Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Jornais de um lado, eleitor de outro

No dia 13 de novembro de 2006, na fronteira entre o Brasil e a Venezuela, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva revelou publicamente a sua mágoa com a cobertura política da imprensa brasileira. O presidente insinuava que o tratamento que a mídia lhe dera durante o período pré-eleitoral brasileiro não fora equilibrado. Lula reverberava a tensão entre o PT e a imprensa, antecipada por declarações de Marco Aurélio Garcia, presidente do partido.

No dia 25 de outubro, em Porto Alegre, o presidente já havia expressado o seu inconformismo com a cobertura jornalística. Ele disse que a reação dos jornais sobre erros de petistas é desproporcional aos fatos. Ao mesmo tempo, completou Lula, a mídia é complacente com erros de militantes de partidos políticos liberais.

Se considerarmos os resultados revelados pelos levantamentos dos institutos de pesquisa que acompanharam o comportamento da imprensa durante o período eleitoral, Lula tem certa razão. Mais além dos radicalismos nervosos da grande mídia (a capa da revista Veja com a matéria sobre o filho do presidente duas semanas antes da eleição, por exemplo), o noticiário da imprensa não foi equilibrado: realçou demasiado os aspectos negativos de Lula e de seu partido e foi mais positivo em relação o candidato da oposição Geraldo Alckmin.

Vou examinar inicialmente o acompanhamento realizado pelo Doxa, Laboratório de Pesquisa em Comunicação, Política e Opinião Pública do IUPERJ que acompanhou a cobertura dos quatro grandes jornais brasileiros (Folha de S.Paulo, Estado de S.Paulo, O Globo e Jornal do Brasil) durante os oito meses anteriores à eleição, de 1º de fevereiro a 30 de setembro de 2006 disponível no seu portal da internet. Os dados do segundo turno ainda não estão disponíveis.

O Doxa estudou a ‘valência’ da cobertura noticiosa (exclui os editoriais e colunas). Valência é o potencial que o conteúdo de uma notícia tem para beneficiar ou prejudicar um candidato. De acordo com tendência predominante, a notícia era classificada como neutra, positiva ou negativa para um determinado candidato. Levarei em conta apenas as estatísticas que indicam estabilidade, movimento ascendente ou descente na linha cronológica da cobertura dos jornais durante o período a respeito dos candidatos Lula e Geraldo Alckmin e ignorar as demais estatísticas.

Tendência de queda

Primeiro, vou examinar Lula candidato (as notícias sobre Lula presidente foram classificadas separadamente e não vamos considerá-las aqui). Observando a linha do gráfico no período que vai de fevereiro a outubro, as noticias consideradas neutras em relação a Lula publicadas nos jornais O Globo e Folha de S.Paulo permaneceram relativamente estáveis, caindo, no Estado de S.Paulo e no Jornal do Brasil. Nos dois jornais onde há queda no noticiário neutro em relação ao candidato Lula, esta queda é mais acentuada a partir de julho, quando a linha de noticiário neutro despenca para menos de 20% dos noticiários.

Em compensação, as notícias positivas em relação a Lula caem significativamente, especialmente a partir de julho ou agosto, enquanto as notícias negativas sobem vertiginosamente. As notícias positivas em relação ao candidato Lula no período nunca ultrapassam os 30%, mas se mantêm relativamente estáveis até julho, começando a cair a partir de agosto, não alcançando sequer 10% nos meses seguintes em alguns jornais (exceção para o JB). No Globo, as notícias positivas sobre Lula candidato caem de 30% para 15%, especialmente a partir de 21 de junho. Na Folha, caem para menos de 20% no mês de setembro, no Estadão caem acentuadamente a partir de junho.

Ao mesmo tempo, as notícias negativas aumentam significativamente. O aumento é menor no JB, de 20 para 40%, mas no Globo as notícias negativas sobem de 30% para 60% no período, na Folha, de 20% para 60%, no Estadão, de 30% para 60%. A queda de notícias positivas e o aumento das negativas são dramáticas, portanto, especialmente a partir de julho-agosto, com a aproximação das eleições.

Os movimentos das linhas que ilustram a estatística das notícias positivas ou negativas em relação ao candidato Geraldo Alckmin, com algumas exceções, seguem sentidos inversos. Na Folha de S.Paulo o movimento das linhas entre 20% e 40% indica certo equilíbrio entre notícias positivas e negativas durante todo o período, mesmo nos dois meses que antecedem a eleição. No Globo as notícias se mantêm equilibradas até meados de agosto, mas a partir daí, as positivas a respeito de Alckmin sobem de 20% para 35% enquanto as negativas caem de 40% para 10%. No JB as notícias neutras são mais freqüentes em todo o período examinado, mas a mesma tendência de queda das negativas e aumento das positivas sobre Alckmin ocorre a partir de meados de agosto. Idem para o Estado de S.Paulo onde as notícias positivas sobre Alckmin são mais altas do que as negativas em todos os oito meses anteriores às eleições e sobem de 30% para 50% enquanto as negativas caem de 40% para 20% depois de 15 de agosto.

Razão jornalística

O noticiário dos quatro grandes jornais brasileiros nos oito meses que antecederam o primeiro turno das eleições presidenciais de outubro de 2006 sobre o candidato Lula foi prejudicial ao candidato do PT e beneficiou o candidato Geraldo Alckmin, especialmente nos últimos 45 dias antes do primeiro turno das eleições. Os editores podem argumentar que neste período surgiu a controversa questão do dossiê Vedoin, de caráter negativo para Lula e o PT. Mas, se o noticiário do candidato Lula foi negativo em função dos fatos, fica sem explicar o crescimento do noticiário positivo em relação a Geraldo Alckmin na reta final em pelo menos três dos quatro jornais. Foi essa inversão do noticiário que levou a eleição para o segundo turno.

Vou examinar em seguida as estatísticas relativas ao movimento do noticiário pré-eleitoral de cinco jornais (os quatro acima citados, mais o Correio Braziliense) realizados pelo Observatório Brasileiro de Mídia durante três meses, do dia 6 de julho (início da campanha) ao dia 29 de setembro de 2006. Os dados deste acompanhamento estão agregados, permitindo inicialmente uma análise do conjunto dos cinco jornais. Novamente vou me concentrar apenas nas tendências estatísticas das notícias sobre os candidatos Lula e Geraldo Alckmin no período e ignorar os dados da cobertura sobre Lula presidente, que também estão separados no estudo original. Também aqui só estão disponíveis os dados do noticiário anterior ao primeiro turno.

Grosso modo, as tendências observadas no estudo do Doxa-IUPERJ são confirmadas pela análise do Observatório Brasileiro de Mídia. Acompanhando a evolução do noticiário em relação ao candidato Lula no conjunto dos cinco jornais as notícias neutras se mantêm entre 20% e 30% nos três meses cobertos pelo estudo. Mas, em linha gerais, embora subindo e descendo no período, as notícias positivas em relação ao candidato do PT vão progressivamente caindo de 50% para 20% enquanto as negativas aumentam de 30% para 60%.

No caso do candidato Geraldo Alckmin, a interpretação das estatísticas é um pouco mais complicada. As notícias positivas caem de 60% para 30% no curto período inicial (6 a 19 de julho), mas sobem dos 30% para 40% no resto do período, embora oscilando sempre. As notícias negativas também oscilam, mas mostram um aumento de 15% para 60% no período de 6 de julho a 25 de agosto e uma queda dramática de 60% para 20% desta data até o final do período pré-eleitoral do primeiro turno.

Os dados agregados da semana de 23 a 29 de setembro, uma semana antes do primeiro turno, mostram que o total de notícias positivas sobre Alckmin somam 43% e as negativas apenas 22%, enquanto as notícias positivas sobre Lula somam apenas 19% e as negativas 58%. Os dados relativos às notícias positivas de ambos candidatos nesta mesma semana mostram um equilíbrio no noticiário da Folha de S. Paulo (9% de notícias positivas para cada candidato). Mas, nos outros jornais, o desequilíbrio do percentual de notícias positivas tende dramaticamente a favor do candidato Geraldo Alckmin: 79% x 30% no JB; 63% x 25% no Estadão; 50% x 23% no Globo e 36% x 22% no Correio Braziliense.

Em relação às notícias negativas de cada candidato, as diferenças são ainda mais significativas: 46% negativas para Lula x 13% para Alckmin na Folha de S.Paulo; 64% x 9% no Estadão; 69% x 37% no Globo; 63% x 21% no JB e 50% x 29% no Correio Braziliense.

Os editores poderão argumentar novamente que os fatos reais (o acompanhamento do dossiê Vedoin) prejudicaram o noticiário sobre o candidato Lula na última semana antes do pleito. Pode-se argumentar, em contrário, que o noticiário do dossiê foi artificialmente amplificado naquela semana. Até porque este assunto desapareceu ou ganhou muito menor projeção nos mesmos jornais imediatamente depois do período eleitoral. E contra-argumentar, principalmente: se há razão jornalística para um aumento de notícias negativas a respeito do candidato Lula, não há razão jornalística aparente para um aumento das notícias positivas a respeito do candidato Geraldo Alckmin na última semana da campanha.

Na berlinda

As estatísticas revelam, infelizmente, que o candidato Lula tem razão quando vocifera contra o comportamento injusto dos jornais brasileiros durante o período eleitoral. Os jornais não realizaram uma cobertura equilibrada com noticiário neutro ou com um número equilibrado de notícias positivas e negativas para cada candidato. O noticiário tendeu de forma dramática para o negativo em relação ao candidato Lula e para o positivo em relação a Alckmin, revelando uma partidarização indesejável de uma mídia democrática.

Todos estes dados nos revelam que a mídia desempenhou um papel ativo como ator político na eleição presidencial de 2006. Ela fez uma clara opção ideológica e entrou na disputa presidencial com a intenção de interferir na opção dos eleitores. A posição de alguns veículos é compreensível e tolerável do ponto de vista de suas posições editoriais. Mas, elas não podem interferir nos rumos da cobertura jornalística quando a mídia reivindica uma posição de objetividade, neutralidade e imparcialidade jornalística. A opção política é livre, mas se ela orienta o noticiário, os jornais devem ser honestos e declarar isso publicamente, para conhecimento dos seus leitores.

Nesta eleição, a mídia ficou de um lado, fez uma opção, apostou na queda de Lula. Infelizmente, para ela, o eleitor brasileiro fez outra opção. Isso levanta a necessidade de fazermos reflexões a respeito da influência da mídia no processo eleitoral. Além dos êxitos e fracassos administrativos do governo, aparentemente o eleitor brasileiro tem hoje outras opções disponíveis para se informar, fora do sistema da mídia.

A existência da internet parece fazer toda a diferença. Sem considerar fatores políticos, os blogs, portais, sítios da internet, os informativos online e os e-mails parecem ter funcionado para conectar eleitores em redes independentes. Além disso, o grau formal ou informal de participação dos eleitores em circuitos da cidadania, ONGs, organizações do terceiro setor, etc., parece ter aumentado quantitativa e qualitativamente. O cidadão político brasileiro está tomando decisões de forma mais consciente e independente. Tudo isso diminui a influência da grande mídia.

Além de perder a eleição, a opção editorial da mídia acabou por ampliar a discussão a respeito do seu papel em uma sociedade democrática. As discussões saíram dos círculos profissionais e acadêmicos, ganharam a sociedade. A consciência sobre o papel da mídia aumentou junto à cidadania e ela parece quer esse debate imediatamente. A mídia amplificou fatos políticos, ignorou outros, aqueceu artificialmente alguns episódios, foi mais oposição que os partidos. Ela foi arrogante, patrulhou, desqualificou o eleitor, chamou os eleitores de atrasados, grotões. Saiu chamuscada, teve de engolir o sapo (barbudo) e agora está na berlinda. Jogou contra o eleitor, ele agora está cobrando.

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Jornalista, professor de jornalismo na Universidade de Brasília, coordenador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política e editor de Mídia&Política