Em momentos como os que estamos vivendo hoje no país, sentimos de forma clara os efeitos da complexidade informativa e da nossa dificuldade de entender o que está acontecendo. Os dois efeitos mais perceptíveis são a polarização e a apatia, posturas que no fundo refletem uma mesma reação: a difícil convivência com a incerteza. Por esta razão, o Observatório está publicando alguns textos longos que vão um pouco mais fundo na interpretação da atual situação no país. É possível que alguns leitores nos enquadrem nas tradicionais categorias do contra, a favor ou em cima do muro, mas os riscos da incompreensão são muito menores do que o de opiniões mal informadas.
O texto a seguir é o resultado de uma pesquisa da jornalista Cileide Alves, comparando os editoriais dos três maiores jornais do país nas crises de de 1964, 1992 e 2016. O trabalho, publicado originalmente na plataforma Medium, chega a uma conclusão surpreendente: os editoriais são mais confiáveis que as notícias nos tres maiores jornais do país.
O jornalismo nunca foi tão esmiuçado, esquadrinhado, debatido, criticado como neste período pós-industrial, ou seja, na era digital. Às questões antigas — qualidade, independência, ética, compromisso social com as notícias etc. — juntaram-se outros temas próprios da mudança do modelo de negócio dos jornais, do surgimento de novos produtos de informação na internet e até mesmo da “concorrência” do chamado jornalismo cidadão.
Apesar das novidades, penso que as antigas questões continuam relevantes, pois são elas que construirão e/ou destruição reputações de profissionais e a credibilidade de marcas, independentemente da plataforma em que estiverem hospedadas. A cobertura que a mídia brasileira tem feito dos acontecimentos políticos atuais entrou na pauta de discussão desde as manifestações de 2013. E os veículos, que já foram vistos como meros reprodutores de fatos, agora são questionados, até mesmo com uma injustificável violência.
Numa sociedade horizontalizada pelas redes sociais, pais, padres, professores, médicos, para citar alguns exemplos, perderam autoridade. A hierarquia quebrou-se. Os políticos perderam credibilidade, mas não o poder, e não seria diferente com a mídia, a mais exposta. Ao longo desses dois anos de governo tumultuado de Dilma Rousseff, o papel da imprensa foi colocado em xeque em inúmeros artigos jornalísticos e acadêmicos, discursos e bate-papo nas redes sociais.
Assim comecei a me questionar. Qual foi o papel da mídia no processo de impeachment de Dilma? Decidi fazer uma pesquisa em três momentos de queda de presidentes da República no Brasil. Diante da dificuldade de acesso a arquivos de tipos diferentes de mídia, optei por três jornais cujos acervos estão disponíveis na internet: Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo e O GLOBO.
Escolhi três fatos: a deposição do presidente João Goulart, em 1964, pelo golpe militar; o impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, em 1992; e o processo de impeachment atual. Dediquei várias horas a ler editorais dos três jornais de março e abril de 1964; de setembro e dezembro de 1992, meses da admissibilidade do impeachment e da renúncia de Collor respectivamente, e o apanhado de editorais de janeiro a 20 de abril deste ano dos mesmos jornais.
O resultado dessa pesquisa pode ser conferido nos quatro textos abaixo. No primeiro relato o que encontrei nos jornais de 1964. No segundo trato da era Collor. A era Dilma está no terceiro texto. No quarto, faça a análise do material e dou a resposta para o título acima.
O Golpe de 64 contado pela Folha, Estadão e O Globo
Os livros de história já contaram em detalhe o envolvimento e apoio de praticamente toda a mídia brasileira a favor da deposição do presidente João Goulart e, posteriormente, o apoio ao golpe militar. A releitura hoje de alguns editoriais da Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo e O GLOBO da época dão pistas preciosas para compreender o papel da imprensa em momentos de crises políticas e permite compreender que suas posições não foram fatos isolados, mas se interligam, apesar dos acontecimentos em períodos históricos distintos.
Por meio do acervo digital dos três jornais, li edições de março e abril de 1964 dos três jornais. Primeira percepção do leitor de hoje é como nos parecem familiares as descrições que os jornais faziam do Brasil de 1964 para justificar uma intervenção. Segundo o noticiário, o país passava por uma das maiores “crises de sua história” (Folha em editorial, 3/4/64).
“O País está paralisado, títulos caindo da Bolsa, dólar batendo todos os recordes anteriores, população intranquilizada pela maior onda de boatos ocorrida ultimamente” (O GLOBO, 31/3/64). “Os paulistas foram às ruas na manifestação do dia 19 (de março, a famosa Marcha da Família, com Deus pela Liberdade), com a ‘heroica decisão com que os paulistas defenderam, há 32 anos a soldadesca de Getúlio’” (O Estado de S.Paulo, em editorial 1º/4/64).
Aqui um parêntese: em 20 de março, o Estadão abriu uma foto vertical de cima abaixo na capa com o título Enquanto há liberdade, noticiando a marcha que tinha sido realizada no dia anterior. Dia 19, o jornal publicou um anúncio de um quarto de página convidando os leitores para a manifestação. Fecha parêntese.
Dos três jornais, A Folha foi a mais discreta na notícia da vitória dos “revolucionários”: Congresso declara Presidência vaga; Mazzilie assume (2/4/64). O GLOBO foi um pouco além: Empossado Mazzilli na Presidência — Fugiu Goulart e a democracia está sendo restabelecida. O Estadão: Democratas dominam toda a nação.
Os três jornais não enxergaram na deposição de um presidente e na outorga do Ato Institucional nº 1, em 9 de abril – que alterou a Constituição de 1946 e determinou, entre outras mudanças, a eleição do presidente pelo Congresso Nacional em substituição ao presidente deposto –, como atos autoritários, inconstitucionais e contrários à democracia que diziam defender na campanha contra Goulart. O Estadão anunciou o sucesso dos militares como “esmagadora vitória alcançada pela democracia liberal (representada pelos golpistas) contra os totalitários extremistas.”
A ilegalidade estava no golpe, mas os jornais esforçaram-se em seus editorais para explicar por que a “revolução” pôs fim à ameaça de quebra constitucional que diziam viria dos “agitadores” e do presidente deposto. O Estadão fez um editorial brilhante (aliás é justo dizer que o jornal sempre primou por editorais bem escritos, mesmo que se discordem deles), apesar de delirante, para explicar essa contradição. Em 11 de abril, dois dias depois dos militares instituírem o AI-1, o jornal escreveu:
“E realmente o que distingue uma revolução de um golpe de Estado, por exemplo, é o fato de que aquela, uma vez vitoriosa, se converte em fonte de Direito e, como fonte de Direito, o poder que ela encarna se transforma ‘ipso facto’ em órgão constituinte que se autoriza do fato de ser o legítimo representante da vontade popular. E, como tal, o primeiro ato que deve participar é outorgar-se uma Constituição que lhe conceda direitos sem os quais não poderia levar a bom termo os objetivos da Revolução, e que, ao mesmo tempo, trace os limites de seu próprio poder”.
Em outras palavras, o golpe (ah, não era golpe, era revolução) legitimou-se porque os militares outorgaram uma Constituição, nada muito diferente do que fizeram todos os golpistas em épocas anteriores, como em 1930. As contradições eram visíveis nos três jornais, mas ignoradas. Em 3 de abril a manchete do GLOBO dizia: Mais de 800 mil pessoas na “marcha da vitória e, ao lado, o editorial A vez do Congresso, lembrando que pela Constituição o Congresso tinha 30 dias para eleger novos presidente e vice-presidente. O jornal acreditava no respeito a Constituição. Só que na mesma edição, abaixo da matéria sobre a “marcha da vitória” da democracia na página interna, outra reportagem informava: O Exército dissolve passeata em Brasília e prende Darci Ribeiro.
Aparentemente os três jornais confiavam, a julgar pelas reportagens dos primeiros dias pós-golpe, que os militares restaurariam a democracia. “Voltou a nação, felizmente, ao regime de plena legalidade que se achava praticamente suprimido nos últimos tempos do governo do ex-presidente João Goulart. E isto se fez, note-se, com mínimo traumatismo, graças ao discernimento de nossas Forças Armadas, que agiram prontamente para conter os desmandos de um político que, cercado de assessores comunistas, procurava manobrar o país de acordo com o pensamento desse reduzido grupo e em ostensivo desrespeito às melhores e mais caras tradições de nossa gente.” (Folha, O Brasil continua, 3/4/64)
No editorial Ressurge a democracia (uma ironia visto hoje) O GLOBO crava em 2 de abril na sua primeira página: “Vive a Nação dias gloriosos. Porque souberam unir-se todos os patriotas, independentemente de vinculações políticas, simpatias ou opinião sobre problemas isolados para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a ordem.” E tudo “graças à decisão e ao heroísmo das Forças Armadas…”
A crônica jornalística do impeachment de Collor de Mello
Nos anos 90 o Brasil curava-se das feridas dos 21 anos de ditadura militar e reconstruía com dificuldade sua democracia ao mesmo tempo em que enfrentava uma grave crise econômica herdada dos militares. Acompanhei como estudante de Jornalismo e depois como jornalista em início de carreiras as intensas atividades políticas dos anos 80.
Reverberavam na universidade todos os fatos da época. A anistia e volta dos exilados da ditadura e fim das cassações políticas (1979), o fim do bipartidarismo (1980), eleição direta para governadores (1982), campanha pelas diretas-já para presidente da República (1985), eleição do primeiro presidente civil pelo Congresso Nacional, seguida da morte do eleito e da posse do vice-presidente (1985), eleição direta para prefeito das capitais, áreas de segurança nacional e instâncias hidrotermais (1985), nova Constituição (1988) e a primeira eleição direta para presidente da República (1989).
A imprensa, amordaçada posteriormente pelos militares que haviam apoiado como “salvadores da democracia” das garras dos comunistas, lentamente readquiria sua liberdade. As denúncias contra o presidente Fernando Collor de Mello surgiram ainda em meio à euforia das vitórias democráticas e provocou um desânimo geral na população. Mas ainda treinada pela participação intensa nos movimentos populares dos anos 80 em prol da redemocratização, o povo voltou às ruas pelo impeachment de Collor.
Desta vez, Folha de S.Paulo, O GLOBO e O Estado de S. Paulo tiveram uma atuação independente, se comparada com a cobertura do golpe de 1964. Os três jornais fizeram um trabalho de fôlego de investigação. Não havia delação premiada, vazamento seletivo de informações muito menos redes sociais. A saída era investigar, buscar fontes, conquistar informações privilegiadas e acima de tudo, ouvir muito.
Revendo os jornais da época, percebe-se uma cobertura sem passionalismo. O GLOBO, que apoiou a eleição de Collor de Mello em 1989, evitou se manifestar por meio de editoriais. Em alguns casos ficou até engraçada a omissão do jornal. Em 7 de setembro de 1992 foi realizada uma grande manifestação contra o presidente. No dia seguinte, o editorial do jornal tratava de um festival de cinema realizado no Rio de Janeiro.
Dia 18 aconteceu em São Paulo o que ficou conhecido como o “maior ato político do Brasil”, a manifestação no Vale do Anhangabaú, que a imprensa disse ter tido 1 milhão de pessoas. Diante de tanto barulho, O GLOBO cedeu. Rasgou uma enorme foto na capa ao lado de um editorial. Nele, o jornal critica as ofensas pessoais e os insultos que Collor havia feito na quarta, 16, diante de dezenas de deputados.
“Impossível aceitar para aquela catilinária a definição de desabafo (…). O deplorável episódio, de que foram vítimas algumas das personalidades mais respeitáveis da nossa vida pública, só pode contribuir para aprofundar a crise de governabilidade em que se debate o país.” (O GLOBO, Descontrole, 19/9/92). Note-se o tom crítico, mas respeitoso. Houve outros editorais, mas em todos eles o jornal tenta manter um distanciamento. É o caso de Âncora jurídica (25/9/92) em que defende uma decisão do STF sobre o julgamento do impeachment.
A votação da admissibilidade ocorreu numa terça-feira, e no domingo anterior, o jornal dedicou seu editorial à ética católica. Dia 29 de setembro de 1992 foi o dia que entrou para a história brasileira, com a aprovação do impeachment do presidente pela Câmara dos
Deputados. O GLOBO abriu sua edição com o título seco: Câmara vota hoje destino de Collor. O editorial deste dia defendia mais incentivo às ferrovias (Impulso para o trem, 29/9/92).
A Folha de S.Paulo foi bem mais incisiva. Quase um ano antes da votação do impeachment ela pediu em editorial na capa Renúncia já. “Com rapidez vertiginosa, os desdobramentos do caso PC Farias vieram a atingir o próprio cerne do governo. A sociedade brasileira assiste, angustiada e estarrecida, ao completo colapso da credibilidade presidencial.” (Folha, 30/06/92). No dia da votação, novo editorial na capa chamava a atenção para “um sentido profundo de responsabilidade e decisão toma o país ao chegar o momento de, como gesto firme, dar um desfecho ao drama que o paralisa.” (Folha, 29/9/92).
No dia seguinte, já com o impeachment aprovado, o jornal escreveu: “A provação chegou ao fim. A sociedade brasileira, aliviada, vê uma confirmação eloquente de sua maturidade institucional.” (A lição do impeachment, 30/09/92). E assim o jornal continuou expressando suas opiniões até a renúncia de Collor em 29 de dezembro em editorais bem parecidos com os que escreveu no período do processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff, contundentes, mas sem ataques pessoais.
O Estado de S.Paulo não economizou tinta em seus editoriais. Chamou a minha atenção a preocupação do jornal com a legalidade, diferentemente de 1964. No início de setembro pediu “respeito aos ritos e ao direito” (04/09/92). Posteriormente, reclamou da falta da “decantada objetividade — bem escassa em alguns meios de comunicação — da cobertura da mídia internacional sobre a crise no Brasil”. Em O Supremo em risco (30/9/92) o Estadão explicou sua preocupação com o respeito às leis: “(…) Tivemos uma única e exclusiva preocupação: a de que a ordem jurídica fosse preservada. Não era posição fácil de expor perante parte do público, pois implicava os direitos do cidadão Fernando Collor de Mello.” (Grifo meu)
Também preocupou o Estadão o uso do impeachment de Collor por grupos adversários para alcançarem o poder. “Como já dissemos algumas vezes a batalha pelo impeachment do presidente da República é, na verdade, uma luta pelo poder, na qual o idealismo dos jovens, a angústia dos que não suportam mais conviver com denúncias diárias de corrupção ou simplesmente má administração dos recursos públicos são explorados por alguns que vislumbraram de repente, a possibilidade de voltar a deter comandos na condução da política nacional”, escreveu em 8 de setembro. A preocupação tinha endereço certo, “os clãs” que já tinha passado pelo poder, uma referência direta a José Sarney que articulava a favor do impeachment.
Folha, Globo e Estadão, no segundo impeachment, em 2016
A cobertura do impeachment da presidente Dilma Rousseff ainda está em andamento. Olhar os fatos de tão perto impede uma visão do conjunto. A vista embaraça e o campo de visão diminui confundindo a visão. Diante disso, decide por uma metodologia de trabalho para tentar enxergar um pouco melhor como esses três jornais se posicionaram agora.
Selecionei os editorais de janeiro a 20 de abril, apenas nos dias úteis, deste ano que tratam do escândalo envolvendo a presidente Dilma Rousseff, seu partido e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Fiz uma tabela de Excel para facilitar a análise. De cara já foi possível perceber grandes mudanças em relação ao impeachment de 1992.
O GLOBO e o Estadão deixaram o tom solene que adotaram em 92 e assumiram um tom bem agressivo. O jornal carioca, econômico nos editoriais na era Collor, não ficou um dia sem fazer uma crítica ao governo, a Dilma ou seus aliados. O Estadão, que publica três
editoriais por dia contra um no tempo de Collor, chegou a dedicar os três várias vezes para seus ataques. A imparcialidade que o Estadão cobrou em 1992 foi esquecida agora. Também não se preocupou com o uso do impeachment por grupos adversários como trampolim para ascender ao poder.
O jornal paulista publicou 83 editoriais sobre o tema neste período. Foi o mais duro contra o governo, Dilma, Lula e o PT como em O asceta de Guaranhuns, em que diz ser “notável o atrevimento com que o personagem [Lula], que ficou rico na política, se apresenta como monopolista das mais pristinas virtudes”. (21/1/16)
Repete o ataque em 29 de janeiro: “Lula sempre foi conhecido pela liberalidade e indulgência com que trata questões éticas” e em A farsa desmontada (2/2/16), ao dizer que Lula não é o homem honesto que dizia ser. Usa e abusa de expressões como sandices, demagógicos, populistas, truculência, lulopetismo, bolivarianismo, falta de vergonha e histérica (se referindo à presidente). Escreveu que Lula e Dilma vivem “aos berros”. Referiu-se aos militantes petistas e de movimentos sociais pró-governo como “tigrada”; acusou o governo de tentar um “golpe de Estado” com a nomeação de Lula para ministro-chefe da Casa Civil e Dilma de promover uma “guerra ao Estado de Direito” por se dizer vítima de um golpe. Nem de longe a posição editorial do Estadão lembra os cuidados e preocupações de 1992.
O GLOBO não foge à linha do Estadão. Publicou 29 editoriais no período de minha pesquisa. Foi igualmente duro na escolha dos adjetivos e no tom dos ataques. Usou bastante as expressões lulopetismo, sempre em tom pejorativo, e bolivarianismo, para definir ideologicamente o governo e o PT. Em 25 de janeiro, afirmou que o governo realizava o “projeto de equiparar o Brasil à Venezuela”. Escreveu que “impeachment não é golpe” em mais de um editorial. Lendo esses textos, impossível não lembrar o esforço do Estadão em 1964 para explicar que “revolução não era golpe”. Disse que “vale-tudo empurra Dilma e Lula para a ilegalidade” e que a presidente fala de um “país imaginário”.
A Folha de S.Paulo foi o único dos três que teve uma postura mais próxima da de 1992. Como há 24 anos, também publicou com antecedência um editorial na capa, dizendo que “não lhe restará (a Dilma), caso se dobre sob o peso da crise, senão abandonar suas responsabilidades presidenciais e, eventualmente o cargo que ocupa” (Última chance, 13/9/15). Em outras palavras defendeu a renúncia como fizera com Collor. E o fez em uma segunda vez em Nem Dilma nem Temer (02/04/16) quando pediu a renúncia da presidente e do vice-presidente Michel Temer. Ao longo do período pesquisado, a Folha, que publica dois editoriais diários, fez duras críticas ao governo e seus aliados em 23 textos.
Conclusão: os jornais, como em 64, escolheram um lado
A Guerra Fria dividiu o mundo na década de 60 e essa influência internacional contaminou a política brasileira. A imprensa (representada neste texto pelos três jornais pesquisados) juntou-se aos empresários, militares, movimentos sociais, igreja, e convenceu a população de que o Brasil corria o risco de se transformar em um país comunista pelas mãos do presidente João Goulart. Foi um dos agentes da deposição de Goulart.
A disputa ideológica entre direita e esquerda ganhou a adesão dos jornais, sob o pretexto de proteger o país dos comunistas e dos totalitários. Os jornais se juntaram aos “bons” na luta contra o “mal” e contribuiu decisivamente para implantação do regime que por 21 anos comandou perseguições políticas, prisões, torturas e mortes. Ela própria depois se tornou vítima, a exemplo de tantos outros apoiadores do golpe, como o então governador da Guanabara, Carlos Lacerda — para ficar apenas em um exemplo –, o maior líder da oposição aos governos de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart que depois foi cassado e preso.
Em 1992 a direita estava envergonhada com o recente fim da ditadura militar. A oposição a Collor de Mello uniu todas as forças políticas brasileiras. O país estava em lua de mel com seus políticos, em função da recente redemocratização. Confiava-se que os políticos resolveriam os problemas da Nação pós-queda do presidente. Não havia disputa ideológica, mas uma quase unanimidade contra um governo que liderou o “maior esquema de corrupção da história”. Além da corrupção, que chocou a população à época tal qual a Lava Jato nos dias de hoje, a crise econômica era superior à atual. A inflação estava na casa dos 80%; a taxa de desemprego era igualmente alta e nossa moeda, que já havia mudado de nome várias vezes, nem valor tinha.
Políticos de esquerda, de direita, empresários (também liderados pela Fiesp), sindicalistas, movimentos sociais, igreja todos se uniram pelo impeachment. À imprensa (em especial os jornais e as revistas semanais) coube a tarefa de investigar e fazer a crônica dos fatos, sem precisar se posicionar, como fizera em 1964. Talvez ainda estivesse traumatizada com o erro do passado.
A atuação da imprensa em 2016 em nada lembra a de 1992. Diferentemente, há vários elementos que a aproxima da de 1964. O contexto internacional mudou. Não há mais o fantasma do comunismo da Guerra Fria. A disputa ideológica agora acontece nas Américas, com os governos esquerdistas e populistas na Venezuela, Equador, Bolívia e Argentina, este até a posse do novo presidente em dezembro. Daí surgiram os novos “perigos” a assombrar os setores conservadores da sociedade brasileira. Trocam-se as palavras comunismo e totalitarismo de 64 e por lulopetismo e bolivarianismo. Formou-se, assim, o novo quadro ideológico que novamente uniu jornais, empresários, parte da população e políticos contra esta ameaça moderna representada no governo de Dilma Rousseff.
Na comparação dos editoriais de 1992 com os de 2016, desta vez os jornais não tentaram fazer apenas a crônica dos fatos jornalísticos. Eles mesmos se tornaram porta-vozes dos setores que defendem o impeachment, tomando partido a favor de um dos lados (aqui cabe ressalvar a posição mais neutra da Folha). O escritor Bernardo Carvalho tratou desse assunto no artigo Jogando para a plateia, publicado dia 17 de abril na Folha.
“Por que, agora, quando quero saber de um fato, leio uma coluna de opinião? Será simplesmente porque os jornais estão cheios delas? (…) Ou será porque os fatos nunca estiveram tão descaradamente editorializados? Ou porque a coluna de opinião é pelo menos uma referência subjetiva identificável (sei quem está falando e por quê) em meio à falsa objetividade da guerra de propaganda em que se converteu a mídia?”
Parodiando o escritor, conclui depois dessa longa pesquisa que os jornais só estiveram “descaradamente editorializados” como agora em 1964 e que, felizmente não é mais possível se enganar com a falsa objetividade, há muito perdida “na guerra de propaganda em que se converteu a mídia”. A coluna de opinião é, sim, mais confiável, pois o leitor conhece quem está falando e por quê.
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Cileide Alves é jornalista e pesquisadora da mídia