Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

IstoÉ revive a imprensa marrom

No início as chicanas demoravam para ser desmascaradas. Em apenas oito anos, a sociedade desenvolveu antídotos e anticorpos ultra-rápidos: a última exibição do jornalismo fiteiro, versão contemporânea da imprensa marrom, foi escancarada em apenas dois dias: os autores do dossiê estão presos, aqueles que pretendiam tirar vantagens com a sua publicação estão publicamente incriminados, o quadro eleitoral tende a mudar drasticamente e o veículo que fez o trabalhinho sujo para políticos trapaceiros foi empurrado para a beira do túmulo. Ou talvez já esteja enfiado dentro dele, à espera apenas dos sete palmos de terra.


O ‘Dossiê Vedoin’ foi divulgado às pressas pela IstoÉ na quinta-feira (21/9) à noite (a edição regular costuma sair no fim de semana). Na sexta à noite, a capa da revista foi exposta com grande destaque no programa eleitoral do candidato a governador de São Paulo, Orestes Quércia (PMDB). Mas desde a manhã daquele dia já estavam presos pela Polícia Federal duas figuras-chave: o representante do vendedor do DVD produzido pela famiglia Vedoin (Valdebran Padilha da Silva) e o representante dos compradores, Gedimar Pereira Passos (‘contratado pela Executiva Nacional do PT’, segundo a Polícia Federal).


Em poder dos dois criminosos foi apreendida a quantia de 1 milhão e 700 mil reais (em dólares e moeda nacional) para pagar a compra do dossiê. Parte deste dinheiro, segundo a PF, foi fornecida pelo PT; a outra parte, por uma importante revista de circulação nacional.


O desvendamento da megatrapaça 15 dias antes de uma das mais renhidas eleições desde a redemocratização – além de influir no clima pré-eleitoral, no resultado das urnas e, sobretudo, nos desdobramentos pós-eleitorais – deverá marcar decisivamente o papel da imprensa no processo político brasileiro. Esse é o ângulo que interessa a este observador.


Ótica da sarjeta


IstoÉ não é a única protagonista do jornalismo fiteiro. A decadência dos semanários em todo o mundo ajudou a empurrar nossas revistas de notícias para este segmento (Veja divulgou o vídeo da propina nos Correios e até hoje a sociedade brasileira desconhece os métodos e recursos empregados para obtê-lo).


Os semanários brasileiros vem se revezando com igual empenho e irresponsabilidade na propagação da mais abjeta distorção do sagrado direito de informar – a veiculação de denúncias sem qualquer investigação.


IstoÉ desenvolveu o culto da fita. Qualquer revelação desde que transcrita de uma gravação ‘secreta’ era sinônimo de verdade. Mesmo quando a gravação era encenada, mesmo quando a revelação teria mais efeito se pronunciada na tribuna do Congresso ou convertida em denúncia do Ministério Público, mesmo quando servia apenas para salvar a pele de um criminoso (geralmente pródigo nas recompensas).


O culto da fita e do dossiê secreto, além de prejudicar o nosso jornalismo em geral e o investigativo em particular, colocou a imprensa na sarjeta, juntou os marginais da política com os marginais da área da segurança.


Pior do que isso: o jornalismo fiteiro desenvolveu a Ótica da Sarjeta, por meio da qual figuras desqualificadas como Paulo Maluf conseguiram se projetar no cenário político graças à combinação da falta de escrúpulos com inesgotáveis recursos nos paraísos fiscais.


Convém reparar que o vídeo da propina nos Correios foi produzido por um ex-agente da ABIN e doublê de jornalista (Jairo Martins de Souza); e que Gedimar Pereira Passos (o comprador do ‘Dossiê Vedoin’) também trabalhou em órgãos de segurança (a Polícia Federal) e no PT atuava precisamente na área de informações.


Empresários e padrinhos


IstoÉ (junto com, pelo menos, duas outras revistas) foi criada e mantida nos seus primeiros anos graças a generosos empréstimos do Banespa quando Orestes Quércia era governador do estado de São Paulo. Ele e Domingo Alzugaray, o capo da Editora Três, sempre tiveram grandes afinidades.


Quércia, por sua vez, sempre gostou do cheiro de tinta – senão pelo prazer olfativo, pelo menos para usufruir dos poderes da mídia: foi dono de jornal em Campinas, foi dono do Diário Popular (vendido para o Grupo Globo e convertido no Diário de S.Paulo) e hoje é proprietário do DCI (que evidentemente nada tem a ver com esta história).


Em 1985, quando Quércia pretendia apossar-se do PMDB, o partido se revoltou e lançou Fernando Henrique Cardoso para disputar a prefeitura de São Paulo contra Jânio Quadros. Quércia aliou-se ao Estado de S.Paulo (que apoiava Jânio) e passou a abastecer o jornal com todo tipo de informação capaz de desqualificar o candidato do seu próprio partido. Quércia é do ramo, tem tradição e experiência tanto na fabricação de ventiladores como na produção de lama.


IstoÉ está em situação pré-falimentar, não paga aos fornecedores e muitos colaboradores só recebem quando iniciam a cobrança judicial. Na Veja desta semana noticia-se que a revista está prestes a ser vendida a um grupo de comunicação do Rio de Janeiro.


A parte do dinheiro que a revista adiantaria para a compra do ‘Dossiê Vedoin’ certamente não saiu dos cofres vazios da Editora Três; além disso, banco algum lhe adiantaria tal soma em dinheiro vivo. Esta grana veio de algum parceiro – histórico ou novo.


A utilização imediata do documento por Orestes Quércia coloca-o como o primeiro beneficiário (mas não o único) da divulgação de uma calúnia contra o seu principal concorrente. E, naturalmente, como um dos suspeitos pela armação do escândalo.


Com isso não se pretende minimizar a responsabilidade do partido do governo e do próprio governo neste inédito e surpreendente episódio. Esta é uma questão que os observadores políticos saberão destrinchar e levar adiante. O que interessa aqui é buscar um mínimo de transparência no ambiente jornalístico.


Com empresários do estilo dos Alzugaray e padrinhos do tipo de Orestes Quércia será impossível criar uma imprensa sadia, plural, confiável e democrática.


Episódio vergonhoso


Enquanto as entidades empresariais de comunicação não tiverem coragem cívica para limpá-las dos maus elementos a mídia brasileira continuará andando de lado como os caranguejos. Empresários que tiram proveito do jornalismo fiteiro são os grandes estimuladores do jornalismo marrom.


Quando IstoÉ Dinheiro (também da Editora Três) recebeu uma bolada de Marcos Valério para engavetar as denúncias de sua secretária Fernanda Karina, consagrava um padrão de comportamento para os seus empregados e colaboradores mas, principalmente, para os estudantes de jornalismo. O velho Chatô teve sob suas ordens alguns jornalistas do mais alto gabarito moral que recusaram os seus procedimentos, mas fabricou dezenas de outros Chatôzinhos.


A matéria de capa da IstoÉ nº 1926 é uma maracutaia política e um trambique jornalístico. Cascata clássica assinada pelo redator-chefe da revista, Mário Simas Filho. Ao contrário da explicação divulgada pela família Alzugaray [ver nota abaixo], aquelas sete páginas não constituem ‘uma cobertura jornalística’. São uma falcatrua, armação sensacionalista.


Como àquela altura (tarde de quinta-feira, 14/9) os Vedoin ainda não haviam recebido o resto do dinheiro, ofereceram aos repórteres apenas vagas e breves informações. Nenhum documento, indício consistente, prova ou foto. Como bem observou Luiz Weis em seu blog neste Observatório, aquilo não era uma entrevista, mas uma declaração conjunta dos Vedoin entremeada por algumas perguntas formais do repórter para fingir uma conversa.


Na verdade aquelas sete páginas escritas às pressas resumem-se a duas (págs. 30-31) onde o repórter pinçou apressadamente alguns dados desconexos que não chegam a alcançar José Serra, o principal alvo do dossiê. Está evidente que aquela matéria deveria funcionar como um trailer: a matéria-bomba sairia na semana seguinte, quando os Vedoin recebessem o resto do pagamento e liberassem o resto das informações.


Pior do que a cascata produzida e assinada por um jornalista que ocupa importante cargo executivo de uma revista de circulação nacional foi a sua declaração à Folha de S.Paulo (terça, 19/9, pág. A-11) [ver abaixo]: “…se soubesse que alguém estaria comprando alguém para que alguém desse a entrevista também teria publicado isso…”  Essa doutrina do vale-tudo domina hoje o outrora “maravilhoso mundo das revistas semanais”.


Em seguida, Mario Simas Filho conclui: “De minha assinatura para trás não sei o que ocorreu”. Isto é: nada chamou a sua atenção, nenhuma contradição foi percebida entre os que os Vedoin sempre disseram à CPI e o que lhe diziam agora em Cuiabá. Não estranhou a forma com que aquelas informações de repente foram parar em suas mãos, nem as omissões que foi obrigado a manter.


Este é um capítulo lamentável da nossa história política e, ao mesmo tempo, episódio vergonhoso na história da imprensa brasileira. Com personagens e tramas deste nível, os desdobramentos são ainda mais preocupantes.


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Quando o Diário da Noite do Rio de Janeiro denunciou, em 1960, as revistas de escândalos e as designou como Imprensa Marrom (variante nacional da Yellow Press americana) seus responsáveis foram parar na cadeia. O jornalismo fiteiro aguarda um desfecho igual.


[Texto fechado às 23h09 de 18/9; atualizado às 14h14 de 19/9]


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Nota da revista IstoÉ


‘A Revista IstoÉ, em virtude das informações veiculadas nos últimos dias, esclarece que:


1) Não compra e nem nunca comprou dossiês ou entrevistas. A reportagem publicada na sua edição de número 1926, do final de semana, é resultado de trabalho jornalístico da sua própria equipe.


2) A decisão de publicar as denúncias envolvendo o nome do ex-ministro da Saúde José Serra deveu-se ao fato de que foram formuladas pelos empresários que têm pautado as investigações e acusações em torno da CPI dos Sanguessugas.


3) A Revista condena a venda de dossiês e entende que cabe à Polícia Federal a investigação dos fatos.


4) Da mesma maneira, a Revista considera que as denúncias feitas pelos empresários Vedoin devem ser investigadas com profundidade para a adequada apuração dos fatos.


5) Por fim, a Revista teme que manobras diversionistas possam tirar do foco central as investigações sobre as graves denúncias a respeito da Máfia das Ambulâncias.


Domingo Alzugaray, diretor-responsável e editor, 18/9/2006


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IstoÉ nega ter comprado dossiê ou entrevista


Frederico Vasconcelos *


Copyright Folha de S.Paulo, 19/09/2006


O editor e diretor responsável da IstoÉ, Domingo Alzugaray, distribuiu comunicado afirmando que a revista ‘não compra e nunca comprou dossiês ou entrevistas’. Na nota, ‘condena a venda de dossiês’ e diz que ‘cabe à Polícia Federal a investigação de tais fatos’.


Ele diz que a reportagem em que Darci Vedoin e seu filho Luiz Antônio Vedoin acusam o ex-ministro da Saúde José Serra de envolvimento com a máfia das ambulâncias ‘é resultado de trabalho jornalístico’.


O redator-chefe da IstoÉ, Mário Simas Filho, que assina a reportagem, disse à Folha que, ‘se soubesse que alguém estaria comprando alguém para que alguém desse a entrevista, também teria publicado isso’.


‘Da minha assinatura para trás, não sei o que aconteceu’, diz. ‘Não tenho nenhuma informação que envolva dinheiro nesse processo.’ Simas diz que o fato de Serra e o ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde Barjas Negri não terem sido ouvidos ‘foi uma avaliação da revista, porque era entrevista do tipo pingue-pongue’.


‘Fui procurado por uma fonte antiga, cujo nome devo preservar, dizendo que os Vedoin estavam entregando documentos bancários à Justiça Federal, que isso iria acabar envolvendo o Serra e o Barjas Negri na Operação Sanguessuga e que eles estavam dispostos a dar uma entrevista’, diz.


Simas diz que foi levado à casa dos Vedoin, em Cuiabá, pelo advogado dos empresários. Lá, foi autorizado a fotografar todos os documentos. ‘Não permitiram que eu tivesse cópias’, diz. ‘Em nenhum momento, foi falado para mim em fita de vídeo ou em foto’, disse.


‘Tive o cuidado de ligar para o Ministério Público, em Cuiabá, para saber se, de fato, aqueles documentos tinham sido entregues ao órgão. E isso foi confirmado’, afirma.


‘Acho que tudo que eles falaram tem que ser investigado. Eu estou investigando. Vou soltar mais matérias nesta semana. Eles deram um monte de pistas e nenhuma delas eu escondi’, diz Simas.


* Repórter da Folha de S.Paulo


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Nota da revista Época


[Divulgada às 15h39 de 19/9/2006]


Em depoimento à Polícia Federal, o advogado Gedimar Pereira Passos – que afirma ter sido contratado pelo PT para negociar um dossiê com denúncias contra o candidato José Serra – citou a revista Época. Diante dessa citação, Época gostaria de esclarecer que:


1) Oswaldo Bargas, ex-secretário do Ministério do Trabalho, atual responsável pelo capítulo de Trabalho e Emprego do programa de governo de Lula, procurou há duas semanas o jornalista Ricardo Mendonça, de Época. Ele pediu um encontro com o repórter.


2) O encontro foi marcado para uma suíte do hotel Crowne Plaza, em São Paulo, no final da tarde do dia 6 de setembro. Nessa reunião estava presente também Jorge Lorenzetti, analista de risco e mídia da campanha de Lula. Bargas afirmou ter sido procurado por alguém que tinha denúncias sérias contra políticos de renome. As acusações, segundo ele, poderiam ser comprovadas por meio de fotos, vídeos e de uma ‘farta documentação’. Bargas perguntou se havia interesse da revista em publicá-las.


3) O repórter de Época disse que tinha interesse em conhecer o teor das denúncias, mas não se comprometeria a publicá-las. Isso dependeria de uma investigação sobre a relevância e a consistência das acusações.


4) Bargas afirmou não ter nada para mostrar naquele momento. Disse que não podia especificar quais eram as denúncias nem quem era o denunciante. Diante da insistência do repórter, ele disse apenas que as denúncias seriam fortes o suficiente para desmoralizar o candidato do PSDB ao governo do Estado de São Paulo, José Serra, e o ex-ministro da Saúde Barjas Negri.


5) Durante o encontro, Bargas e Lorenzetti disseram várias vezes que aquela reunião nada tinha a ver com o PT nem com o governo. Aquele encontro, segundo eles, servia apenas para sondar o interesse de Época. Bargas afirmou que Aloizio Mercadante, concorrente de Serra na disputa pelo governo de São Paulo, não sabia das denúncias nem da reunião. Disse ainda que, no PT, apenas o presidente do partido, Ricardo Berzoini, havia sido avisado do encontro com o repórter para passar informações de interesse da campanha. Berzoini, segundo Bargas, não tinha conhecimento do conteúdo do material.


6) No final da reunião, que durou cerca de 30 minutos, Bargas disse que voltaria a falar com o denunciante e depois entraria em contato com o repórter.


7) Naquela mesma noite, Bargas telefonou para avisar que o denunciante voltara atrás e não queria mais apresentar o material, nem dar entrevista. Uma semana depois, a revista IstoÉ publicou a entrevista em que Darci e Luiz Antonio Vedoin, os donos da Planan, acusavam Serra e Barjas Negri.