Tuesday, 14 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1287

Mídia reforça invisibilidade dos setores marginalizados

Todo discurso é ideológico. E o caso Isabella, a partir da sua repercussão nos meios de comunicação de massa brasileiros, corrobora esta afirmativa. É como se a violência no país se restringisse aos casos como o supracitado – que, de fato, são chocantes, hediondos. No entanto, mesmo considerando o tipo de atrocidade da qual foi vítima a menina Isabella Nardoni, vamos encontrar exemplos similares cotidianos, sobretudo ocorridos entre populações marginalizadas. Há uma diferença, contudo: a mídia de massa não se empenha tanto em acompanhar, como faz agora, e como fez quando da igual tragédia sofrida pelo garoto carioca João Hélio. E nos perguntamos por que isso acontece.

Violência não é uma prerrogativa da nossa realidade contemporânea. O Brasil, desde que assim o conhecemos, é marcado por atos violentos, hediondos – basta lembrar, sobretudo, o sistema escravista aqui montado pelos invasores europeus. A partir de então, os indivíduos forçosamente submetidos à condição de escravos, passaram a ser vítimas de atos cotidianos de violência, inclusive após a dita abolição ocorrida no final do século 19. Todavia, os discursos historicamente construídos, carregados de ideologia, fazem com que a realidade seja vista de outra maneira, de acordo com os interesses dos setores hegemônicos, distorcendo a realidade, dando-lhe uma ‘roupagem’ a partir da qual se dificulte a tomada de consciência de si por parte daqueles que assimilam tais ideologias, comprometendo o sentimento de identidade individual.

O ‘clã’ hegemônico

O caso da garota Nardoni vem demonstrar exatamente isso. Ou seja, ainda que saibamos que a sociedade brasileira é permeada cotidianamente por atos violentos, sobretudo vitimando os segmentos sociais menos privilegiados do ponto de vista sócio-econômico, a maneira como os discursos – principalmente os midiáticos – são construídos ‘faz-nos’ direcionar nossas atenções e comoções para um fato isolado, em detrimento de um conjunto de fatos correntes na realidade do país e que compromete a estabilidade social.

As cidades brasileiras, circundadas por favelas e bairros periféricos, majoritariamente habitados por cidadãos de bem – mulheres, homens e crianças trabalhadores –, estão imersas em um cotidiano de violência: seja aquela praticada pelo Estado, que geralmente ‘vira as costas’ e não assume o seu papel de garantir educação, saneamento básico, saúde, emprego e renda, entre outros; ou aquelas que em geral também são conseqüência dessa ausência do aparelho estatal, mas normalmente não são vistas desta maneira pela maioria – homicídios, tentativas de homicídio, espancamentos de mulheres, de homens e de crianças. No entanto, não estão sendo alvos de acompanhamentos, debates, reflexões, como ocorre com as tragédias que acometeram as famílias de Isabella Nardoni e de João Hélio.

Entra aí a ideologia dos meios de comunicação de massa, a maioria controlada por grupos formados de elites política e econômica ou a junção das duas condições, que, de maneira compreensível, reproduzem a lógica de pensar desses grupos, para quem violência só é tratada como tal quando atinge os membros desse ‘clã’ hegemônico e daqueles que se ‘diferenciam’ sobremaneira da maioria da população brasileira habitante das favelas e das periferias metropolitanas.

‘Agentes de midiação’

E o mais preocupante dessa lógica é o fato desses discursos alcançarem as mentes e os corações dessa mesma gente vítima cotidiana da violência desenfreada dos morros e das periferias, que se juntam às elites para lamentar tragédias isoladas ocorridas em famílias oriundas das classes privilegiadas – não que esses tipos de crimes não mereçam a nossa compaixão e sentimento de repúdio – se esquecendo da sua realidade mais próxima, qual seja os homicídios, os estupros, os espancamentos e tantos outros crimes perpetrados contra os grupos aos quais pertencem.

Na medida em que a ideologia é assimilada e apreendida na consciência e veiculada ou divulgada através do discurso, as contradições sociais reais que o indivíduo vive objetivamente na prática social perdem sua total dimensão pela visão ideológica importada e interiorizada na consciência do indivíduo (SANTANA et alli, p. 7).

Os discursos dramáticos oferecidos pelos mass media, repercutindo casos como o da menina Nardoni, constituem o arcabouço da situação ambígua da mídia elitista: a pressão entre atender a essa suposta objetividade tão apregoada e sua condição de porta-voz de uma visão de mundo calcada nas perspectivas dos grupos hegemônicos. Assim, esses discursos são construídos de maneira a favorecer uma aceitação, pelo outro, da visão sobre uma determinada realidade que se quer expor, da forma como se quer expor.

São os ‘agentes de midiação’ que têm o encargo de ‘dar uma estrutura representativa’ aos fatos ocorridos, dotando essa sua proposição de um sentido e a ofertando à recepção de um público extenso, mas fragmentado e descontínuo […] (POLISTCHUH e TRINTA apud CÓRDULA, 2007, p. 23).

A realidade que interessa

Considerando esta perspectiva de análise, conforme assinala Hoffman (1995, p. 57), ‘apenas a uns é dado o direito de interpretar a realidade e, logo, de produzir sentido a ela. À maioria é dado tão somente o direito de concordar com essa interpretação e incluir-se no rol dos seguidores […] ou de se auto-excluir sempre que optar pelo pensamento diferente’.

A maioria da audiência dos meios de comunicação de massa brasileiros, em virtude de uma série de fatores, entre eles a fácil assimilação da ideologia dominante decorrente da falta dos instrumentos capazes de favorecer o desenvolvimento da sua capacidade reflexiva – sobretudo uma educação adequada – tende a ‘esquecer’ tantas outras mazelas sociais existentes no país, inclusive a violência a que estão submetidos cotidianamente, e interiorizar esses discursos midiáticos que transformam um fato isolado em um caso de comoção nacional, minimizando outros fatos semelhantes ocorridos no universo social.

Neste sentido, o fato de no Brasil morrerem mais pessoas vítimas de atos de violência do que em países em guerra; a constatação de que em cada grupo de dez jovens de 15 a 18 anos assassinados no Brasil, sete serem negros, é menos importante aos ‘olhos’ dos meios de comunicação do que um homicídio praticado no seio de uma família de classe média alta.

A invisibilidade a que são submetidos milhares e/ou milhões de brasileiros mortos vítimas de atos violentos no Brasil não é sequer mencionada, demonstrando, assim, como os discursos construídos pelos meios de comunicação de massa em nosso país têm servido para a construção social da realidade – aquela que interessa aos setores dominantes.

Referências

CÓRDULA, Verbena. ‘As escolas de comunicação e os novos paradigmas da comunicação de massa’. In: Revista Independência. Salvador: F2J, 2007.

HOFMANN, Loraci. Do discurso enquanto constituinte da realidade. 1995.

SANTANNA, Adriene et alli. Análise do discurso ideológico presente da obra de Charles Perrault. São Paulo.

FIORI, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. Rio de Janeiro, 2001.

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Doutora em História da Comunicação pela Universidad Complutense de Madrid e professora do Curso de Comunicação Social da Faculdade 2 de Julho, Salvador, BA