Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Jornalistas autofágicos

De novo, vivemos uma grande oportunidade para discutir a categoria do jornalismo, por ocasião da polêmica em torno da proposta de criação de Conselho Federal da profissão. Neste texto, não quero tomar partido pelo sim nem pelo não, mas simplesmente formular algumas questões sobre a própria categoria.

Uma das que se impõem é: se jornalistas brasileiros não conseguem discutir racionalmente sua própria categoria, seus direitos e limites deontológicos, quem poderá? O público, que não conhece os meandros da profissão? Os políticos, cada um a seu modo, querendo tirar proveito de qualquer fato novo a dois meses das eleições? A Associação dos Magistrados do Brasil, que aproveita qualquer ocasião para tentar uma revanche contra o teto previsto na Reforma da Previdência? Os patrões dos jornalistas, a quem, geralmente, não agrada a união da categoria, e que agem por interesses puramente empresariais, mais interessados na liberdade sem limites de empresa do que na liberdade responsável de imprensa?

Proposta do PMDB

Há dois anos, a proposta de criação de um conselho na Bélgica francófona gerou debates salutares. Mas aqui, a proposta acabou em bate-boca político-partidário.

Assim que os jornais começaram a veicular a polêmica, recorri à opinião de Alberto Dines para me posicionar e saí frustrado. Até este, uma das maiores consciências do jornalismo hoje, caiu na armadilha da argumentação ad hominem, não esclarecedora. Saiu da posição de media critic para a solução rápida da acusação: ‘discricionários’ são os atos acima da lei, não aqueles enviados a votação e discussão no Congresso Nacional, além do que não é possível que todos os sindicalizados deste país sejam pelegos, embora com certeza muitos o sejam. A proposta de uma ‘OAB’ do jornalismo é frutífera, mas os xingamentos são dispensáveis.

O projeto para o conselho não é novo. Trata-se de uma reivindicação, apropriada ou não, de mais de uma década, não de todos os jornalistas, por certo, mas de dezenas de sindicatos – o 31º Congresso, realizado em João Pessoa, reafirmou esta posição – e da Fenaj.

Por certo há outras associações que merecem respeito e que são contrárias, como a ABI – que, se fosse mais ativa, poderia desempenhar o próprio papel de instância superior do jornalismo – e a ANJ. Mas ninguém pode dizer que a medida não foi discutida.

Quando foi apresentada no Congresso Nacional, em 2002, o projeto teve autoria, um após o outro, de dois deputados do PMDB, partido que era aliado ao governo FHC.

A corrosão vem de dentro

Portanto não é uma iniciativa do atual governo, mas uma chancela do atual governo a uma reivindicação antiga de parte da categoria. Na verdade, quem hoje se apressa a bater boca, e não a discutir com razoabilidade, esquece ou não sabe que o anteprojeto ficou disponível no sítio do sindicato dos jornalistas do Mato Grosso, durante dois anos. E mesmo assim o texto parece ser surpresa para muitos.

Jornalistas não se discutem em foros legais. Sindicatos não contam com apoios, ou porque vivem em eterna luta política interna, ou porque simplesmente não contam com a disposição dos demais jornalistas, que não acreditam em união diante – e não, necessariamente, contra – o patronato. Federações e associações brigam por prestígio.

Jornalistas estão perdendo a chance de ser uma categoria. Hoje apresentadores de auditório, animadoras de programas infantis, artistas, teatrólogos, padres, juízes, todos entrevistam, fazem matérias. Que credibilidade é essa que querem alcançar?

Não precisa mais ser jornalista para ser jornalista. Qualquer um, com qualquer intenção boa ou má pode sê-lo. Aliás, esta é a proposta de empresas como a Folha de S. Paulo, que, em matéria do dia 10 de agosto, ouvindo Bill Kovach, ‘um dos maiores teóricos do jornalismo americano’, na verdade um reconhecido e prestigiado jornalista, mas não um teórico, busca nele legitimar essa tese.

O jornalista hoje já não possa talvez ser chamado de jornalista: ele é um profissional da mídia, do entretenimento, da publicidade e, às vezes, da informação. ‘O jornalista’ está acabando.

Não é de se admirar que juízes e juízas, simpáticos a empresas contrárias ao diploma, se sintam no direito de definir o que é o jornalismo, independentemente e sem consultar os pobres dos jornalistas. Porque a corrosão vem de dentro, é autofágica.

À mercê de interesses

Não sei que até ponto há liberdade de imprensa ou liberdade de empresa: pois que, recentemente, jornalistas que ousaram dar sua opinião, foram demitidos sumariamente. Isto poderia ser discutido.

Não sei até que ponto é ético motivar a autodemissão de jornalistas para que se tornem pessoas jurídicas – cujas relações serão de negociação de lucros em torno da informação. Isto poderia ser discutido.

Não sei até que ponto não estão os jornalistas perdendo a guerra da informação ética para amadores, diante da multiplicação dos meios de informação, principalmente na Grande Rede. Isto poderia ser discutido.

Não sei até que ponto é justo que jornalistas morram em serviço, porque emissoras não o colocam, em caso de ameaças de traficantes, em quarentena remunerada. Isto poderia ser discutido.

Não sei até que ponto a discussão do diploma está sendo bem amparada. As propostas de melhoria das faculdades de Jornalismo e até a criação de um instrumento de avaliação e reconhecimento de aptidão nos moldes do que faz hoje a OAB não estão sendo discutidas.

Quando discutidas, essas questões são esparsas, não geram documentos, não geram – o que não precisa ser uniformidade de pensamento – auto-percepções da categoria. Jornalistas não se discutem. Cobrem mal quando o assunto jornalismo está em pauta. Preferem se esbofetear nas esquinas midiáticas, ficando à mercê de interesses que não são os propriamente jornalísticos.

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Jornalista, professor e pesquisador, mestre em Comunicação Social (UFF) e doutorando em Lingüística pela Unicamp no tema do discurso jornalístico