Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Jornalista acusa presidente por negócios ilícitos

Em entrevista no programa Pessoal e Transmissível, da TSF [ouça aqui], o jornalista angolano e activista na luta contra a corrupção Rafael Marques de Morais voltou a acusar o Presidente angolano José Eduardo dos Santos de apadrinhar negócios ilícitos.

Em declarações a Carlos Vaz Marques, Marques apontou ainda o dedo a Portugal, considerando que é um país subserviente em relação ao regime de Luanda.

Nesta entrevista, que passará na íntegra hoje [10/11] pelas 19h, na véspera do dia em se cumprem 35 anos sobre o 11 de Novembro de 1975, em que o MPLA, de Agostinho Neto, proclamou unilateralmente a independência de Angola, o destacado jornalista e pesquisador acusou José Eduardo dos Santos de fechar os olhos, apadrinhando desta forma negócios ilícitos, dizendo que ele ‘apregoa a transparência para depois, na prática, fazer o contrário’.

Nesta entrevista, o activista na luta contra a corrupção, que ainda há semanas foi perseguido pela polícia durante uma deslocação à região diamantífera das Lundas, voltou ao tema que é alvo do seu site ‘Maka’, que constitui uma iniciativa anti-corrupção.

Contactado pela TSF, o ministério português dos Negócios Estrangeiros optou por não comentar estas declarações, assim como a embaixada de Angola em Lisboa.

‘Partilhar experiências’

Entretanto, em Luanda, para a comemoração dos 35 anos da independência, o presidente da Comissão Parlamentar de Negócios Estrangeiros, o deputado do CDS/PP José Ribeiro e Castro, filho de um antigo governador-geral da Angola do tempo colonial, destacou a importância desta visita para ‘partilhar experiências’.

Ribeiro e Castro considerou que ‘o facto de existirem críticas é um sinal de que existe debate democrático no país’.

‘Por um lado, as pessoas queixam-se que não há democracia mas, por outro lado, a própria prática dessas críticas de uma forma aberta é sinal de que existe liberdade de expressão e do próprio debate democrático’, considerou o antigo líder do CDS/PP.

O último caso a bater à porta das investigações de Rafael Marques, e divulgado há cinco dias no site ‘Maka’, sumariza o ‘papel do investimento estrangeiro no aumento, consolidação e institucionalização dos esquemas de corrupção, em parceria com a liderança política do país’.

A 12 de Junho de 2009, o ministro de Estado e chefe da Casa Militar da Presidência da República, General Manuel Hélder Vieira Dias Júnior, ‘Kopelipa’, criou, como sócio maioritário (40 por cento), a empresa Auto-Star Angola. Ao director-adjunto do Gabinete de Reconstrução Nacional (GRN), Manuel José Cardoso do Amaral Van-Dúnem, e ao ‘fiel depositário dos negócios do general’, Manuel Domingos Inglês, cabe uma quota de 10 por cento cada. Por sua vez, os empresários Herculano de Morais e António de Lemos, têm respectivamente 30 por cento e 10 por cento das quotas da sociedade.

‘Kopelipa’ tem vindo a ser considerado um dos homens mais poderosos de Angola, estendendo a sua actividade inclusive a Portugal. Há dois anos, pagou um milhão de euros por duas áreas no Douro para produzir vinho e exportar, conforme o PÚBLICO já noticiou.

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Maka e a iniciativa anticorrupção

Paulo Sergio # reproduzido de Zwela Angola, 30/11/2009; título original ‘Iniciativa Anti-currupção de Rafael Marques’

Ponto Prévio: O activista de direitos humanos Rafael Marques voltou a ‘brincar’ esta terça-feira à sociedade angolana com mais um interessante trabalho sobre os desvios dos fundos públicos no nosso país. A posição deste activista cívico foi tornada público alguns dias depois do Presidente da República, José Eduardo dos Santos, ter manifestado o seu desagrado pelo trabalho do Tribunal de Contas.

Por outro lado, o PR reconheceu que no seu governo existem maus gestores de cargos públicos.

O que é a Maka?

Maka é um substantivo em kimbundu cujo significado, em português, se refere a um problema delicado, complexo ou grave.

A presente iniciativa é dedicada, de forma específica, à luta anti-corrupção em Angola. De um modo geral, a iniciativa aborda a dinâmica da economia política de Angola, com particular realce para a promiscuidade entre o dever público e os interesses privados por parte dos altos funcionários do Estado, a exclusão económica e social e a violação dos direitos humanos para fins comerciais.

Angola é dotada de imensuráveis riquezas naturais e tem registado, nos últimos quatro anos, um impressionante crescimento económico. Todavia, a gestão desses recursos e do património do Estado, em geral, tem gerado mais injustiças políticas, sociais e económicas do que benefícios para a maioria da população angolana. Esta é a maka.

O Governo e a corrupção: As comissões de 1990 e 2009

De forma consistente, como ilustração, o Presidente da República, José Eduardo dos Santos, tem denunciado o fenómeno da corrupção como o pior mal da sociedade angolana. Na realidade, quanto mais o presidente fala sobre o assunto, maior é o domínio e a transparência dos actos de corrupção no seu governo, cujos maiores beneficiários, conforme constatação oficial, são os próprios dirigentes.

Em 1990, o Presidente da República, através do Despacho Presidencial N° 22/90, estabeleceu uma comissão interministerial para o estudo multidisciplinar sobre o fenómeno da corrupção em Angola, especialmente na administração pública e sector empresarial. Esse estudo, dirigido pelo então ministro da Justiça, Lázaro Dias, determinou como as principais formas de corrupção no país:

‘O abuso de poder e outros excessos de autoridade em benefício próprio, traduzido em qualquer vantagem pessoal de ordem material (mormente monetária) ou espiritual;

O tráfico de influências pelos titulares dos poderes públicos para alcançar vantagens ou tutelar interesses pessoais e de sua família;

A fraudulenta gestão económico-financeira dos organismos do Estado, instituições públicas e empresas e bem assim das organizações de massas e sócio-profissionais, de que resulta a apropriação ilícita de bens (materiais e financeiros) do respectivo património;

A solicitação ou aceitação generalizada do suborno pelos funcionários responsáveis e empregados públicos como contrapartida, para a prática de um acto (lícitio ou ilícito) próprio das suas funções ou, mais grave ainda, fora da sua competência legal;

Os desvios e o roubo desenfreado dos bens do Estado (…).’

O referido estudo asseverou que, ‘a corrupção favorece a injustiça social e a desigualdade real dos cidadãos, atentando, pois, contra os seus sagrados direitos, liberdades e garantias fundamentais.’

Face à espiral de corrupção, de abuso de poder e malbaratamento do património do Estado, desde o alcance da paz, em 2002, o presidente criou a 5 de Agosto de 2009, através do Despacho N.° 20/09, outra comissão para a elaboração e sistematização da legislação com vista a garantir uma conduta exemplar por parte dos servidores públicos, quer a nível profissional e político quer privado.

Avaliação das comissões

Importa tecer dois comentários sobre estes dois despachos presidenciais e os resultados esperados.

Primeiro, o relatório de 1990 observou a existência suficiente de leis e instituições para o combate à corrupção, e sublinhou que a quase-inoperância das mesmas devia-se a três principais causas:

O deficiente recrutamento de pessoal através do qual ‘agentes com senso de responsabilidade são misturados com o lumpenato, quase sempre impune.’

A intangibilidade de certa classe da sociedade. Nesse ponto o relatório aludia aos dirigentes que comportam como intocáveis.

A esse propósito, o relatório destacou que quando os principais dirigentes abusam do seu poder, a coberto da impunidade, ‘não se pode esperar muito de níveis mais baixos, porque os honestos se sentem frustrados e os menos ou não honestos se sentem estimulados pelo comportamento dos de cima.’

Receio de represálias

De forma sábia, o relatório expôs uma fábula para descrever o receio prevalecente na sociedade sobre como atacar os principais promotores da corrupção ao mais alto nível da administração do Estado.

Segundo o fabulário em questão, um gato introduziu-se num armazém onde os ratos viviam tranquilamente. O gato realizou uma grande matança ao que obrigou os ratos sobreviventes ‘a convocar um conselho geral para debater a situação e encontrar soluções.’

‘Muitas soluções foram aventadas e rejeitadas, até que foi entusiasticamente ovacionada uma: ‘atar um guizo ao pescoço do gato e assim com a deslocação do gato, pondo o guizo a tocar, os ratos, prevenidos, tinham tempo para se pôr a salvo. Mas, um rato velho, com a experiência dada pela idade, levantou-se e perguntou: ‘E quem vai atar o guizo ao pescoço do gato?’ A reunião terminou num silêncio sepucral.’

O segundo comentário atém-se à integridade moral, profissional e política dos membros das duas comissões. A comissão de 1990 era liderada pelo então ministro da Justiça, Lázaro Dias, cuja integridade moral e política se colocava acima de suspeitas. Essa comissão elaborou o seu trabalho num contexto institucional de genuína preocupação com o modus operandi do governo, face à transição para a democracia multipartidária.

Por sua vez, a comissão de 2009 enferma de um vício grave. É coordenada pelo Chefe da Casa Civil do Presidente da República, Frederico Manuel dos Santos e Silva Cardoso. Esse alto funcionário presidencial é proprietário da empresa Valleysoft, em cuja detém 71.25% das acções, e co-administrador da mesma.

Em 2008 a Valleysoft foi responsável pelo fornecimento de boletins de voto, a operação logística, distribuição, recolha e aprovisionamento dos kits eleitorais, durante as eleições legislativas. Frederico Cardoso teve um papel duplo nas eleições. Por um lado, geriu, como empresário privado e em contravenção a várias disposições da Lei Eleitoral, o manuseamento arbitrário dos kits eleitorais, em particular dos boletins de voto.

Por outro, como chefe de gabinete do então vice-presidente do MPLA e coordenador da campanha eleitoral do MPLA, Pitra Neto, foi instrumental na direcção da estratégia eleitoral e na garantia da vitória absoluta do MPLA, com 82% dos votos. Frederico Cardoso também concorreu às eleições e foi eleito deputado. Suspendeu o seu mandato para servir como chefe da Casa Civil do Presidente da República.

A nomeação de Frederico Cardoso para a coordenação da referida comissão revela apenas o nível de falência moral do Chefe de Estado e de Governo, José Eduardo dos Santos. Não há informação pública que indique a demissão de Frederico Cardoso do cargo de administrador da Valleysoft e do Grupo Ducard, a empresa mãe que também inclui a transportadora aérea Air 26 e a a companhia de prestação de serviços às multinacionais petrolíferas Ducard Energy.

Em Junho de 2008, o Presidente José Eduardo dos Santos reiterou a necessidade de se separar ‘claramente a actividade empresarial privada da actividade política e administrativa dos dirigentes e chefes que ocupam cargos no Governo e na administração pública em geral.’ O presidente manifestou, assim, a urgência em se pôr cobro à prática dos dirigentes em usar os cargos públicos para servir os seus interesses privados. Todavia, a realidade demonstra que o presidente encoraja e dá cobertura a tais práticas e delas retira dividendos políticos, sociais e materiais para a manutenção do seu poder pessoal.

Por essa razão, é fundamental que a sociedade se engaje de forma pro-activa na fiscalização dos actos de governo de forma a garantir que este sirva o interesse público e não de um grupo de invidivíduos liderados pelo Presidente da República.

A Maka é uma resposta ao silêncio com que a sociedade, receosa ou cúmplice, reage ao saque e à destruição humana resultantes da acção dos dirigentes actuais e do comportamento venal da administração pública em geral.

A Maka se predispõe a ‘atar o guizo ao pescoço do gato.’

Por quê?

Porque nenhum angolano se deve sentir envergonhado ou temeroso de realizar uma boa acção ou defender uma causa justa para o bem comum da sociedade angolana.

Quem é Rafael Marques

Rafael Marques é um jornalista e pesquisador angolano, com especial interesse sobre a economia política de Angola e os direitos humanos. Em 2000, recebeu o distinto Percy Qoboza Award [prémio percy qoboza para a coragem exemplar] da Associação Nacional dos Jornalistas Negros dos Estados Unidos da América. Em 2006 venceu o Civil Courage Prize [prémio de coragem civil] da Train Foundation (EUA) pelas suas actividades em prol dos direitos humanos.

Tem vários relatórios publicados sobre a violação dos direitos humanos no sector diamantífero em Angola, incluindo A Colheita da Fome nas Áreas Diamantíferas (2008), Operação Kissonde: Os Diamantes da Miséria e da Humilhação (2006), e Lundas: As Pedras da Morte (2005), em co-autoria com Rui F Campos.

Rafael é Mestre em Estudos Africanos pela Universidade de Oxford. É formado em antropologia e jornalismo na Goldsmith, Universidade de Londres.