Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Leitura labial fere a privacidade, sim

Quando se coloca três profissionais de leitura labial para tentar desvendar as palavras, muitas vezes proferidas no calor da emoção, do técnico Carlos Alberto Parreira em meio a uma disputa de Copa do Mundo em que apresentava alguns sinais de desgaste mediante a atuação de seu mais visado e propagandeado jogador, o Ronaldo Fenômeno, isso se configura como uma dissecação pública de sua intimidade, porque no momento em que rimos ou nos surpreendemos com sua ansiedade, apreensão, dúvida e desabafo, emoções que foram reveladas à milhões de pessoas e que descaracterizaram por alguns minutos o eventual comportamento polido de Parreira mediante os seus sinceros palavrões, não estamos mais assistindo a um tele-jornalismo esportivo e sim a um show de horrores que quase beira ao mundo-cão sensacionalista reinante na TV brasileira.

Que tipo de repercussão uma pauta como essa poderia resultar? Apenas em polêmica. Não acrescentou em nada à cobertura jornalística da Vênus Platinada. Nem se quer pode se chamar de jornalismo o que a Rede Globo fez. O treinador já havia reclamado a amigos que a atitude teria, em sua opinião, violado sua privacidade. Por outro lado, pessoas da emissora afirmaram que não houve abuso, já que o campo de futebol, onde foram feitas as imagens, é um espaço público.

O vômito de Beckham

Vamos imaginar uma situação bem hipotética. Se uma celebridade passeia por uma praça eu tenho direito, como jornalista, de conseguir um aparelho ultra-potente de raios X e descobrir em primeira mão que ela padece de um câncer apenas para me enaltecer de orgulhos perante o chefe e obter a dádiva do furo? E se a doença ainda é um segredo para a própria família e amigos? E se a condição de doente terminal ainda é um estágio muito doloroso não completamente absorvido pela pessoa? No caso do atacante inglês David Beckham, não precisou nem de aparelho de raios X, nem de doença grave. As câmeras do mundo inteiro flagraram (em câmera lenta!) o seu lindo e suculento vômito de celebridade ao passar mal durante o jogo contra o Equador. Melhor meio termo do que isso não existe.

Está certo que, sendo um dos times de futebol mais paparicados pelas agências de publicidade e multinacionais de artigos esportivos, mais procurados pela mídia esportiva nacional e do planeta, mais exigido em termos de desempenho por 180 milhões de técnicos de futebol brasileiros, talvez faça a imprensa esquecer que, assim como nos reservamos no direito de defecar sem testemunhas, os famosos (e os não) têm o direito que suas emoções mais viscerais fiquem imaculadas no terreno da privacidade.

De fato, a Xuxa por exemplo quando desligados os holofotes e ao grito de ‘corta’ nas gravações de seus programas deve soltar um vernáculo de licenciosidades quando martela o dedo sem querer ao pregar um quadro na parede. O Rei Pelé deve soltar os mais cabeludos impropérios quando percebe que um gol feito resvalou para a trave. Mas desde quando isso deveria servir de pauta para um programa de tamanha relevância jornalística como o Fantástico? Foi uma ousadia intoxicada pela estupidez. Ou alguém da direção do programa achou que o técnico Parreira iria, durante 90 minutos, apenas discutir com Zagallo o desenho tático da seleção ou as estratégias de substituição em campo? Parreira é técnico de futebol e naquele momento era um ser humano sob pressão. Obviamente que seriam inevitáveis tais expressões.

Não é a primeira vez que Parreira passa por essa experiência. Na Copa do Mundo de 1994, o extinto jornal paulista Notícias Populares publicou reportagem baseada na leitura labial de uma discussão entre Parreira e o atacante Müller depois da vitória por 1 a 0 sobre os anfitriões Estados Unidos, nas oitavas-de-final.

Crise na Globo

Segundo o jornalista Guilherme Fiúza do site No Mínimo, a irritação de Parreira com a matéria do Fantástico fazendo a leitura labial de suas palavras à beira do campo deflagrou uma crise na Globo na Alemanha: O editor do Fantástico, Luiz Nascimento, se indignou com o telefonema dado a Parreira pelo diretor de Esportes da emissora, Luiz Fernando Lima. O técnico recebeu de Lima um pedido de desculpas, em nome da Globo. Nascimento acha um absurdo a interpretação de que houve invasão de privacidade no quadro da leitura labial. Pediu demissão imediatamente. O pedido foi recusado, mas Nascimento deve deixar a Alemanha.

O mais impressionante é que Fiúza se desapropria de qualquer padrão de imparcialidade e se permite agora julgar como se fosse o meritíssimo de um tribunal de causas morais. ‘Como este não é, nem pretende ser, um espaço neutro, vai aqui o julgamento: é mesmo um completo absurdo ver invasão de privacidade neste episódio. Parreira e suas celebridades são hoje as figuras mais mimadas do planeta’ .

Para comentários sobre essas linhas, releiam os parágrafos 3 e 4 deste artigo.

Reality show

A invasão de privacidade talvez tenha sido um dos pontos mais polêmicos de discussão a respeito de como a tecnologia estava interferindo de forma cada vez mais brutal em nosso comportamento e cotidiano. Na opinião pública e nos meios acadêmicos, a epidemia de câmeras de TV em ruas e praças, circuitos internos em elevadores, pátios de prédios residenciais e comerciais, reality shows, blogs, fotologs etc, se transformou em susto aquilo que deveria ser mecanismo para o controle da ordem ou simplesmente uma forma menos convencional e mais inconseqüente de entretenimento ou auto-afirmação. A overdose de exposição, consentida ou não, foi ganhando ares de normalidade que ironicamente se transformou em convite para a reflexão.

As grandes investigações policiais e jornalísticas que desbaratam redes de corrupção, entre outras contravenções penais graves, se utilizam de métodos em que a perda de privacidade é a principal ferramenta para se constituir um flagrante, vide as gravações de áudio e câmeras escondidas. Mas ela é legitimada quando o fator surpresa é empregado para impedir a continuidade de um crime que possa lesar a sociedade e não para bisbilhotar a vida alheia e fazer chacotas com a intimidade de estranhos.

Só para lembrar, a leitura labial foi utilizada como técnica de espionagem por quase todos os principais serviços de inteligência militar e civil do planeta, da CIA à KGB, da Scotland Yard ao Mossad. Durante muitos anos, nos governos ditatoriais ela também foi utilizada como prova incriminatória acima de qualquer suspeita. No regime militar, os agentes do DOI-Codi recebiam cursos para detectar supostos agentes subversivos através desta técnica.’