Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Jornalismo e emoções

Num dia de calor no final da década de 1880, o jornalista e fotógrafo Jacob Riis encontrou um sufocante cortiço em Mott Street, Nova York. Uma família estava sentada em torno de uma criança com a respiração difícil. A expressão deles era vazia. A menininha não estava doente nem ferida. Estava com fome. As mãos do pai tinham sido aleijadas pelo envenenamento por chumbo, a mãe e um dos quatro filhos tinham ficado quase cegos por causa de uma simples infecção ocular. Sem poder trabalhar, a família dependia de pequenas caridades. Numa tentativa desesperada de devolver a saúde à menina, tinham tentado fazê-la beber um refrigerante, a muito custo.

A descrição da família feita por Riis foi publicada em seu livro How the Other Half Lives e, pela primeira vez, muitos de seus leitores abastados viram de perto a face da fome, em sua própria cidade. Reportagens a respeito das favelas não eram comuns nos jornais da época, servindo em geral como entretenimento sensacionalista com foco na violência e indecência entre as classes mais baixas. Elas reforçavam a percepção majoritária segundo a qual os pobres seriam menos morais que os ricos e responsáveis pelo próprio destino.

Riis buscou humanizar os pobres. E funcionou. Como poucos tinham feito antes, ele despertou empatia e compreensão por pessoas desconsideradas, ignoradas ou incompreendidas pela sociedade. Suas reportagens trouxeram verdadeiras mudanças sociais e ajudaram a dar impulso a um movimento incipiente pelo fim da pobreza.

Há muito a obra de Riis serviu como espécie de estrela-guia jornalística. Mas, com pixels e telas cada vez mais substituindo a tinta e o papel, pesquisas indicam que nossa maneira de vivenciar aquilo que lemos pode ser alterada de maneiras profundas. As telas podem reduzir o tempo que dedicamos à leitura mais concentrada – o tipo de leitura que desenvolve o raciocínio abstrato e criativo, como destacou a cientista Maryanne Wolf. Outros cientistas indicam que nossa maneira de processar as palavras nas telas pode até afetar a empatia que sentimos pelos personagens das histórias que lemos. Em The Shallows: What the Internet Is Doing to Our Brains, o autor Nicholas Carr escreve até que a internet pode estar “alterando a profundidade das nossas emoções e pensamentos”.

Início de um debate

Será que a mudança da forma impressa para a digital realmente afeta nossa capacidade de sentir empatia pelos personagens das reportagens? Quais seriam os efeitos disso no jornalismo?

O cérebro humano desenvolve e recebe naturalmente a empatia, mas as respostas empáticas aumentam conforme reunimos mais informações a respeito dos outros. As narrativas despertam sentimentos de empatia de maneira semelhante, motivo pelo qual as reportagens têm o poder de influenciar a consciência das pessoas e motivá-las a agir. Uma área de investigação acadêmica indica que o tempo de leitura e o foco podem diminuir conforme nossos hábitos migram do papel para as telas. No fim, essa redução no tempo e no foco podem afetar a empatia que sentimos pelos personagens das reportagens.

Imagine sentar-se para conversar com uma mulher que perdeu o pai. Ouvimos a história dela, observamos sua linguagem corporal e reparamos no seu tom de voz. Numa fração de segundo, nosso cérebro produz uma espécie de imagem interna de nós mesmos vivenciando algo parecido, nossa própria “representação” da dor emocional que observamos no outro. Além disso, assumimos ativamente a perspectiva alheia ao tentarmos inferir como deve ser a vivência dela: era próxima do pai. Podemos imaginar como deve ter sido doloroso perdê-lo. Com base no nosso entendimento da situação dela, nos sentimos motivados a melhorar ativamente a condição dela. Damos um abraço nela ou nos oferecemos para trazer o jantar.

Num experimento de 2004, Rick van Baaren e seus colegas descobriram que as pessoas eram mais amistosas e solícitas quando seus costumes eram imitados. Eles dizem que, essencialmente, preferimos pessoas semelhantes a nós porque sentimos que as entendemos, e damos a elas tratamento preferencial. A percepção da semelhança é fundamental para a empatia. Atrocidades como o Holocausto e os genocídios na Bósnia ou em Ruanda tiveram como base construções sociais que transformaram grupos de pessoas em “outros”, vistos como fundamentalmente diferentes e, portanto, indignos de empatia.

Eis o talento e a habilidade de escritores de não ficção como Jacob Riis, que sabia que narrativas bem construídas podem fazer com que os leitores se identifiquem com e desenvolvam empatia pelos personagens. Mas, conforme nossas reações aos textos mudam de maneira dramática e rápida, será possível que essas narrativas bem elaboradas estejam perdendo seu poder?

Num dia de inverno de 2013, Dasani, de 12 anos, estava num trem nova-iorquino em direção ao Brooklyn com duas de suas irmãs e a mãe, Chanel, quando um homem sentado diante deles ergueu os olhos de seu exemplar do New York Times. O homem voltou o olhar para o jornal e observou novamente a família. “Uau, que reportagem poderosa”, disse ele depois de Chanel confirmar que sua família era de fato aquela retratada em Invisible Child, série investigativa do New York Timessobre crianças sem teto. Antes de sair do trem, o homem entregou à família uma nota de US$ 100. “Fique com o dinheiro. Feliz Natal. Faça algo bacana com as crianças hoje”, ele disse à mãe delas.

A repórter que escreveu a reportagem, Andrea Elliott, diz que jamais imaginou reações como essa à sua história. Sua caixa de e-mails ficou lotada, leitores enviavam envelopes de dinheiro a Dasani e sua família e ofereciam viagens à Disney. O apoio e as doações se estenderam além da família, sendo oferecidas à escola de Dasani e ao abrigo onde elas moravam no Brooklyn. Invisible Child é um exemplo do poder da narrativa. É também um exemplo daquilo que motiva muitos jornalistas, aquilo que acreditamos ser possível alcançar com nossas narrativas: estender a empatia em relação ao indivíduo para o grupo, corrigir injustiças, inspirar mudanças ou conscientização.

Com frequência, são reportagens de revista com foco narrativo que realmente correspondem a esse potencial, como indica um estudo de 2012 elaborado por pesquisadores principalmente da Universidade Estadual da Pensilvânia, The Effect of Narrative News Format on Empathy for Stigmatized Groups. O estudo pediu a 399 indivíduos que lessem uma versão narrativa ou não narrativa da mesma reportagem.

Uma das reportagens trazia o perfil de um imigrante ilegal, Alejandro Martinez, que teve dois dedos amputados num acidente de trabalho. O ferimento poderia ter sido tratado e os dedos dele, salvos, se ele pudesse arcar com o custo do seguro-saúde e do atendimento médico adequado. Na versão narrativa, os leitores ouvem as palavras diretamente da boca de Martinez e sua mulher; conhecemos seus dois filhos, e a história compara detalhes do cotidiano dele antes e depois do acidente. A reportagem não narrativa destaca o caso de Martinez, mas não o cita diretamente, não descreve cenas nem apresenta detalhes pessoais.

O estudo revelou que os leitores da reportagem narrativa sentiram um grau mais alto de compaixão e empatia em relação a Martinez, sentimentos que foram estendidos aos imigrantes ilegais enquanto grupo. No geral, os leitores da narrativa apresentaram uma mudança positiva em suas atitudes e opiniões e demonstraram mais interesse na busca por informações a respeito das condições de vida dos imigrantes ilegais ou mesmo em tentar ajudá-los. Os acadêmicos explicam esse efeito da narrativa usando algo chamado “teoria do transporte narrativo”: envolver-se numa história a ponto de termos a sensação de habitar aquele espaço e momento, com um elo tão forte com os personagens a ponto de suas alegrias e tristezas despertarem em nós uma reação física. David Comer Kidd e Emanuele Castano até indicam que a leitura de narrativas faz de nós mais empáticos no geral, porque as histórias nos obrigam a empreender um intenso exercício de assumir perspectivas alheias. Aquilo em que acreditávamos intuitivamente a respeito de como as reportagens jornalísticas podem despertar empatia entre os leitores é respaldado pela ciência. A pergunta que fica é se esse despertar pode se tornar menos intenso conforme nossa cultura avança para o digital.

A empatia, a capacidade humana de estabelecer conexões com outros seres humanos, é fundamental para o comportamento moral. Mas seu desenvolvimento leva tempo. Assim, quais são as implicações para uma indústria na qual o trabalho dos jornalistas é cada vez mais consumido digitalmente, formato que se presta à velocidade? Na internet, passamos os olhos pelas reportagens e migramos de link em link, enquanto somos bombardeados por alertas, e-mails, janelas de mensagens.

Um estudo de 2006 realizado por Karin Foerde e seus colegas mostrou que lidar com múltiplas tarefas ao mesmo tempo pode alterar nossa forma de aprender e lembrar as coisas, tanto no nível neurológico quanto comportamental. Mas, quanto mais nos esforçamos, mais informação somos capazes de processar, descobriram Gavriel Salomon e Tamar Leigh em 1984, muito antes da internet. Atualmente, o texto impresso ainda é visto como suporte mais sério nos EUA: é o formato em que revistas como The Atlantic e The New Yorker publicam seu melhor conteúdo e onde os jornalistas são mais bem pagos. Enquanto isso, na internet, sempre temos a sensação de haver algo melhor nos esperando alguns cliques adiante.

Entender como os leitores compreendem e retêm as reportagens é fundamental para o jornalismo, pois muitos pesquisadores consideram esses fatores diretamente ligados à capacidade do leitor de sentir empatia. As reportagens têm sobre nós um efeito poderoso. Sentimos empatia pelos personagens assim como sentimos por pessoas “de carne e osso”, e o ato de ler a respeito deles pode até nos tornar mais empáticos de maneira geral, mudando nossas opiniões e nos impelindo a agir.

Sabemos que narrativas mais longas com personagens complexos e tramas fortes podem trazer um impacto profundo aos leitores que dedicam seu tempo a lê-las do começo ao fim. Esse grupo de leitores pode estar diminuindo, segundo estudos recentes que indicam que a leitura superficial e a distração são parte da experiência de leitura digital. Se isso for verdade, a leitura digital parece se prestar pouco a tudo que sabemos a respeito de como o tempo, o foco e a informação sustentam os sentimentos empáticos. Talvez nossas respostas empáticas às narrativas já tenham se tornado mais rasas, sem que tenhamos percebido.

A pesquisa a respeito da leitura digital oferece uma hipótese clara: parece possível que os leitores digitais se sintam menos transportados por uma reportagem de revista por causa da velocidade mais acelerada e do nível de distração incentivados pelas telas. Se os leitores não investirem seu tempo e adquirirem informação suficiente a respeito do personagem de uma reportagem, seu nível de transporte deve ser mínimo. Em outras palavras, se as telas estão reduzindo a capacidade do leitor de ser transportado pela reportagem, o jornalismo terá menos impacto. Os leitores podem se tornar mais seletivos em relação às reportagens que desejam ler e podem até evitar deliberadamente os relatos sobre incompreendidos e sub-representados da sociedade em favor de grupos e narrativas com os quais já se sintam à vontade.

Se nosso experimento vindouro mostrar que as telas de fato reduzem a empatia, isso não precisa ser interpretado como alerta contra a leitura digital, e sim como o início de um debate a respeito de como podemos responder a esses desafios ao ajustar as estratégias de leitura ou até as estruturas dos textos digitais. E se o estudo não apontar nenhuma diferença entre texto digital e impresso? Bem, talvez as coisas não sejam tão sombrias quanto alguns estudos científicos nos levam a crer.

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Lene Bech Sillesen, Chris Ip, David Uberti são jornalistas pesquisadores da Columbia Journalism Review, que circula no Brasil como Revista de Jornalismo ESPM/CJR. Artigo publicado pelo Estado de S.Paulo sob autorização.