Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

‘Erro’ regiamente recompensado

Aluizio Maranhão, editor de Opinião do O Globo, relatou no programa de TV do Observatório da Imprensa de terça-feira (10/9) o longo processo interno do grupo que levou o jornal a publicar material sobre o apoio – político, como sublinhou Milton Coelho da Graça, outro dos convidados de Alberto Dines – ao golpe de 1964 e à ditadura.

Maranhão disse que o jornal não foi movido pela rebelião de junho, mas por um processo deflagrado em 1998 em reunião de dirigentes das empresas Globo. Em síntese, tratava-se de passar de um sistema inteiramente centralizado na pessoa de Roberto Marinho (1904-2003) para um compartilhamento do mando pelos acionistas, entre eles seus três filhos, Roberto Irineu, João Roberto e José Roberto, e de maior delegação de poder aos executivos das empresas.

O grupo Globo de mídia é um transatlântico monumental que não se presta a manobras bruscas. Tudo se faz lenta e cuidadosamente. Seguindo-se com a metáfora, o navio não pode abalroar algum escolho, não pode encalhar – não pode, sobretudo, perder o rumo.

Abertura lenta e gradual

Em 2004 foi publicado o livro Jornal Nacional – A Notícia faz História, organizado pelo projeto Memória Globo, comemorativo de 35 anos do noticiário mais importante do Brasil. Nele, pela primeira vez, o grupo abriu diálogo sobre alguns poucos episódios controversos de sua trajetória, como o Caso Proconsult, de 1982 (comunicação enviesada dos resultados da eleição em que Leonel Brizola conquistou o governo do Rio de Janeiro), a cobertura tardia e relutante do movimento das Diretas-Já (1984) e a edição da matéria sobre o debate Lula-Collor que ajudou o segundo a vencer no segundo turno da eleição presidencial de 1989.

Em 2011, mais um passo foi dado com a publicação dos “Princípios Editoriais”. No final de 2012, contou Maranhão, estava pronto para entrar na rede o acervo digital do jornal e se decidiu preparar uma apresentação. Como se escreveu no jornal:

“Desde as manifestações de junho, um coro voltou às ruas: ‘A verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura’. De fato, trata-se de uma verdade, e, também de fato, de uma verdade dura. Já há muitos anos, em discussões internas, as Organizações Globo reconhecem que, à luz da História, esse apoio foi um erro. Há alguns meses, quando o Memória estava sendo estruturado, decidiu-se que ele seria uma excelente oportunidade para tornar pública essa avaliação interna. E um texto com o reconhecimento desse erro foi escrito para ser publicado quando o site ficasse pronto”.

Começou mal

Carlos Eduardo Lins da Silva, o terceiro convidado do programa, mostrou-se interessado em saber que consequências esse gesto terá para a prática corrente e futura do jornal (e das emissoras de televisão e de rádio).

Esse é o ponto. Infelizmente, não se pode avaliar com otimismo a maneira como a jornada se iniciou.

Examine-se, aqui, mais uma passagem do texto (outros trechos foram analisados em tópicos anteriores, relacionados abaixo):

“Durante a ditadura de 1964, [Roberto Marinho] sempre se posicionou com firmeza contra a perseguição a jornalistas de esquerda: como é notório, fez questão de abrigar muitos deles na redação do Globo. São muitos e conhecidos os depoimentos que dão conta de que ele fazia questão de acompanhar funcionários de O Globo chamados a depor: acompanhava-os pessoalmente para evitar que desaparecessem. Instado algumas vezes a dar a lista dos ‘comunistas’ que trabalhavam no jornal, sempre se negou, de maneira desafiadora”.

Se toda a carga de opressão, violência, tortura e assassinatos da ditadura se tivesse limitado a esmagar “jornalistas de esquerda”, em alguma medida o parágrafo acima poderia se sustentar. Mas os malefícios da ditadura, como é evidente, vão muitíssimo além disso. “Jornalistas de esquerda” constituíram e constituem uma parcela infinitesimal do povo. Só a falta de argumentos melhores pode ter levado os autores do texto a invocar esse.

O Globo participou da preparação e da execução do golpe. O jornal, as emissoras de rádio e a televisão apoiaram com entusiasmo ímpar a política dos militares, o que lhes valeu lauta recompensa, como descreve Elio Gaspari em A Ditadura Escancarada, 1a ed., 2002, pág. 217:

“Ao ocaso do Correio [da Manhã] e da Última Hora correspondia a alvorada do que viria a ser o maior império de comunicações da história do Brasil: o Sistema Globo de Comunicações. Em 1969, seu proprietário, Roberto Marinho, ainda não era um dos homens mais ricos do mundo, com uma fortuna avaliada, nos anos 90, em mais de 1 bilhão de dólares. Pelo contrário, a TV Globo estava amarrada a uma dívida de 3,75 milhões de dólares com o grupo americano Time-Life. (…) Com maneiras gentis e um senso de lealdade fora do comum na política brasileira, era um adversário feroz pela astúcia, um aliado insuperável pelo sentido de oportunidade. A ditadura transformava-se em milagre e a televisão em cores, em seu ícone. Em 1969 a Rede Globo era formada por três emissoras (Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte). Em 1973 seriam onze”.

Desse ponto de vista, quem se atreve a dizer que o apoio à ditadura foi um “erro”?

 

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