Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Leitura labial, a ética e os negócios

Perdemos a Copa, mas ganhamos em besteirol. E a novidade pegou. Tanto, que de nada valeu a retratação lida por Fátima Bernardes [Jornal Nacional, 26/06/2006], em decorrência das queixas do técnico Carlos Alberto Parreira. No domingo (2/7), o Fantástico voltou com as leituras labiais mesmo com o técnico Parreira, nas cenas, tampando a boca com as mãos, quando desabafava com Zagallo, durante o jogo contra a França.

Ou seja: dentro da Globo saiu vitoriosa a corrente que foi contra a retratação veiculada no JN (algo raríssimo na mídia brasileira). Afinal, no reino das pegadinhas, a Globo saiu na frente nessa modalidade e nada será como antes, pois, a qualquer hora, em qualquer lugar, alguém poderá estar sendo flagrado em sua leitura labial. Morte à ética, longa vida aos negócios, haja vista o sucesso da pegadinha jornalística.

Diz o Art. XIX da Declaração Universal dos Direitos Humanos que ‘todo ser humano tem o direito de informar e ser informado, em qualquer lugar, por quaisquer meios, independente de censura’. O lado perverso desse direito jamais efetivado, diz, agora: ‘Todo ser humano estará, em qualquer lugar e independente da sua vontade, sujeito a intromissões invasivas por parte da mídia’.

É o Big Brother, alastrando-se para além da mansão montada para o espetáculo de exibicionismo absoluto e no valor de 1 milhão de reais. É a absolutização da profecia do canadense Marshall McLuhan de que o ‘meio é a mensagem’ (ou a massagem), ou ainda de que os meios são extensões do homem – nesse caso, Parreira fala ao microfone da Globo, mesmo sem querer, ou sem o saber.

Vale igualmente a constatação de outro canadense, Shut Jally, de que as pessoas, mesmo sem o saber, com freqüência encontram-se (na condição de estatística de audiência) cedendo mais-valia ao capital midiático. Mesmo quando se acham em plena autonomia e gozo do seu tempo livre, estão funcionando economicamente como ‘número’ de sondagem de opinião.

Situação vexatória

Fatos como esse, da tradução do cinema mudo da privacidade, demonstram o quanto está caduco o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, que data de duas décadas – isto é, uma espécie de paleolítico tecnológico, quando não havia internet e toda uma série de facilidades de manipulação digital. À época, um computador tinha de ficar 24 horas processando uma única imagem, sem movimento.

A nova categoria de pegadinha com ares de ‘jornalismo em tempo real’, mostra igualmente o quanto faz falta o também velho Código de Ética da Radiodifusão Brasileira, criado pela Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), mas, há anos, abandonado pela entidade. Em seu lugar não apareceu nada, só a campanha da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, ‘Quem financia a baixaria é contra a cidadania’, que atua apenas como poder de pressão, não de regulamentação.

Prevalece, portanto, o poder de quem pode de fato (como é o caso da Globo), que faz suas próprias regras – como, aliás, o vem fazendo com relação ao uso banal da câmera oculta. Firma-se, privadamente, uma jurisprudência pública para os costumes.

É comum, nos meios estudantis e profissionais, já se entender que é um direito lícito ‘grampear’ e difundir conteúdos de grampos. A Constituição Federal proíbe, no entanto, a quebra de sigilos básicos, a não ser em circunstâncias de proteção à vida e à pessoa humana.

Gravar e exibir a privacidade de alguém é, portanto, proibido pela Constituição Federal e pelas leis que a regulamentam. Entretanto, o assunto é muito polêmico, a começar quando as cenas são gravadas em locais públicos pois, em público, prevalece o senso comum mais imediato de que nada mais passível de publicidade do que a vida no espaço comum do cotidiano. Todavia, mesmo estando em via pública, uma pessoa guarda ainda direito à privacidade, pois a ninguém é permitido, por exemplo, em função de uma ventania ou de qualquer outro tipo de ‘descuido’, exibir alguém em situação vexatória, sob pena de correr o risco de ser processado por ofensa ao decoro, ou seja, injúria. Está no Código Penal e está na ultrapassada Lei de Imprensa (mas, ainda em vigor).

Implícito e explícito

Na Inglaterra, a Comissão de Queixas Contra a Imprensa (Press Comission Complaints) teve de regulamentar a tomada de imagens em locais públicos, de forma a estabelecer algum limite, de aproximação e de invasão, porque não fosse dessa forma jamais um príncipe ou uma princesa poderiam ir, por exemplo, a uma praia sem ter em seu redor uma profusão de lentes, tripés e toda uma maçaroca de incômodos.

Quem sabe a PCC inglesa tenha, agora, face à nova forma de invasão, também de descobrir algum meio de frear os ímpetos dos paparazzi de movimentos labiais, já que essa moda vai pegar – melhor, já pegou, pelo menos no Brasil, onde a Globo é, literalmente, senhora do destino. Tem ela essa licença teleológica (referente ao destino dos personagens) não apenas em relação ao mundo da ficção, mas, agora, também a licença ética de estar de olho em tudo que sai da boca das personalidades. Não por mero prazer voyeurista, mas porque, certamente, encontrou mais um filão na concretude dos negócios: obter audiência com o movimento dos lábios.

E o que residia tão-somente nos contextos do implícito passa a habitar a visibilidade do explícito; igualmente uma novidade para os lingüistas, para os semioticistas, para os analistas de discurso e todos aqueles que, a partir de agora, estarão debruçados em entender essa nova forma de gravação imposta.

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Jornalista, coordenador do SOS-Imprensa, projeto de extensão da UnB que atua em casos de erros, abusos e vítimas da mídia e que está vinculado à Rede Nacional de Observatórios da Imprensa (Renoi)