Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Michael Moore, crítico de mídia

Michael Moore é talvez uma das grandes vozes dissonantes na América engessada pela mentalidade do politicamente correto de Bush e séqüito. Não reúne o apelo verbal e o brilho intelectual de críticos famosos como Susan Sontag ou Noam Chomsky mas, com o seu documentário Tiros em Columbine, Moore, um gordão desengonçado de visual escrachado, provou que ainda se pode fazer muito barulho com uma câmera na mão e uma firme determinação crítica na cabeça. O documentário atira numa obsessão americana, a paixão por armas de fogo, e acerta em nichos de obscurantismo presentes no coração de uma nação que é tida como baluarte da democracia no Ocidente.

Difícil dizer no documentário o que atrai mais. O ideário aterrorizante, mostrado às escâncaras, da milícia de Michigan? A revelação de um dos personagens de que jamais ouvira falar em Ghandi? Os registros do circuito interno de TV do massacre da escola em Columbine? O drama da verdadeira face da pobreza americana revelada nos pequenos personagens? O racismo americano? O fascismo de uma celebridade hollywoodiana como Charlton Heston?

Isso tudo somado e mais um pouco. Embora acusado de manipular algumas passagens do documentário, Moore, no entanto, tem méritos de sobra – e não se credite a esse êxito o fato de ter levado o Oscar de 2002 de melhor documentário. A estatueta famosa, como se sabe, é suspeitíssima quando está em questão o justamente mérito da obra. No filme de Moore sobressai a crítica aberta àquilo que Noam Chomsky chamou de ‘consenso fabricado’ pela mídia. Haverá nação mais moldada pelos interesses da mídia do que a americana? Paradoxalmente, a mesma nação que reprovou a guerra do Vietnã, graças ao trabalho da mídia, apoiou a invasão do Iraque também por causa da postura de genuflexão da imprensa perante os interesses dos ideólogos de Washington. Trata-se do manufactured consent de Chomsky em ação, na sua forma mais pura, expondo as fraquezas de uma opinião pública vulnerável.

A sombra dos porta-vozes

A câmera errante de Moore mostra como a mídia aposta no sensacional e no espetacular, como ela fomenta a cultura do medo em nome dos sacrossantos índices de audiência e do bom êxito da publicidade, apostando em estigmas, preconceito e maniqueísmo. Dois momentos do filme são sintomáticos: a presença do psicólogo Barry Glassner, autor do livro Cultura do medo (editado no Brasil em 2003 pela Editora Francis), desmistificando a periculosidade de algumas zonas de Los Angeles e apontando para um risco maior, o da poluição, desprezado pela mídia. Noutro momento, ao obter êxito com a rede K-Mart, para que interrompa a venda de munição em suas lojas, Moore consegue atrair a atenção da imprensa. Mas não é essa notícia que abre a edição noturna de um telejornal, naquele dia. É um episódio menor envolvendo a presença de cobras em Detroit que acaba ganhando a manchete principal.

A crítica à mídia, contudo, aparece de forma contundente não apenas no documentário em si, mas na entrevista que o diretor concede numa coletiva à imprensa. Esse material está presente como bônus na versão em DVD do documentário. Indagado por uma repórter se não sente medo ao realizar suas entrevistas desafiadoras no filme, Moore solta o verbo:

Eu odeio, odeio muito isso. Me dá nós no estômago. A coisa mais horrível no filme é o fato de eu estar nele. Quero dizer, o que há de errado com o jornalismo nos EUA? Eu não deveria estar fazendo perguntas a estes líderes. Há pessoas formadas em jornalismo pagas para fazer isso, pessoas que são mais espertas do que eu. Se tivesse vindo de Marte, diria: ‘Esse é o cara? O cara de boné sem formação?’ Tem algo errado nisso. Isso deve ser uma vergonha para a mídia. Ver o filme e pensar: ‘Por que ele está fazendo isso?’ Sou criticado pela imprensa americana por perturbar a vida dos relações-públicas das indústrias. Por que pego no pé deles? E eu penso: ‘Por que não estão fazendo seu trabalho?’ Estes RPs passam o dia respondendo a perguntas banais. ‘Como estão as vendas? Como está o faturamento?’ É isso o que acontece. Nunca perguntam a eles o que é importante. Isso porque a maioria destes jornalistas será RP no futuro, quando perceberem que podem ganhar cinco vezes mais sendo relações-públicas do que sendo jornalistas. E isso é triste, não?

Sim, isso é muito triste. E seria menos triste se a crítica de Michael Moore pudesse ser aplicada somente à realidade americana. Não é o caso. A crise da mídia no Brasil tem exatamente corroborado essa triste situação: jornalistas que são mais apresentadores de TV e menos repórteres, que foram defender o pão de cada dia nas assessorias de imprensa, que abraçaram funções anódinas nas universidades, ou que simplesmente ganharam o olho da rua. Enquanto isso, o jornalismo de fato, aquele que tem como missão fiscalizar e denunciar o poder e suas mazelas, vive à sombra dos porta-vozes desse mesmo poder e de seus interesses.

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Estudante de Jornalismo da Universidade Tiradentes (SE) e editor do Balaio de Notícias