Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Jornalistas-torcedores ou torcedores jornalistas?

Tenho 33 anos e vivo em um estado em que futebol é coisa do passado, do tempo em que o Operário Futebol Clube conseguiu ser o terceiro na ‘taça de ouro’, quando eu não havia completado ainda os 7 anos. Não acompanhei, portanto. Mas sou brasileira e por isso não desisto do futebol. Em Copa do Mundo, sou do tipo que, podendo, assisto a todas as partidas, leio as análises e, como jornalista, tento ainda acompanhar, com a facilidade da internet, o que dizem os nossos jornais e os jornais lá de fora.

Na Argentina, na Itália, na França, em Portugal. O tom ufanista se repetiu nesta Copa. Cobertura futebolística, decididamente, é uma categoria sui generis de jornalismo em âmbito global. Nela, um pouco de tudo que se aprende na faculdade, ou na escola da vida das redações, vai para o fundo das redes, é ignorado. Em vez de matéria, têm-se libelos de jornalistas-torcedores, ou vive-versa.

Pois bem, no Brasil, a derrota acachapante para os mesmos franceses que ‘nos’ haviam humilhado em 98 danou tudo de vez. O tom ufanista e volúvel da cobertura, que ao mesmo tempo batia e agradava aos canarinhos milionários da seleção, descambou para a falta de respeito. Uma perigosa falta de respeito em forma de material pretensamente jornalístico, mas carregado de opinião e cobrança tal qual um chefe irritado com um funcionário incompetente.

Tias no velório

O exemplo saltou aos olhos ao ler, na terça-feira (4 de julho), reportagem da Folha de S.Paulo sobre o domingo pós-derrota de Ronaldinho Gaúcho. O jornal mandou um repórter à Espanha, onde vive e trabalha o jogador alçado à condição de deus do esporte e do qual se esperava tirar o título dos adversários na Alemanha com a mesma facilidade das peraltices feitas com a bola. Ronaldinho não decolou. O Brasil perdeu, o país chorou e, na segunda-feira, voltou à rotina, sem Fátima Bernardes no Jornal Nacional, nem Galvão Bueno tagarelando sobre a soberania do futebol brasileiro, direto da Alemanha.

Ronaldinho, como mostrou a matéria, ao voltar para Barcelona reuniu amigos, tocou o inseparável pagode e depois foi para uma casa noturna de onde, conforme o texto, saiu no dia seguinte às 5h, acompanhado de Adriano, outro jogador bastante contestado.

Se fosse um relato objetivo do que fez na volta para casa o atleta, após 40 dias de concentração e de um insucesso, poderia ser cabível. Mas não, o texto mais parecia mais a conversa entre tias fofoqueiras durante um velório em que a viúva adota a discrição, e acaba sendo criticada por não chorar o tanto que esperavam. Transpareceu a ironia pelo fato de o craque não ter vestido o luto e se guardado em casa, após a eliminação do Brasil. É feio não ficar solenemente triste?

Viés irresponsável

Ronaldinho, que é pago pela iniciativa privada, teve a vida pessoal bisbilhotada tal qual um criminoso do colarinho branco. A matéria da Folha é só um recorte em um painel de exageros, movido a ressaca do título perdido, que todos temos, e a frustração de investimentos grandiosos das empresas de comunicação que apostaram na chegada do Brasil até o fim do evento esportivo. As mesas-redondas na televisão, algumas bem irritantes, beiraram a calúnia em relação ao técnico Carlos Alberto Parreira, um profissional, assim como Ronaldinho, pago pela iniciativa privada. Ou já estatizaram a CBF?

O futebol é sim um assunto de interesse público no Brasil. Seus comandantes e atores devem mesmo ser alvo de cobertura jornalística intensa, dada a responsabilidade que carregam num país que pára para vê-los atuar e onde a seleção campeã cinco vezes é um dos poucos combustíveis para a auto-estima nacional.

Mas da forma como os torcedores-jornalistas tratam seus protagonistas, parece mais que isso. É uma cobertura mais ácida do que a que normalmente é dada a corruptos gastadores de dinheiro público. E é um viés irresponsável. Apelar à caça às bruxas e ao revanchismo, em tom e espaço destinado à matéria jornalística, só incita ações como a dos torcedores que incendiaram uma estátua de Ronaldinho Gaúcho Em Santa Catarina. É só um esporte, não uma guerra.

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Jornalista em Campo Grande (MS)