo que Israel capture uma centena de outros navios rumo a Gaza, mesmo que envie soldados para ocupar Gaza mais uma centena de vezes, não importa quantas vezes Israel use suas Forças Armadas, polícia e forças clandestinas, não haverá como resolver o problema.


Não estamos sós


O problema é que não estamos sós nesta terra, e os palestinos não estão sós nesta terra. Não estamos sós em Jerusalém, e os palestinos não estão sós em Jerusalém. Até que nós, israelenses e palestinos, reconheçamos as consequências lógicas desse simples fato, viveremos todos em permanente estado de sítio: Gaza sob sítio israelense, e Israel sob sítio árabe e internacional.


Não desconsidero a importância da força. A força militar é vital para Israel. Sem ela não seríamos capazes de sobreviver nem por um dia. Ai do país que desconsidere a eficácia da força. Mas não podemos nos permitir esquecer nem por um momento que a força só é efetiva de modo preventivo para impedir a destruição de Israel, proteger nossas vidas e nossa liberdade.


Cada tentativa de usar a força não para fins preventivos, ou de autodefesa, e sim como forma de esmagar problemas e esmagar ideias conduzirá a novos desastres, como aquele que causamos para nós mesmos em águas internacionais, no alto-mar, ao largo das costas de Gaza.


(*) Nascido em Jerusalém em 1939, Amós Oz é escritor e jornalista. Publicou 18 livros, traduzidos para cerca de 30 idiomas. Um dos fundadores do Movimento ‘Paz Agora’, representa a chamada esquerda engajada, favorável à criação do Estado palestino. Ensina literatura hebraica na Universidade Ben Gurion


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Quando deixamos de ser inteligentes


Sima Kadmon (*)


Reproduzido de O Globo, 3/6/2010; intertítulos do OI


Quando nós estivemos um pouco menos certos e fomos um pouco mais espertos? Quase tudo o que fizemos nos últimos anos carece de sofisticação, de consideração suficiente. Parece que o ditado ‘não esteja certo, seja esperto’ ganha mais sentido a cada incidente, a cada operação, a cada guerra.


O que significa ser esperto? Por exemplo, enviar o vice-chanceler Danny Ayalon para falar à imprensa estrangeira sobre o incidente em que turcos foram mortos não foi inteligente; o mesmo Ayalon repreendera o embaixador turco, posto numa cadeira mais baixa. É como jogar um pano vermelho numa arena de touros. Onde está o tato? Onde está o bom senso? Não que a alternativa, enviar o ministro Avigdor Lieberman, fosse muito melhor.


No entanto, alguém precisa pensar à frente, ver o cenário completo, compreender implicações e prever reações.


Não precisamos ir muito longe. Por semanas falava-se do comboio e do que precisava ser feito. Não fizeram algo simples: um serviço de inteligência para checar quem estava a bordo dos navios.


Então, seria surpresa que o incidente a bordo do Mavi Marmara causasse tal choque aos israelenses? Ninguém nos preparou para isso.


Ninguém nos disse que aconteceria tal derramamento de sangue e que poderíamos enfrentar esse embaraço internacional. E por que não nos prepararam? Porque nossos líderes não sabiam disso.


Ideias melhores


Não há muito a dizer: não havia muitos cérebros trabalhando.


E não é que precisássemos de uma centelha de gênio. Bom senso seria suficiente para compreender que isso era exatamente o que os manifestantes buscavam: um violento confronto diante das câmeras.


Podemos afirmar com certeza que os líderes do Hamas não estavam afogados em lágrimas quando ouviram sobre as mortes. Eles não podiam sonhar com resultados melhores: ‘Combatentes do Exército de Israel atirando em amantes da paz.’ Podemos dizer que Israel desempenhou um papel amador e patético nas mãos do Hamas.


Ok, estamos certos.


Mas por que diabos deixamos de ser inteligentes? Uma coisa deve ficar clara: não existe sequer uma palavra de crítica aqui sobre os combatentes da Esquadra 13.


Aparentemente eles fizeram o que deveriam fazer. A pergunta, para começar, é: por que tinham que estar lá? Todas as nossas mentes maravilhosas, começando pelo primeiro-ministro, não tiveram ideias melhores do que enviar soldados a um deck onde 600 desconhecidos os aguardavam? É esta a única maneira de parar navios? As cenas repetidas de soldados sendo espancados com bastões foram como um golpe no estômago.


Conforto relativo


Foi triste ver nosso establishment político e de segurança expondo os militares a essa humilhação por causa de sua negligência.


Num país normal, teríamos pedido a renúncia de alguém.


Desculpe, o que eu quis dizer é que, num país normal, alguém já teria renunciado.


Mas, por aqui, o primeiro-ministro decide apenas voltar para casa de uma visita à América do Norte.


E isso deve, supostamente, nos confortar.


(*) Repórter de política do Yediot Ahronot


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Uma marionete suspensa por um fio


David Grossman (*)


Reproduzido do El País, 2/6/2010; tradução do inglês de María Luisa Rodríguez Tapia


No hay explicación que pueda justificar el crimen que se ha cometido, y no existe excusa alguna para las estúpidas acciones del Gobierno y el Ejército. Israel no envió a sus soldados a matar a unos civiles a sangre fría; era lo que menos deseaba. Y sin embargo, una pequeña organización turca, de creencias religiosas fanáticas y hostil a Israel, reclutó para su causa a varios cientos de defensores de la paz y consiguió hacer caer a Israel en una trampa precisamente porque sabía cómo iba a reaccionar, sabía que Israel estaba destinado, como una marioneta sujeta por un hilo, a responder como lo hizo.


¡Cuánta inseguridad, cuánta confusión y cuánto pánico debe sentir un país para actuar como ha actuado Israel! Con una fuerza militar excesiva y una incapacidad fatal de prever la reacción de quienes se encontraban a bordo del barco, su intervención mató e hirió a unos civiles, y además lo hizo -como si fueran piratas- fuera de las aguas territoriales israelíes. Desde luego, esta valoración no significa que esté de acuerdo con los motivos, explícitos u ocultos, de algunos de los participantes en la flotilla de Gaza. No todos sus miembros eran pacifistas humanitarios, y las declaraciones de varios de ellos sobre la destrucción del Estado de Israel son criminales. Pero eso no importa en este momento; esas opiniones, que sepamos, no merecen la pena de muerte.


Las acciones cometidas por Israel el otro día no son más que la continuación del vergonzoso bloqueo de Gaza, que, a su vez, es la perpetuación de la estrategia torpe y prepotente del Gobierno israelí, dispuesto a amargar la vida de un millón y medio de inocentes en Gaza para obtener la liberación de un soldado preso. Y ese bloqueo es la consecuencia inevitable de una política inepta y calcificada, que una y otra vez recurre al uso de una fuerza masiva y desmesurada en cada ocasión en la que lo que se necesita es prudencia, sensibilidad e imaginación.


En cierto modo, todas estas calamidades -incluidos los letales sucesos de anteayer- parecen formar parte de un proceso más amplio de corrupción que aflige a Israel. Da la sensación de que un sistema político empañado y abotargado, consciente y temeroso del desastre provocado desde hace años por sus propios actos y errores, y sin esperanzas de que haya posibilidad de deshacer el lío interminable causado por él mismo, se vuelve cada vez más inflexible ante unos retos acuciantes y complicados y, al hacerlo, pierde las cualidades que en otro tiempo caracterizaban a Israel y sus dirigentes: frescura, originalidad y creatividad.


El bloqueo de Gaza ha fracasado, lleva fracasando cuatro años. Eso significa que no solo es inmoral, sino también inútil, e incluso empeora toda la situación y perjudica los intereses fundamentales de Israel. Los crímenes de los líderes de Hamás, que retienen cautivo al soldado Gilad Shalit desde hace cuatro años sin haber dejado que la Cruz Roja le visitara ni una vez, y que han disparado miles de cohetes desde la franja de Gaza contra pueblos y ciudades israelíes, son actos contra los que es preciso actuar con firmeza, utilizando los medios legales de que dispone un Estado soberano. Mantener sitiada a la población civil no es uno de esos medios.


Me gustaría pensar que la conmoción causada por las desesperadas acciones del otro día va a hacer que se revise la idea del bloqueo y se acabe librando a los palestinos de su sufrimiento y limpiando la mancha moral de Israel. Pero nuestra experiencia nos enseña que ocurrirá lo contrario: los mecanismos de respuesta violenta, las espirales de odio y venganza, han comenzado un nuevo asalto, cuya magnitud es todavía imposible de predecir.


Esta operación insensata demuestra, sobre todo, hasta dónde llega el declive de Israel. No es una exageración. Cualquiera que tenga ojos lo sabe. Ya se oyen aquí algunas voces que pretenden dar la vuelta al sentimiento de culpa israelí, natural y justificado, para afirmar con estridencia que la culpa es del mundo entero. Nuestra vergüenza, sin embargo, será más difícil de sobrellevar.


(*) Escritor israelense