Wednesday, 17 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Jornalismo, ética e preocupação ambiental

Volta e meia, aparecem palavras que se tornam as palavras da moda. São termos que não caem apenas no gosto popular, mas também são reforçados pela mídia e circulam nas bocas dos mais influentes. Essas palavras da moda se tornam, então, palavras de ordem, prioridades do momento. Às vezes, essas palavras da moda até funcionam como mantras, desses que são exaustivamente repetidos. Tem gente que quase entra em transe por causa delas.

As palavras da moda, como eu dizia, se tornam palavras de ordem, uma espécie de síntese das escolhas da comunidade. Quinze anos atrás, a palavra da moda era ‘pós-modernidade’. Tudo parecia pós-moderno. Tudo o que se mostrasse muito complexo era pós-moderno. Tudo aquilo que a gente não conseguia explicar era pós-moderno. Foi um rótulo que funcionou, sabem…

Uma década atrás, as palavras da moda foram ‘neoliberalismo’ e ‘globalização’. Então, se o governo não trabalhava direito era por causa do ‘neoliberalismo’, ou se a bolsa caía, o problema só podia ser a ‘globalização’. Choveu demais? Choveu de menos? Vocês já sabem por que, né? Por causa das nuvens, que hoje são todas globalizadas e foram motivadas por interesses neoliberais…

Postura arrogante e pretensiosa

Mas é claro que eu estou exagerando nos meus exemplos. Não é bem assim, embora seja fácil encontrar muita gente que recita certas palavras sem pesar os seus sentidos, sem conjugar os seus significados, sem pensar. Como papagaios, essas pessoas apenas repetem as palavras. Elas adoram essas palavras da moda, pois ao vocalizá-las, as pessoas se integram aos grupos. Entram para as turminhas, para os clubes dos bem-sucedidos, dos inteligentes, dos bem informados. E aí, sai cada coisa…

A minha crítica não é quanto às palavras. Elas existem, elas circulam, elas aparecem, entram na moda e depois saem. E é simples. Isso acontece pelo simples fato de que outras palavras entram em cena, tornam-se mais atraentes e invadem o vocabulário do senso comum. A minha queixa é quanto ao uso desmedido, exagerado, instintivo das palavras da moda. A minha preocupação é que é sempre muito tentador aderir a certas palavras que parecem sintetizar um momento, um estado de coisas. O meu receio é nos tornarmos de uma hora para outra em papagaios, mais uma vez.

Eu não temo a repetição, a falação, o eco. O que me amedronta é o efeito colateral dessa atitude. Quer dizer, quando a gente apenas repete as palavras, não pensa no que fala e não reflete sobre as próprias palavras, nós simplesmente nos deixamos levar pelo senso comum, pelo automatismo e pela inconsciência. Aí, eu uso as palavras da moda numa postura arrogante e pretensiosa pensando que estou abafando, quando na verdade, estou narcotizado, anestesiado.

Novas formas de ver o mundo

Me preocupa, então, a falta de reflexão, o adormecimento do pensamento.

Hoje em dia, uma das palavras da moda é ‘sustentabilidade’. Isso mesmo. Sustentabilidade. Estão vendo como soa como palavra mágica? Como parece uma solução universal para todos os problemas da história da humanidade? Isso porque ‘sustentabilidade’ já esteja circulando pelas bocas com uma facilidade incrível, sem pedágio, sem nada. E aí, no meu modo de ver, estamos num terreno pantanoso, onde é fácil afundar.

Não estou discutindo o conceito de ‘sustentabilidade’, nem as teorias que podem sustentar a ‘sustentabilidade’ como o passaporte do planeta para uma nova era. Eu chamo a atenção de todos aqui, pois se trata de uma plateia de jornalistas ou de futuros profissionais da área. Jornalistas trabalham com palavras, com conceitos e com visões de mundo. E auxiliam os públicos a formar opiniões, a compreender realidades. Desta forma, o uso irracional de palavras da moda tem consequências muito sérias quando elas partem de repórteres, redatores, editores, colunistas. Quando pronunciadas por esses profissionais, essas palavras alcançam dimensões e influência muito maiores. Daí também haver uma responsabilidade imensa dessas pessoas que ajudam a difundir palavras da moda. E é aqui que eu gostaria de fixar um pouco do meu pensamento: na encruzilhada entre a ética, o jornalismo e a preocupação ambiental.

Antes de qualquer equívoco, quero dizer que acredito na ‘sustentabilidade’. Isto é, penso que esse é um conceito importante no nosso atual momento global. Reforçado inclusive pelo ‘neoliberalismo’ e pela ‘globalização’.

Mas, piadas à parte, penso que o conceito de ‘sustentabilidade’ merece muita atenção dos jornalistas quando estão produzindo suas notícias. Merece atenção porque é estratégico para uma reconfiguração das sociedades contemporâneas. Merece atenção porque é complexo e precisa ser bem explicado para o público. O conceito de ‘sustentabilidade’ merece muita atenção dos jornalistas porque se encaixa numa rede de outros conceitos que devem ajudar a redefinir novas formas de ver o mundo, de compreender a realidade e de habitar o planeta.

Meio ambiente se tornou pauta jornalística

Por isso, não me entendam mal: não sou contra a ‘sustentabilidade’. Aliás, até quero parabenizar a Caixa Econômica Federal e a Unochapecó por terem mais uma vez promovido esse prêmio de jornalismo que tem preocupação essencial com o meio ambiente e com conceitos como o de ‘sustentabilidade’. É muito bom ver um patrocinador que não premie reportagens que tratem do seu próprio setor. A Caixa é um banco, um banco público, e a atenção deste prêmio recai sobre algo maior que o sistema financeiro, que o setor bancário, e isso é louvável.

Mas eu dizia que jornalistas precisam estar mais atentos com as palavras, com os conceitos, com as ideias que os recheiam. Me parece claro que estamos vivendo um momento particular na história recente. Trinta anos atrás, na década de 1980, reportagens sobre meio ambiente eram raras na imprensa. As redações nem se ocupavam do assunto. Não havia repórteres capacitados para cobrir a área, nem gente interessada em se especializar. O cidadão comum tinha uma visão muito estreita de ecologia. Era uma coisa de hippie, de gente sem ocupação e com muito tempo livre. Ecologia era coisa de maconheiro, de quem abraçava árvores, de quem aplaudia o pôr-do-sol no rio Guaíba, em Porto Alegre.

Com a Eco-92, as coisas começaram a mudar rapidamente. O vocabulário ambiental se disseminou com uma impressionante rapidez, muitas vezes catalisado por visões apocalípticas do futuro, por visões maniqueístas que opunham natureza e civilização. E muitas dessas visões ainda persistem no imaginário popular e nas próprias redações.

Mas não se pode negar que, de uns tempos pra cá, tenha crescido o interesse da sociedade de saber mais sobre o seu habitat. E que as redações despertaram para um novo nicho de mercado, uma nova editoria e novas pautas em seu noticiário. Rapidamente, e eu digo rapidamente porque vinte anos é um período curto para mudanças de comportamento na sociedade, rapidamente o meio ambiente se tornou pauta jornalística. E eu arrisco dizer que esse assunto não deixará de interessar nas próximas décadas. O que quero dizer é que não se trata de uma moda, de um fato passageiro, de uma bolha de interesse. O jornalismo ambiental não é uma moda. Muito embora tenha gente que use a expressão como as palavras da moda.

Um momento estratégico

E jornalismo ambiental não é moda porque há conceitos que o apoiam, porque há uma mudança na compreensão da área e há um interesse legítimo de observar as muitas modificações que estão sofrendo o homem, as espécies e os ecossistemas. Houve uma mudança de consciência e despertamos a atenção para esses temas.

‘Sustentabilidade’ é uma das palavras da moda, eu já disse. Mas é uma poderosa ideia que pode provocar mudanças de comportamento em escalas mínimas e massivas. Alguém aí pode perguntar: a ‘sustentabilidade’ vai ajudar a salvar o planeta? Eu não sei responder a isso. Não sei mesmo. Os desafios são tão imensos que eu nem me arriscaria a prever um futuro imediato. O que me faz perder tempo (ou ganhar tempo) pensando é como o jornalismo pode ajudar a disseminar não palavras da moda, mas poderosas ideias que transformem positivamente a sociedade. Eu repito: ideias poderosas que transformem positivamente a sociedade. Modestamente, acho que o jornalismo pode interferir nesse processo.

Vivemos um momento estratégico na história, muitos de nós estão dispostos a agir, conseguimos reunir conhecimento que nos permita atuar pontualmente e com resultados positivos. Ótimo. Então, está tudo resolvido, certo?

Claro que não.

Como funcionam as estruturas do poder

Vivemos um momento estratégico, mas é preciso considerar quanto tempo ainda será necessário para que as questões ambientais se tornem mais centrais nas mesas das grandes decisões dos governos e das empresas. Muitos de nós estamos dispostos a agir, mas não são todos. A sociedade não é homogênea, não é um mingau. A sociedade é uma arena onde se chocam interesses antagônicos, uma completa zona de atrito. Por isso, a dimensão política não deve ser ignorada nunca. Eu disse ainda que conseguimos reunir conhecimento que nos permita atuar pontualmente e com resultados positivos. Sim, é verdade. Mas talvez ainda não seja o suficiente para o jornalismo assumir uma função mais referencial para o público. Nem sei dizer se um dia chegaremos a esse estado de coisas, mas o fato é que o jornalismo pode fazer mais pelo meio ambiente, pela sobrevivência humana, pela harmonização de interesses, pela difusão de uma cultura de paz, enfim, pelo desenvolvimento humano e social.

E ao falar essa outra palavra – ‘desenvolvimento’ –, chegamos a um ponto importante da discussão: a tensão cada vez mais permanente entre preservação ambiental e desenvolvimento. Assistimos com grande frequência dentro de um mesmo governo ao choque de visões conflitantes: a então ministra Marina Silva se digladiava com o então ministro Roberto Rodrigues; a ainda ministra Dilma Rousseff esbarra com o ainda ministro Carlos Minc. Pererecas impedem a construção de hidrelétricas; tribos indígenas obstruem a expansão de estradas; bagres atrapalham a transposição das águas de um rio; consórcios empresariais subornam funcionários para obter relatórios de impacto ambiental que lhes permitam construir em áreas de preservação e de conservação; multinacionais manipulam estudos acadêmicos para sustentar suas práticas; pecuaristas derrubam milhares de hectares de floresta nativa para plantarem pasto… A lista é quase infinita. Meio ambiente não é um assunto cor-de-rosa. É um tema que envolve política, economia, cidadania, cultura e civilização. É um assunto que envolve exercícios de poder, disputas de mercado, assunção de valores, escolhas de modelos de sociedade. Meio ambiente é uma área que exige que os repórteres tenham noções mais claras de ecologia, que saibam como funcionam as estruturas do poder, que não se enganem diante dos primeiros balanços e cifras… Enfim, os repórteres desta área não podem ser inocentes, ignorantes, facilmente manipuláveis. Precisam conhecer as leis, ter coragem para investigar e mais coragem ainda para se defrontar com questões de caráter ético.

Um trabalho de gerações

A ética reserva dilemas, exige escolhas e espera atitudes.

Na prática diária, os jornalistas precisam estar atentos aos cenários. Não podem se descuidar das técnicas de sua profissão, nem engolir as primeiras versões de suas fontes. Todas ali têm seus interesses, e o público precisa ter acesso às informações que são decisivas para que compreenda a realidade e tome decisões mais acertadas.

Leonardo Boff escreve sobre a necessidade de uma ética planetária, de um ethos mundial. Boff é um pensador importante e atento. E a sua proposta envolve necessariamente uma atenção com o ambiente que nos cerca e nos constitui. Isso mesmo: a natureza não é entendida como algo que nos é exterior, mas algo que nos completa, algo a que estamos ligados incontornavelmente. Um ethos mundial passa por preocupações como esta, passa por uma ética do cuidado, por uma responsabilidade compartilhada, pela conjugação de um ‘nós’ ao invés de um ‘eu’. Taí, ‘nós’ poderia ser mais uma palavra da moda, não é verdade?

Mas ainda não. Um projeto coletivo ainda está distante. Está distante porque exige um pacto, uma negociação persistente e permanente de prioridades. Porque exige engajamento, envolvimento, compreensão e uma vontade verdadeira de ação. Sem isso, pouco temos em mãos. Particularmente, acho que Boff tem razão. É preciso um projeto coletivo, mas sou mais cético de que consigamos isso nas próximas décadas. É um trabalho de gerações. Mas o que o jornalismo tem a ver com isso? Tem bastante a ver.

Tempos de ‘convergência midiática’

O jornalismo pode ajudar a espalhar ideias, reforçar conceitos e motivar a sociedade a escolher suas prioridades e lutar por elas. Penso que estamos no meio de mudanças sensíveis na esfera dos valores no jornalismo. O avanço tecnológico e as transformações a que o jornalismo está passando nesses últimos dez anos, tudo isso tem feito com que o jornalismo precise se reinventar, precise buscar novas motivações. O jornalismo já não é mais como era antigamente e é preciso restabelecer novos pactos com o público; é preciso redimensionar os valores que sustentam as nossas práticas; e redefinir o que chamamos de ‘jornalismo’.

Isto é, nosso ecossistema vive uma crise. De identidade, de conceitos, de papel e função social. Não podemos atravessar essa crise sem passar por questionamentos morais e éticos, por indagações incômodas sobre a nossa deontologia e sobre o que poderá dar manutenção e continuidade a isso a que demos o nome de ‘jornalismo’.

Nesses nossos dias, é preciso olhar para o entorno e mirar para dentro, refletir e repensar nossas práticas e valores. No meu modo de ver, esses enfrentamentos são indispensáveis, são inadiáveis. Principalmente agora, em tempos de ‘convergência midiática’… Olha só! Outras palavras da moda! Muito obrigado.

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Jornalista, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)