Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Muito registro, pouca narrativa

Que tipo de loucura, se perguntarão os aficionados dos textos “apropriados para a internet”, leva alguém a publicar uma matéria de mais de 40 laudas em plena efervescência deste verão do ano da Copa e das eleições? Quem terá tempo de ler tudo isto com tanta coisa acontecendo?

É a mesma “loucura” que cimentou a parceria entre o Observatório da Imprensa, o Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (Ippri) da Unesp e o Instituto CPFL | Cultura com o objetivo de realizar um debate constante, aberto, qualificado, sobre os fenômenos sociopolíticos que vieram vigorosamente à tona nas manifestações de junho e julho de 2013 em centenas de cidades brasileiras.

A primeira rodada ocorreu no dia 3 de dezembro, na sede do Ippri. Participaram os jornalistas Alexandre Machado (Rádio Cultura), Bruno Paes Manso (O Estado de S. Paulo), Laura Capriglione (Folha de S. Paulo) e Matheus Pichonelli (Carta Capital), com intervenções de Marlene Bergamo (Folha de S. Paulo), Cláudio França e Genira Chagas (ambos do IPPRI-Unesp), e a assistência de Sandra Muraki e Celestino Vivian (ambos do Observatório da Imprensa/Projor). Vivian fez uma reportagem sobre o debate: “Lições esquecidas”.

 

 

O foco proposto como ponto de partida foi a avaliação da qualidade das narrativas jornalísticas, sem as quais não há como refletir sobre os fatos e nem mesmo, antes de tudo, conhecê-los. Os relatos, ou simples registros, assumem formatos muito diferentes, que vão desde imagens captadas e transmitidas sem os requisitos da mediação jornalística convencionalmente aceita até análises mais ricas em informação e sofisticadas no estabelecimento de nexos, em sua maioria obra de jornalistas experientes e de analistas ligados ao mundo acadêmico.

O amplo predomínio da primeira modalidade, que influiu no trabalho da própria imprensa profissional, preocupa os debatedores, embora suas virtudes, ao se fazer presente no chamado teatro dos acontecimentos, não sejam negadas.

Bruno Paes Manso classificou como “bipolar” a cobertura da grande imprensa: uma grande demora para perceber que havia algo novo nas manifestações lideradas pelo Movimento Passe Livre (MPL), no início, e em seguida uma recuperação que permitiu ao repórter classificar o conjunto do trabalho como satisfatório. Bruno considera o advento da ação direta – manifestações que não se cingem à legalidade tal como entendida pelas autoridades – como o fato mais importante do processo.

Para Laura Capriglione, a imprensa, de modo geral, foi surpreendida de maneira absurda, o que ela atribui a um distanciamento cada vez maior dos jornais e revistas da realidade social. “A gente saiu da cobertura dos grandes dramas da cidade e não viu o que estava acontecendo”, disse Laura, que lamentou a perda da igreja católica como fonte de informação sobre a realidade da aglomeração paulistana.

Matheus Pichonelli seguiu uma trilha aberta por seus antecessores e criticou o encastelamento das redações jornalísticas e da universidade, o que as levou a perder a visão da realidade. “Não percebemos que criamos um recorte da sociedade e que falamos para nós mesmos, para o nosso próprio grupo. “Precisou a periferia vir para a cidade e cobrar”, afirmou.

Alexandre Machado chamou a atenção para a complexidade de acontecimentos que podem ser considerados históricos. Ele situou os protestos de junho e julho na continuidade de abalos políticos que tiveram início na vitória do então MDB nas eleições de 1974 e, como escreveu Renato Janine Ribeiro, se repetiram em cadência decenal: 1984 (Diretas), 1994 (Plano Real), 2003 (posse de Lula) e as ruas de 2013. Machado diz que, desde o fim da ditadura, o país pode ser comparado com um doente que sai gradualmente do estado de coma.

Marlene Bergamo estranhou o papel assumido pela televisão ao incentivar a participação popular nos atos de protesto. Claudio França questionou a narrativa segundo a qual as ruas foram tomadas por pessoas da periferia da cidade e chamou a atenção para o papel dos programas policialescos da televisão e do rádio na formação de uma mentalidade linchadora. Genira Chagas resumiu com a expressão “deu overbooking na cidade” o efeito da inclusão social e da consequente demanda de serviços públicos, cuja precariedade foi cruamente revelada.

De volta à pergunta inicial, a leitura do material que se segue mostra como é proveitoso estimular o confronto de ideias entre pessoas cuja função é servir como olhos e ouvidos da sociedade. Constata-se uma consciência aguda das deficiências e dos desafios, incrustada num leque de percepções maduras e diferenciadas. Bom proveito.

Cobertura bipolar

Mauro Malin – Em que medida nós, jornalistas, cidadãos, pensadores, cientistas políticos, acompanhamos ou não uma evolução que mostrava sinais de que algo diferente estava se desenhando? Para dar um mísero exemplo – pastor Feliciano. A reação ao pastor foi muito maior do que em outros momentos se poderia ter imaginado. Tinha alguma coisa no ar que ninguém estava percebendo. Nem o MPL. Por mais que eles insistissem em uma tática que se revelou vitoriosa, contra ventos e marés, que era parar o trânsito, irritar todo mundo.

Hoje aqui vamos pensar no que foi o processo, a descrição, sem a qual não se faz nada. Sem se descrever o fenômeno não se pode analisar, interpretar. Proponho que discutamos a qualidade da cobertura, e isso inclui todas as mídias, inclusive as não convencionais, o diálogo delas com as mídias que estão chamando de tradicionais. Todos os tipos de cobertura – jornais, televisão, etc. –, porque sabemos que do ponto de vista político a cobertura da televisão foi muito diferente. E esse é o ponto de vista oferecido ao povão.

Bruno Paes Manso – Eu cobri pelo Estadão. Meu olhar é bastante sobre jornal escrito, mas vou tentar abordar também TV, revista, Mídia Ninja. É interessante esse livro do Pablo Ortellado, 20 Centavos [20 Centavos – A luta contra o aumento]. O livro é basicamente sobre cobertura da imprensa. Foi uma época em que fomos muito atacados. A grande mídia ou a grande imprensa. Fomos muito criticados ao longo de junho. Mas eu achei que a gente se saiu, de certa forma, bem. E eu vi a cobertura de certa forma bastante positiva, com todos os seus defeitos, que, acho, são parte dos aspectos positivos da cobertura.

De fato, de um lado a gente tinha que cobrir o dia a dia e a gente foi completamente bipolar. Tivemos uma primeira e uma segunda fase. A fase pré-apanhar da polícia e a pós. Eu lembro do dia em que surgiram as primeiras manifestações no Vale do Anhangabaú. O Diego Zanchetta estava no centro da cidade cobrindo a Câmara, viu o pessoal do MPL botando fogo nos pneus e ligou para a redação: Olha, o pessoal do MPL está botando fogo nos pneus. Lembro da gente recebendo essa notícia: Nossa, MPL botando fogo em pneus, a essa hora, seis e meia da tarde. Não é nada. Amanhã sai um colunão. Esquece. E a gente continuou escrevendo como se nada importante estivesse acontecendo na cidade. Eles foram para a Avenida 23 de Maio, fizeram uma barricada. A coisa já começou a mudar de dimensão. Foram para a Avenida Paulista e fecharam a Paulista. Aí tocou o alarme. Corre para lá. Foi quando eu fui correndo para a Paulista.

A cena foi impressionante porque eles já tinham sito bombardeados pela tropa de choque no Shopping Paulista. Todo mundo tinha corrido para lá. Na sequência eles foram para a Avenida Paulista e ficaram na frente do Masp. E para desocupar o Masp a tropa de choque parou o trânsito na frente da Praça Oswaldo Cruz. E ficou aquela avenida inteira deserta, com a tropa de choque vindo da Praça Oswaldo Cruz batendo no escudo e jogando bomba na molecada. Eu vendo aquela cena, parecia um filme de terror. Baixou o “pai”, eu queria tocar os caras: Meu, vocês vão apanhar da polícia, eles vão massacrar. Chegou a 50 metros, eles foram embora e voltaram em outro lugar. Foi uma cena tão impressionante, e isso mudou muito o enfoque da cobertura. Era algo tão inédito que você já percebeu que alguma coisa ia acontecer, uma história ia começar a ser desenrolada por lá.

Ação direta

No começo, a questão da ação direta e da desobediência civil como estratégia política era algo que eu já tinha acompanhado, fazia parte do meu radar de discussão política, mas não entrou na nossa cabeça. Os caras vão parar o trânsito às sete horas da noite, para encher o saco, para quê? Vinte centavos. O que são vinte centavos? Mais ou menos, Laura, parecia com quando a gente foi para a USP, que era aquela molecada com o rosto mascarado. Eu lembro que minha sensação era: Ah, essa molecada é um pouco rebelde sem causa. Por causa da maconha eles vão invadir a reitoria? Tinha um pouco desse viés. Legal, eu já fui jovem, beleza, vocês estão no seu direito, gasta essa energia, legal, mas é isso, vai passar.

Era essa a expectativa inicial. Tudo era novo e instintivamente a gente ia cobrindo desse jeito. Terça-feira, na terceira passeata, a molecada veio quebrando tudo na Avenida Brigadeiro Luís Antônio. Eu dizia – meu Deus, o que é isso? Eu acompanhando aquela molecada subindo a Brigadeiro, quebrando ônibus, jogando pedra em banco. Me dava vontade de segurar, dizer – Meu, pára, você é louco?

Mostrar o invisível

Eu fiz uma entrevista com o Caio [Martins Ferreira], do MPL, foi a primeira entrevista com o MPL, foi na redação. Um garoto de 19 anos. Eu dizia para ele assim: Você vai explicar para o seu pai por que você está fazendo isso. Porque o leitor do Estadão é seu pai querendo entender. Então eu vou fazer esse papel. Eu vou ser o cara que não entende nada e você vai explicar como se estivesse explicando para o seu pai. Fiz a entrevista, foi tensa, na rua todo mundo me enquadrou. Viram. Engraçado. Mas me enquadraram, foram discutindo.

Quarta-feira foi histórico, aquela barbárie da polícia batendo na frente das câmeras, não estava ligando para se tinha câmera dando close, eles iam lá massacrando. E a coisa mudou de figura. A minha impressão é que são duas coisas. Eu acho que os jornais não conseguem de forma alguma competir com a televisão nos eventos diários. Você via o Jornal Nacional, as TVs, as imagens eram muito fortes, você tinha muita imagem, muita cena que de alguma maneira se explicava por si só. Os jornais ao longo do tempo foram conseguindo fazer uma série de matérias tentando refletir e mostrar o invisível. Lá na Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) eu falei muito sobre isso. A série de matérias que eu levei para a Abraji, matérias que o Estadão fez, dá muito para mostrar a abordagem do que é invisível, os processos, e que a imagem da TV não consegue captar e a gente tem que tentar refletir.

Black blocs

Uma bola dentro do Estadão, por exemplo. Na terceira manifestação, quando a gente subiu a Avenida Brigadeiro que eles já começavam a quebrar tudo… eu já conhecia, de alguma forma, os black blocs, estudei na FFLCH, tinha contato com pessoal de lá, eu já acompanhava a discussão da ação direta desde 2000 na Avenida Paulista, quando os punks de alguma forma fizeram algo muito parecido na luta antiglobalização, da Alca. Isso já fazia parte do meu radar. Eu conversei com algumas pessoas na rua e para mim a tática black bloc, a tática de ação direta e depredação como estratégia política, virou a coisa mais importante. Logo depois que a polícia bateu, no sábado, a gente (Estadão) publicou sobre a tropa de choque dos protestos, que eram os black blocs atuando, que vocês (Observatório da Imprensa) reproduziram.

No meu entender, a ação direta foi uma novidade gigante e que de certa forma provocou uma epidemia de protestos, acuou o prefeito e o governador… Na sexta manifestação, quando quebraram a prefeitura por três horas e que a polícia não fez absolutamente nada, e foram para a casa do [Fernando] Haddad [prefeito de São Paulo], o Haddad ficou com medo. Um dos motivos para ele baixar a tarifa foi que ele ficou assustado, pelo menos no relato das pessoas que trabalhavam com ele.

E ao mesmo tempo, quando eles baixaram a tarifa, depois de prometer repetidamente que não iam baixar, as pessoas perceberam que era possível forçar os governantes a fazer alguma coisa dessa forma. Então a coisa se espalhou como epidemia pelo Brasil, e 400 cidades fizeram, muito de uma coisa que começou despretensiosamente com essa novidade de ação direta, dessa estratégia política que pegou todo mundo de calça curta. Uma estratégia que vem sendo pensada há dez anos, desde 2003, em Florianópolis, quando os caras começaram a ir para a rua. Havia o descontentamento, mas ao tempo havia o processo de luta, de manifestação, de estratégia de rua que vinha se consolidando. Uma estratégia que acertou em cheio, porque eles resolveram concentrar em duas semanas as ações diretas, na época do Kassab levou dois meses, foram manifestações mais dispersas.

Muita raiva

Foi uma estratégia que foi sendo consolidada e que pegou em cheio quando eles foram para a rua em junho. Houve essa explosão de manifestação, essa epidemia que explodiu em 400 e tantas cidades. Houve o desdobramento dos black blocs… A gente brinca lá na redação que é a geração farofa. Mas não é. É um pessoal que compreendeu essa discussão da tática da violência simbólica dos black blocs, que vinha de junho, de manifestações que deram certo. Pelas conversas que eu tive com black blocs, com pessoas que participam do movimento, é um pessoal muito esperto, articulado, politizado, de alguma forma, mas que tem muita raiva.

É um pessoal que investiu no estudo, trabalha, e a cidade continua massacrando. A cidade continua não correspondendo apesar de todo o esforço que se faz. São analistas de sistemas, universitário de escola paga, professor, que tem uma raiva como tinham nos anos 1980 no Rio de Janeiro que quebravam o trem. É uma coisa menos focada, estratégica, como é o MPL, é uma coisa mais de desabafo. É uma relação com a cidade como a dos pichadores – inclusive pichadores fazem parte do grupo, uma relação agressiva com a cidade, um exercício de desobediência civil permanente.

Os jornais pegaram essa bipolaridade, natural de quem estava conhecendo as coisas e se assustava. Havia uma impressão equivocada. Eu acho que faz parte do jornal diário esse tipo de susto, de surpresa, com o tempo se vai afinando a sintonia. Apesar da mídia ter sido muito criticada, acho que teve um papel fundamental.

Surpresa absurda

Laura Capriglione – Vou falar em seguida ao Bruno, mas discordando. Diferentemente dele, meu balanço é bastante negativo. Acho que a imprensa em geral foi surpreendida de maneira absurda. Se a gente pensar que nosso trabalho é cobrir a cidade, a vida social, o tamanho do susto que nós tomamos é incompreensível. Se fosse a minha mãe tomando um susto, tudo bem. O trabalho dela não é esse. Mas nós, que estamos na rua o tempo todo, os jornais, que estão na rua o tempo inteiro, não terem conseguido minimamente prever o tamanho do desconforto que a cidadania manifestou naquele momento e que não somente explodiu, mas tinha uma panela de pressão fervendo… Me lembro que das manifestações de 1977 havia um documentário chamado O apito da panela de pressão, vocês devem ter visto. Havia uma fervura, uma insatisfação, um descontentamento, aqueles protestos foram a vocalização daquele caldo em fervura. Acho incrível que a gente não tenha conseguido minimamente nos antecipar ao que estava acontecendo. E pistas não faltaram.

Os dramas da cidade vinham se agudizando. Você [Mauro] falou do Feliciano, mas no roteiro que você mandou para a gente tinha lá o churrascão da gente diferenciada, a manifestação em Higienópolis. Havia uma juventude que estava percebendo uma cidade partida. As mortes na periferia que no ano passado bateram todos os recordes. Uma deslegitimação da polícia absurda. A polícia sendo vista como grupos de extermínio na periferia. Coisas gravíssimas que estavam acontecendo. A deslegitimação total do status quo.

Quantas vezes durante a ditadura militar o Globo Repórter faz programa mostrando a fome do Nordeste e a gente dizia: De novo esse tipo de matéria? O que passou a interessar, para nós, na Folha a gente brinca, a pauta de Higienópolis. Se o cara de lá espirra, isso vai ser assunto. Mas, se matam dez caras na periferia, isso aí no máximo vai ser um colunão.

Depois da recessão

A gente saiu da cobertura dos grandes dramas da cidade e não viu o que estava acontecendo. Não percebemos que os ônibus chegaram a andar até vazios, no auge da recessão, porque as pessoas pobres não tinham dinheiro para sair da periferia… E eu me lembro bem porque eu trabalhava num trabalho social na periferia e os pobres falavam “além da ponte”. E isso virou letra de rap. “Pra lá da ponte, além da ponte”…, falando da Ponte do Socorro. Era uma coisa que parecia o Muro de Berlim. Quando o cara atravessava era um milagre.

Acabou a recessão, as pessoas começaram a circular pela cidade e os ônibus se encheram de maneira desumana. O metrô virou uma loucura. A gente não pegou essa parte. Quantas vezes as matérias de transporte frequentaram a grande imprensa nesse último período? Foi pouquíssimo. Nós fechamos os olhos para uma série de pontos que exigiam um jornalismo analítico. Não era um jornalismo “eu acho isso, ou aquilo”, “eu tomei uma bala de borracha”. Isso é uma coisa dos blogues.

Precisamos de um jornalismo analítico que vá lá e pergunte: como é que houve mais de 500 mortes no ano passado na periferia, em confrontos com a polícia, fora os grupos de extermínio, os mascarados que ninguém sabe quem são, como os que mataram o DJ [MC Daleste, julho de 2013]. Não é como na Islândia, onde teve a primeira morte em confronto com a polícia e o governo pediu desculpas. Como isso bate numa população violentada diariamente no transporte, na saúde? Mas a gente estava longe, fora.

A virulência surpreendeu

A Folha, até numa tentativa de se reaproximar dessa temática da periferia, criou um blogue que se chama Mural. Que é para contemplar o jornalismo que fale sobre a condição de vida daquelas pessoas. Mas os grandes jornalistas, esses que fazem as grandes narrativas, que não é num blogue… Dá a impressão de que se criou um quartinho de brincar. Quantas vezes o grande jornalista foi lá e se debruçou sobre essa situação de uma periferia que estava demandando? Antes, nos anos 90, você andava pelo Jardim Ângela em horário de trabalho, se via aquela fila de homens sem trabalho, sentados nas portas de suas casas olhando perdido para o horizonte. Hoje, esses homens estão circulando pela cidade, procurando emprego, demandando serviços públicos que o Estado não está fornecendo. O fato de a gente ter saído da análise aprofundada disso fez com que a gente tenha se surpreendido de uma maneira inacreditável. Nós nos surpreendemos com a virulência dos caras contra nós.

Eu participei de um debate onde me perguntavam se a Folha tinha mudado de opinião, por causa de um editorial que se chamava “Retomar a Paulista” [publicado no dia 13 de junho de 2013, pedia repressão, depois criticada pelo jornal]. “Vocês mudaram de opinião, né?” Eu disse “Ainda bem.” Aí um militante da periferia disse “Engraçado, uma jornalista da Folha precisou tomar uma bala de borracha para ela mudar de opinião [referência a ferimento produzido no olho direito da repórter Giuliana Vallone, na mesma data citada acima]. Só que na periferia não é uma bala de borracha e não é uma jornalista. São centenas de pessoas e a Folha nunca muda de opinião em relação a isso.”

Quer dizer, esses caras estão circulando pela cidade, estão estudando, estão frequentando o ambiente de discussão, estão na rua. Não é o cara derrotado na porta de casa, que entra no álcool ou na droga, que nem a mulher olha mais para ele. Não é aquele clima de recessão. Os desafios de um país que retoma o crescimento e começa a integrar mais gente são muito maiores. Muito melhor seria deixar aqueles caras lá. O modelo da África do Sul é esse. Deixa os caras lá no canto e a cidade é nossa. Johanesburgo é assim. Não tem transporte, não tem nada. Ali é uma maravilha do apartheid.

Dialogar

Tomamos um susto, fomos hostilizados e acho que é uma grande oportunidade que temos de ver esses símbolos. Porque foi tudo muito simbólico. Pôr fogo. A gente pode falar “Sou contra que ponha fogo.” É claro. Ninguém está defendendo que se ponha fogo nos carros das emissoras de televisão. Isso é ponto pacífico. Agora, é um momento para a gente discutir o tipo de jornalismo que estamos fazendo. Que tipo de diálogo estamos fazendo com esses caras. Será que é o caso de pôr no quartinho ou dar um espaço nobre como ele já teve dentro das redações? Este momento é urgente e é o desafio de um país que inclui.

E a gente continua errando. É a discussão do vão livre do Masp, de novo. Vamos cercar, afastar… A gente ainda está pensando uma cidade partida. Acho que está na hora de pensarmos uma cidade que é o sentido da eleição da Haddad. Não estou dizendo que é o que ele está fazendo. “Existe amor em São Paulo”. O sentido da eleição do Haddad era esse. E o que o Haddad fez? Aliás, esqueci de falar. A primeira coisa que o Haddad fez quando começaram os protestos foi falar que a atuação da PM estava correta. Ele vai querer refresco dos movimentos? Não pode querer.

Explosão impressentida

Matheus Pichonelli – Vou contar um pouco da nossa experiência na Carta Capital [portal]. De uma equipe pequena. Duas ou três pessoas na rua tentando entender o movimento. Chegamos a colocar 10, 12 relatos por dia tentando colocar a palavra certa no lugar certo – sobre ordem, violência –, produzir uma interpretação sobre o que estava acontecendo, o que não era fácil. Acho que a gente concorda que a imprensa toda tomou um susto. Protesto na Paulista, em São Paulo, sempre tem. Alguém sempre está protestando por alguma coisa. Em junho era uma explosão e a gente demorou para perceber que ia explodir e a importância daquilo.

Por quê? A Laura falou sobre a pauta de Higienópolis. Acho que era um problema que em algum momento ia aparecer. Por que as pessoas estão descontentes, na rua, com a imprensa? Por que estão fugindo dos jornais no horário nobre, não leem os veículos tradicionais? Porque tanto as redações como as universidades se encastelaram e estão perdendo o pé da realidade. Quantas vezes discutimos o caos aéreo? Como se esse fosse o grande problema do país. E a cidade pegando fogo. Quem trabalha em redação não anda de ônibus. Perdemos o pé em não dialogar com certos grupos da cidade. Não percebemos que criamos um recorte da sociedade e que falamos fala para nós mesmos, para o nosso próprio grupo.

Precisou a periferia vir para a cidade e cobrar. Nós não estamos na periferia. Ao longo dos últimos anos fizemos reportagens específicas, mas não tiveram repercussão como agora. Perdemos o pé da periferia, mas não só. Os jovens, os estudantes estão indo para as ruas. Eram uma incógnita para mim. Até descobrir quem eram essas pessoas levou muito tempo. Para produzir reportagem diária, a gente levou pelo menos três semanas para descobrir que aquilo ali tinha uma complexidade. Que não era um grupo de baderneiros que um dia acordou de mau humor e resolveu brincar de herói. Tinha também, mas não era.

Líquido e sólido

O professor Marco Aurélio Nogueira tem uma boa explicação para isso no livro As ruas e a democracia. Com base em [Zigmunt] Baumman, na interpretação da modernidade líquida, ele diz que a sociedade opera em estado líquido, porque conectada a uma demanda muito rápida e com projetos que não ficam de pé, mas ainda opera numa política em estado sólido, demora para dar resposta, porque tem de passar pelo partido, pela liderança. Aquilo fica engessado. A imprensa também é engessada. Em parte porque entramos num modo de operação, no piloto automático, não só por estar longe da rua, como por estar reféns de declarações oficiais. Cobrimos o blablablá da política. O deputado tal falou isso e o que o senhor responde?… E a gente vende como se fosse muito importante. Não é. O caos aéreo não é importante.

Não só a política não conseguiu dar resposta para o movimento, para esta cidade, como a imprensa demorou também para entender que essas respostas não estavam nas declarações. O que a gente foi cobrir primeiro? O governador, que disse que não ia permitir que meia dúzia de baderneiros parassem a cidade. “A gente não vai permitir o caos.”

Qual ordem?

O MPL, principalmente, deu uma aula para todo mundo, para os políticos e para a imprensa, pelo menos no primeiro momento, colocando todos em seus devidos lugares. Ele dizia assim: de que ordem a gente está falando? Vocês tomam ônibus, estão indo para a periferia? Que ordem é essa de que o governador e o prefeito estão falando? É como se eles estivessem falando: Vocês são infelizes e não sabem. Na última eleição parecia que estava tudo certo, que a gente estava vivendo na belle époque. O país cresceu. Tanto que o slogan do Haddad dizia “A vida nossa melhorou da porta de casa para dentro, mas da porta para fora nem tanto.” Slogan do João Santana que fazia muito sentido, mas na prática a teoria é outra. E como resolver isso?

O MPL mostrou que não era bem assim. “Nós somos infelizes e não sabemos.” As pessoas achavam que era normal. As pessoas mostraram que podem reivindicar a rua, um espaço público que é de todos. Mas quando as pessoas vão para a rua e apanham, aí a discussão deixa de ser só o transporte. Outras pessoas entram para defender o direito de reivindicação. A discussão deixa de ser só o transporte. O MPL ajudou a colocar as coisas num lugar em que tanto a imprensa como a própria cidade não percebiam.

Batalha semântica

Tem um exemplo que eu gosto de citar: quando a coisa ficou feia, o Haddad chamou uma liderança do MPL para conversar no tête-à-tête. Bonitinha, vem aqui na prefeitura, vamos ter uma conversa franca para tentar resolver isso. Essa coisa da política brasileira de resolver a coisa no papo, não precisa assinar. É público, mas é privado. E o MPL disse: Não. Não vou na prefeitura e não vou conversar no tête-à-tête. E qual foi a primeira interpretação? Não querem conversar. Vocês são antidemocráticos.

Inverte-se a lógica. E o MPL diz que arbitrário é o Estado. Era uma batalha semântica. Quem foi autoritário na história? O movimento disse: Eu não falo em tête-à-tête. Você é a prefeitura, eu sou movimento social. Na hora em que a prefeitura chamar o movimento social para conversar como entidade, como instituição, a gente começa a conversar como adulto. Isso foi uma aula. Onde estava a desordem e onde estavam os processos democráticos.

A gente demorou a perceber isso porque a gente não tem uma democracia que funciona. Quando a gente fala de representatividade… No começo a gente dizia assim, “Ah, mas é meia dúzia numa cidade de 15 milhões.” Quando a gente entra nessa conta, só mostra o quanto as redações entraram no piloto automático de ouvir declaração oficial e reproduzir. E não de dizer: Olha, tem alguma coisa errada. Por isso demoramos para perceber. O governador coloca uma declaração no Twitter e a gente reproduz. E é muito fácil. Para ele e para a gente.

Cidade parada

A gente reproduzia: Não, a ordem, não vamos deixar a cidade parar. Mas a cidade já está parada. Se não parasse em junho, ia parar de qualquer momento. De um jeito pior. Quando as pessoas iam para a rua e pediam Mais amor, por favor, mais amor em São Paulo, é porque a cidade é assassina. As pessoas não conseguem andar de bicicleta, não têm direito a isso. Não podem ir para o parque, porque não têm direito e não pode ir para a rua dizer Eu quero uma cidade melhor, porque toma borrachada no olho. Que cidade é essa? Onde está a ordem? Onde está a desordem? Onde estão as formas de representação? É o prefeito que me chama para conversar no tête-à-tête?

Piloto automático

O movimento ajudou a deixar as coisas no seu devido lugar. Coisas que pareciam invisíveis mas estavam muito debaixo do nosso olhar começaram a aparecer. A gente tomou esse susto porque a gente caminhava a passos largos para perder o pé na realidade, porque as pessoas que estão trabalhando hoje na imprensa, que estão na faculdade, não têm essa vivência de periferia, de comunidade. Já não têm uma cultura política, e quando a gente tem só um perfil de profissional muito elitizado, muito ligado às pautas de Higienópolis, é porque perdeu o pé do Brasil. Eu conheço poucas pessoas que já foram para o sertão, que não têm medo de entrar no que se chama de biboca. A gente entrou num jornalismo declaratório muito dependente das assessorias de imprensa, de Twitter, de declarações oficiais. Entramos num piloto automático. Uma das bases do jornalismo está se perdendo aí. Tem grandes e ótimas exceções, mas se a gente entrar numa faculdade hoje a gente vai entender isso. São faculdades caras, processos seletivos caros, e esse fosso vai ser cada vez maior.

De 1974 a 2013

Alexandre Machado – Estamos diante de questões extremamente complexas e de acontecimentos históricos. No prefácio do livro do Marco Aurélio, o Renato Janine Ribeiro relembra que na história recente do Brasil tivemos fatos que casualmente ocorreram de dez em dez anos. Em 1984 tivemos eleições diretas, em 1994 a vitória sobre a inflação com o Plano Real, em 2003 a posse de Lula e agora nós estamos em 2013. Eu agregaria até dez anos antes, 1974, que eu acho que foi um grande marco da nossa retomada democrática no Brasil.

Eu que vivi já como jornalista antes do AI-5 – faço 50 anos de profissão no ano que vem – vivi esse período todo, comparo o Brasil, grosseiramente, à situação de uma pessoa que estava em estado de coma. A ditadura é uma espécie de estado de coma. A recuperação do comatoso se faz por fatias. A percepção vai aumentado aos poucos. E eu acredito que o sistema democrático trabalha nessa direção. Ele propicia mudanças no nível de consciência na sociedade.

Eu me recordo de uma cobertura feita pelo Jornal Nacional, da Globo, quando a gente estava começando a sair da ditadura, que me deixou escandalizado. Houve um acidente na Marginal Tietê, num local em que havia uma passagem de trem, no qual morreram várias pessoas. Acidente horrível. A cobertura do JN falava do congestionamento. E assim nós temos caminhado – para as pessoas mais velhas, com uma lentidão insuportável, eu gostaria que fosse muito mais rápido. Estamos muito distantes de um nível de consciência que seja razoável.

Somos um país extremamente desigual. Quando vocês enfocam, por exemplo, as questões da periferia, que são extremamente justas, corretas, vocês estão olhando para uma questão importante que não foi cuidada pela imprensa. Mas é uma questão. Quando você [Matheus] falou que caos aéreo não é assunto… Caos aéreo é assunto, sim, como é assunto a gente entender que existe um Tribunal de Contas da União que é uma coisa absurda. As pessoas acham que aquilo é um tribunal mesmo, mas é um órgão acessório do Legislativo, que é indesculpável, os ministros que tomam conta dos gastos do país são pessoas que vieram do mundo político, que têm um comprometimento direto, é uma coisa inaceitável. Assim como a gente pode listar aqui 200 coisas inaceitáveis. Uma vez eu quis fazer um projeto, mas não tive patrocínio, que era para listar 100 coisas que não é possível ter num país razoavelmente democrático. Para onde você olhar, vai encontrar esse tipo de coisa.

Um “salve” da sociedade

Nós estamos vivendo com esse evento de junho um momento desses mágicos, em que a sociedade dá um aviso. O PCC fala “salve”. A sociedade deu um “salve” para avisar que a coisa vai muito mal. E entregou para a sociedade estabelecida a tarefa de construir uma resposta. Porque essa movimentação, que inclui os black blocs, todos os movimentos sociais, eles não são a receita do bolo das transformações sociais. Inclusive por uma questão, que não é uma acusação, nem é uma crítica, mas pela falta de solução que se coloca.

Na verdade vivemos uma profunda crise de representatividade e que de repente foi denunciada de uma maneira que confundiu as cabeças, e gerou essa cobertura torta de início. Mas que não é torta por uma motivo torpe. É torta porque existe uma questão que permanece. Quem quer um país democrático quer o respeito à lei. Quer que haja uma ordem pública em que as pessoas sejam respeitadas. Quando você faz uma movimento social que paralisa a Rua Augusta você não está desrespeitando a autoridade, mas todas as pessoas que dependem de passar por ali, que estão sofrendo com aquilo e não foram consultadas.

Apoio legitimou

Esse é um pensamento da democracia que foi superado pelas questões suscitadas naquele momento. E elas tomaram legitimidade não pelas táticas dos black blocs e movimentos sociais dos vinte centavos, que foram fundamentais – eles detonaram o processo –, mas por terem se legitimado pelo apoio que a sociedade toda deu. Tanto que não se consegue nesses movimentos refazer o caminho, hoje, por vontade própria. Não se tem condição de chegar e dizer Vamos refazer o caminho, liga para os black blocs, vamos pegar os vinte centavos, vamos botar fogo no país de novo. Não é assim, porque essa legitimidade vem de sentimentos que não estão expressos. Nem nas eleições, nem na instituição dos partidos políticos e nem desses movimentos, que também não têm essa representatividade.

Eu vejo essa cobertura que nós tivemos, de um lado, Laura narrou muito bem, é um susto que todos tiveram. É um susto justo, porque ninguém imaginaria a dimensão que o movimento ganhou. Quem ajudou a dar aquela dimensão foi a ação desastrada da polícia que modificou todo o enredo do negócio, porque tirou da polícia, depois, a capacidade de atuar. E de repente você tem aquela situação da prefeitura. Uma coisa dantesca. A polícia perdeu a voz nesse enredo. Um absurdo.

Essa bobeada que a imprensa deu no começo não é porque o jornalismo não vai para a periferia, mas porque a paz social que se encontrou no Brasil era uma paz social que mascarava todos esses sentimentos. Se você pensar que nós temos um governo federal que está prestes a completar um terceiro mandato com voto popular, que esse partido supostamente teve uma participação decisiva na mudança de humor do país – porque houve um processo de distribuição de renda que criou um nível de consciência maior –, você percebe que é muito difícil ter neste momento um diagnóstico com essa profundidade.

Bloqueio

O que é dramático na questão da imprensa… Eu acho menos importante você perceber isso num dia e outra coisa no outro, o [Arnaldo] Jabor que disse que os caras não valiam nem vinte centavos, mas que depois voltou atrás, mudou a ideia, o que eu acho mais grave disso tudo é o sistema de comunicação que nós temos. Até pouco tempo atrás eu tinha um programa de debate na TV Cultura chamado Opinião Nacional. Simplesmente era o único programa de debate na televisão aberta no Brasil. Temos programas de entrevista, bons programas, etc. Não estou dizendo que era melhor. O Roda Viva é uma entrevista coletiva. Outros são de entrevista, também. Mas programa de debate, era o único que havia. Não se trata de chamar a atenção para o meu feito. Eu já dizia naquela época que era uma coisa que me envergonhava. O que acontece é que existe um bloqueio, sobretudo na mídia eletrônica, feito por interesses fluidos dos concessionários, mais a forma como se dá o patrocínio dos governos a essas mídias, e dos interesses que têm os grandes anunciantes, e que bloqueiam a possibilidade de que se discuta qualquer coisa na televisão. Se você colocar um programa de debate na Globo, um na Record, um na Bandeirantes, um na Gazeta, durante seis meses discutindo cada um dos temas desta sociedade – periferia, caos aéreo, todas essas questões –, você teria um outro país em seis meses. Nós não conseguimos isso através da mídia impressa, do que nós temos e que contribui efetivamente para o debate, não conseguimos quebrar essa barreira terrível, e que faz esse apartheid que nós temos no país. Não só em relação aos temas populares, mas a tantos outros.

Insensibilidade

Veja o que está sendo feito com a Petrobras. O que foi feito com a Petrobras desde o governo Lula e continua no governo Dilma é uma barbaridade. Não se tem essa sensibilidade. Pode-se dizer Puxa, mas está acontecendo muita coisa boa. Mas o volume de dinheiro que se perdeu por má gestão… Não é denunciado porque não há como denunciar, não se consegue denunciar. Não estou falando partidariamente, não, isso serve para outras coisas de outros partidos. Estou dizendo que existem fatos que estão na nossa cara, e que nós, seja por comodidade, seja por encontrar essa pax social que se encontrou de alguma forma, fomos entrando em uma situação de inviabilidade sem ter a percepção clara disso. E esses movimentos de junho trouxeram um grande avanço e se transformaram num ponto que será o início de uma transformação que nós também não sabemos qual seja, porque vai depender de outras transformações que estão em curso.

Sabemos que os partidos políticos não vocalizam essas questões de maneira adequada. Quando você pega a Marina Silva, e você a vê com uma grande esperança, na hora em que se aperta bem Marina Silva você sabe que nós estamos nos agarrando em alguma coisa para ter esperança. Eu tenho o maior apreço por ela. Mas não é isso. Em associação com Eduardo Campos, menos ainda. Se fosse com o avô dele poderia dar uma liga melhor. Com ele, não dá muito. Mas estamos num processo de transformação e de melhoria de nosso nível de consciência.

Mata, esfola

Cláudio França – Duas questões. Aqui está se colocando que a imprensa foi pega de surpresa com os eventos. Mas qual imprensa? A escrita? A televisão, no período da tarde e à noite, rádio, essa questão sempre esteve presente com uma visão profundamente conservadora, o pessoal enaltecendo o papel da polícia, e isso entra em todos os lares, são audiências muito grandes. O problema todo, no meu modo de ver, é que a questão social passou a ser uma questão de polícia. Saiu da discussão de política. A questão social está nas páginas policiais. Mas essa questão da violência, dos assassinatos, pedido de redução da maioridade penal, essas questões estão aí. Estão pedindo sangue. Até que ponto a gente pode dizer que a imprensa foi pega de surpresa por conta disso? Eu queria que vocês que trabalham a questão aprofundassem um pouco isso.

A segunda questão. Passou por vários discursos que aquilo foi um grito da periferia que não tem acesso à cidade…. Mas foi um grito da periferia exclusivamente, desse pessoal que não tem a menor possibilidade, ou pouca condição de vocalizar essas questões?

Periferia como metáfora

L.C. – Nós estamos falando de periferia num sentido mais amplo. Estamos falando de uma cidade demandante e que não encontra interlocução nos veículos. Vou dar um exemplo. Fui fazer uma matéria sobre quem forma os professores. Nós, que estudamos em uma outra época no Brasil, respondemos: a Faculdade de Educação da USP. Onde se discute Paulo Freire, etc. É o maior engano. A USP forma 90 professores por ano. A Uninove forma quatro mil; o Objetivo forma cinco mil; a Anhanguera não sei quantos mil. Quem forma os professores é todo mundo menos a USP. Mas a gente não cobre a Uninove. “Vamos falar da Uninove?” Não. A gente não fala. Não fala do Objetivo. Do tipo de ensino que eles estão dando. Como eu venho da escola pública, da universidade pública, minha posição, em princípio, é enaltecer a escola pública. O que esses caras estão fazendo, eles estão formando, através desse monte de programas de governo – Prouni, etc. –, essa gente que estava fora da universidade hoje está dentro da universidade.

B.P.M. – Mas Laura, não é só a gente que não cobre. Os movimentos estudantis também não. Só falam da USP.

L.C. – Claro, exato.

A.M. – Por que a grande mídia não cobre isso?

L.C. – Porque a gente é viciado. Cobrimos Fatec, USP, PUC, Mackenzie. Entrar numa escola dessas, assistir aula, como a gente já fez um milhão de vezes… Estou falando de periferia no sentido amplo. A gente tem plano de saúde. Essas outras pessoas, todas elas têm plano de saúde hoje em dia. Por exemplo, a moça que trabalha na minha casa tem plano de saúde. Não é o mesmo que o meu. A gente não cobre esse plano de saúde. O que estou falando é que existe uma periferia ampla, que mora aqui, mora no centro. Mora do nosso lado. A gente não cobre o Tatuapé. Vamos falar na real? Tatuapé é um bairro riquíssimo, hoje em dia. Mooca, a gente não cobre. Te mandam fazer uma matéria, você diz: Meu Deus, os prédios mais caros de São Paulo não estão em Pinheiros, estão no Tatuapé e a gente nem sabia. Nosso mundo é micro. A gente é severo em relação à USP, fala mal da USP, mas a USP não é nada hoje em dia do ponto de vista da formação desses milhões de pessoas. É uma periferia simbólica.

A.M. – Eu estava te perguntando por que não cobre porque há um sistema que abafa as questões. Eu me recordo desse programa que eu fazia, no qual eu fiz uma edição sobre alcoolismo. E convidei um jornalista da Folha, que havia escrito algo a respeito – não vou falar o nome dele porque não tenho autorização para falar…

L.C. – … Depois você conta!…

A.M. – … e ele disse que o Comercial da Folha chamou a atenção dele porque ele falou sobre alcoolismo e que o pessoal da Ambev não gostava.

L.C. – Eu nunca vi isso na Folha.

A.M. – Depois eu te dou o nome dele, você liga para ele e ele vai te confirmar isso.

Existem algumas coisas que têm a ver com nosso nível de consciência. Não existe um sistema que trabalha contra a elucidação de uma série de questões para que a gente possa ter uma visão mais clara do país que nós vivemos.

Empresas: fora do radar

M.P. – Vou fazer um comentário, já que falamos de cultura política. Tem um vício, não só do jornalista, mas do cidadão, que é supervalorizar o que é o público e não perceber o quanto o público está entranhado no privado. Então, quando a gente fala do sistema privado do ensino, ou da Ambev, ou das propagandas das grandes empresas, não existem setoristas para as grandes empresas – tirando quem cobre negócios e faz balanço de lucros de empresas –, ninguém cobre o sistema privado. É o mesmo mal que faz com que a gente consiga identificar o corrupto e não o corruptor. E a gente toma susto quando percebe que as coisas estão bem entranhadas. Em parte porque é humanamente impossível ter um setorista para cada empresa, ou para cada macrossetor, em parte porque é miopia mesmo. A gente tem setoristas cobrindo partidos mas não um sistema específico que envolve muita coisa. Grandes empresas…

L.C. – …Sabe aquele câmpus da Uninove que tem na Barra Funda? É um prédio com 40 mil alunos. É tão grande que tiveram de afundar oito andares. No subsolo. De tanto aluno. Eles vão construindo para baixo. E a gente não sabe de nada disso.

Marlene Bergamo – Teve uma coisa que me deixou encafifada. As redes de televisão entraram pesado. Eu duvido que elas entraram só porque alguém apanhou. A Ana Maria Braga: “Nós temos o direito de nos manifestar, vamos todos para as ruas.” De repente as televisões começaram a chamar o povo para as ruas. Não foi que de repente o povo acordou. Mas as televisões começaram a chamar e tiveram um superpapel. Marcelo Rezende convocava. A manifestação na Paulista, quando militantes de partidos foram hostilizados [20/6/2013]. Eu queria entender por que a televisão entrou “hypando” um movimento do qual ela sempre esteve à margem.

A.M. – Quando teve as diretas [1984], até então a Globo tinha uma posição absolutamente conservadora. Aí começaram a virar carros da Globo e a gritar o slogan “O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”.

M.M. – Isso já veio da eleição do Brizola [1982].

A.M. – Não era isso que falavam? Quando começaram a virar os carros da Globo, a emissora virou democrata desde criancinha. Então, é um espírito de sobrevivência. O embate ficou muito claro.

M.B. – Desde que começou a coisa de jogar cocô na Globo ela não retirou o apoio? Criminalizou, as manifestações foram se reduzindo…

A.M. – Mas as manifestações também foram perdendo o gás.

M.B. – Você acha que as emissoras não tiveram papel nisso?

Porrada em close

B.P.M. – Pela primeira vez na minha vida eu vi a polícia fazendo o que faz em outros lugares, com bala de verdade, na frente das câmeras. Eles não tinham o menor pudor de dar porrada com a câmera em close. E essa covardia é chocante. Você vendo isso, teve um peso, causou indignação natural, instintiva, nas pessoas. Você ver um policial covardemente batendo numa pessoa que está pedindo “Pelo amor de Deus, não me bate.”

M.B. – Interessante é que as televisões começaram a mostrar isso.

B.P.M. – Eles fizeram na frente da televisão. Nunca fazem na frente. Começaram a bater em vocês [fotógrafos e cinegrafistas] para vocês não fazerem imagem. Eles batiam como se não existisse câmera. No ar, e eles batendo.

L.C. – A gente não pode falar dessas jornadas sem falar da quantidade de gente filmando, documentado. Isso foi sensacional, bárbaro.

A.M. – Não falamos aqui da questão da tecnologia, que realmente mudou muito.

M.M. – Aqui fica evidente que existe um bloqueio, um sistema, esse muro que não é só o da Ponte do Socorro. Laura falou uma coisa sobre grandes jornalistas fazerem ou não coberturas relevantes de fatos que não são conhecidos. O Bruno fez uma matéria sobre o Cemitério São Luiz, onde eram cavadas 60 covas na sexta-feira porque teria um monte de enterro no sábado e no domingo.

L.C. – Quanto tempo tem isso?

M.M. – Tem uns 15 anos, talvez.

L.C. – Agora não se faz mais…

M.M. – Espera aí. Não é verdade.

L.C. – Estou brincando…

M.M. – Acho que tem um outro problema ai que precisa ser discutido, não é o foco que vou propor agora, que é o rumo que a nave toma dentro da redação. Ela toma um rumo e vai naturalizando desgraça, sofrimento. “É assim mesmo, não tem jeito…” Embora as pessoas continuem fazendo essas matérias, do contrário não saberíamos. Porque nós não vamos à periferia. Ou não? Eu não vou.

Nível de consciência

A.M. – Acho que não depende disso. Depende do nível de consciência. Mauro, você que é do Rio. Eu sou de família carioca, vou muito lá, morei lá. O fenômeno do Rio, das brigas nos morros. Lá não é periferia. Eu morava em Copacabana e do lado da minha casa tinha tiroteio todo dia. No Pavão-Pavãozinho. Muito bem. No Rio, um dos assuntos prediletos dos jornais é o problema das pessoas feridas com bala perdida. O que é bala perdida? É a bala que vem do não lugar para o lugar. Não é isso? Lá dentro, o pau comendo, tiroteio dia e noite. Agora, saía uma bala de lá da favela e pegava alguém em Copacabana, era primeira página do jornal. Isso é um nível de consciência. É claro que a imprensa tem obrigação de ficar atenta para essas questões. Eu era consultor de um sindicato patronal e escrevia para o presidente, que relutava: Isso é uma perda da condição constitucional do país. Porque tem lugar onde a Constituição brasileira não vigora. Ele dizia: Precisa fazer como em Johanesburgo. Veja como era o meu aliado. Botar uma área… É um pouco o que estão fazendo com as UPPs [Unidades de Polícia Pacificadora]: pegaram todos os morros em volta do Maracanã, por causa da Copa do Mundo. É uma falta de consciência, a imprensa deveria ter uma consciência maior, mas que é uma questão da sociedade, mesmo.

Rotina

B.P.M. – Concordo com você e com a Laura (você discordou de mim, mas…). Eu acho que existe, depois de tanto tempo de redação, já meio cansado dessa rotina, essa questão dos assuntos, o que é pauta e o que não é pauta. É uma questão fundamental e minha impressão é que na grande imprensa está tudo muito dependendo da ação do concorrente. O que é notícia é o que sempre foi noticia. Se eu sei que teve uma bala perdida e eu não publicar, e a Folha publicar, o meu chefe vai me cobrar. Tem todo um sistema que faz com que as pautas sejam sempre as mesmas. O Daniel Pizza falava que o jornalista cria um monstro e depois é engolido por ele. A gente não consegue sair dessa rotina e das mesmas pautas. O que é notícia sempre vai ser notícia. O lead é sempre o mesmo, o título. Às vezes temos uma puta história para contar e aí não tem o lead. Óbvio que haverá uma dificuldade um pouco maior para dar título, mas é uma super-história que vai revelar um monte de temas sobre a cidade, mas você fica naquela pegada: Pô, não vou conseguir vender, porque isso não é uma noticia óbvia do dia a dia da indústria de produzir notícias.

Tem essa inércia que a gente não consegue superar. Há 20 anos é a mesma notícia. É o mesmo olhar, o mesmo enfoque. Sobre essa questão da periferia, sobre a cidade… Eu gosto muito de cobrir periferia porque são coisas que a gente se pega dizendo – Meu Deus, eu vivo no mesmo lugar que essa pessoa e a vida dela… Por exemplo, as pessoas que viveram nos anos 1990, que é a minha geração, e que são da periferia, perderam 20, 30 amigos assassinados. Eu nunca perdi um amigo assassinado. Então você tem uma lacuna de geração, uma cena de Vietnã. Isso em São Paulo, como?

Tem um problema de pauta, falta cobertura, mas a questão das manifestações de junho… Prever o futuro é muito difícil. O pessoal fala do efeito borboleta. A asa da borboleta provoca um terremoto na Tailândia, que é a teoria do caos. Há muitas variáveis envolvidas. Ninguém conseguiu prever a Primeira Guerra, os ataques do PCC. Gente que investia milhões não conseguiu prever a crise econômica de 2008. Prever o futuro é praticamente impossível porque as variáveis são infinitas. E às vezes a tática do cara de botar fogo na Paulista, vem um monte de helicóptero, aquilo mudou a história.

Distantes da realidade

L.C. – O problema não é esse, Bruno. O problema é que a gente não conhecia nem os atores. Saber que o MPL, agitando suas asas, poderia provocar o terremoto que provocou, isso não poderia. Mas a gente nem conhecia os atores…Nós fizemos uma descrição na Folha, no primeiro dia, sobre o que era o MPL, era um negócio assim… uma mistura de PSOL [Partido Socialismo e Liberdade]… era tudo, menos aquilo. A gente não conhece os atores…

B.P.M. – …A minha no Estadão foi boa…

L.C. – …Esse é que é o problema. Aí então nós temos um problema que é o seguinte, a gente saiu muito fora da realidade. E tem um interlocutor que a gente perdeu no meio do caminho, que a cidade perdeu, que é a igreja católica. A igreja católica se perdeu, vamos falar na real. Em 1970, a gente queria saber como estava a periferia, ia lá e falava com o padre Jaime [Crowe, do Jardim Ângela]. Aí o padre Jaime falava: No Cemitério São Luis aconteceu isso, isso, isso. A igreja católica estava lá, estava dentro das cadeias, dentro dos movimentos contra a carestia, estava dentro de tudo. Hoje em dia… para achar uma igreja católica aberta já é uma dificuldade. Eles não estão dentro das cadeias, dos movimentos sociais, de nada. A gente perdeu uma puta fonte, ao mesmo tempo a gente não conversa com os evangélicos. De novo, a tal da periferia. Quem está nas periferias? Os evangélicos. Aliás, a gente mantém uma relação de “ódio” com os evangélicos. Não estou falando que a gente odeia, efetivamente… mas é uma relação assim: eles estão, a gente não está. Você vai na periferia, tem um monte de evangélico. Aliás, aqui do nosso lado também. Mas a gente não conversa com eles. Nós não estamos conversando com os atores sociais. Então a gente fica à mercê do quê? Concordo com você. A gente desumaniza a pauta. A gente publica assim: 547 mortos em confronto com a polícia, porque o assessor da Secretaria de Segurança passa esse dado para a gente e a gente pública.

Agora saiu uma matéria, uma coisa incrível, uma matéria linda sobre os órfãos de Gaza, acho que no Guardian. Não é que o jornalismo não está acontecendo. Está acontecendo. Pergunta: Por que não sai aqui uma matéria sobre os órfãos da nossa Gaza? Mas aí vem a pergunta: Quanto tempo vai demorar para fazer essa matéria? Então é melhor pegar o release da Segurança Pública.

B.P.M. – Que num dia você faz três.

M.M. – Eu vou querer desviar a conversa para voltar a uma rodada nova em que essas questões sejam colocadas. Sobre isso aí eu diria o seguinte – o Leonencio Nossa acabou de publicar uma matéria sobre assassinatos políticos, desde a decretação da anistia, que ele levou um ano apurando. E é assim: O cara peita a chefia e faz. Ele conquistou… pode ser um caminho a ser contemplado, porque não é o único repórter que faz isso, nem o único jornal que aceita.

L.C. – Mas estou falando como indústria. Claro que tem talentos incríveis.

M.M. – Não estou falando só de talento. É um conceito.

B.P.M. – Mas é um sofrimento, Mauro. Eu tenho certeza que ele sofreu muito e nem sei como ele aguentou. Desde os colegas….

M.M. – Claro, eles ficam pensando que o colega tem regalias…

B.P.M. – Eles chamam de elitista.

M.M. – E jornal tem uma hierarquia militar. Não tem papo. Se alguém decide, você vai fazer. Sempre assim.

Eu queria puxar a segunda rodada para essa questão que não apareceu direito na primeira rodada, que é o confronto entre as mídias tradicionais e as mídias novas, digamos assim, e um ponto que exemplificaria todo o propósito desta discussão desde o início: nós temos de fato uma descrição adequada? O Claudio disse que não foi só gente de periferia. Aliás, pelo fato de ter sido gente de periferia é que a coisa ganhou aquela amplitude. E a TV Globo, em 45 anos, deve ter parado a grade dela cinco ou seis vezes – morte do Tancredo, Ayrton Senna, Papa. E houve um dia em que não teve novela, o [William] Bonner nem avisou para os editores do jornal que não ia ter jornal e continuou com aquela cobertura. A meu ver, é isso que ele fala: a sociedade vai tomando consciência, os jornais também, as emissoras, todo mundo… A universidade nossa não produz uma análise boa, com honrosas exceções de praxe, mas ela não produz sistematicamente. A nossa historiografia é paupérrima, as pessoas não sabem o que aconteceu.

Polícia desastrada?

Eu tenho um ponto específico que foi falado aqui, mas não está apurado direito, e vai ser difícil apurar, mas não é impossível. Eu não acho que a polícia foi desastrada. Eu acho que a polícia fez exatamente o que o governador queria. Ele mandou a Rota para lá. Ele sabe o que é a Rota.

M.B. – Os jornais pediram também, nos editoriais.

M.M. – Os jornais pediram e as autoridades policiais disseram pela manhã que não haveria tolerância nenhuma e mandaram a Rota, que não é “tropa de elite”, como os jornais escrevem. A rota é a tropa de choque. Inclusive é o nome dela. Primeiro Batalhão Motorizado… Esse ponto não está esclarecido. O Alexandre acabou de falar que foi uma ação desastrada da polícia. Marco Aurélio [Nogueira, ausente do debate devido a compromissos anteriormente assumidos] fala. Para mim, era para dar uma satisfação para a direita, que é majoritária no país – não estou falando da direita dos banqueiros, mas de povo –, que quer “pau na máquina”.

A.M. – Mas isso daí o Haddad achava que tinha de fazer também. Não era uma coisa de direita, mas de como as coisas estão estabelecidas no país.

M.M. – Nessa hora o Haddad é de direita.

L.C. – Haddad coxinha…

A.M. – Estou falando da questão da paz social. Como as coisas são, ou se conformam. E o que eu falei aqui e a gente tem de pensar: uma sociedade democrática é uma sociedade que tem ordem. Não me entendam mal. Foi desastrada nesse sentido. Não é que eles queriam porrada da maneira como foi dada, mesmo que tenha vindo a ordem. Mas achar que eles queriam que fosse daquela maneira….

M.M. – Eu acho… O Elio Gaspari fez uma matéria com o testemunho dele dizendo: é muito esquisito que a tropa tenha chegado naquele momento, daquele jeito. Pessoas que estavam na Praça Roosevelt me contaram essa história. Um deles foi o Serjão, da Oboré [Sérgio Gomes]. O Serjão falou Espera aí, tem alguma coisa esquisita naquele negócio. Não é normal a polícia chegar desse jeito. Então eu acho que esse, entre outros tantos pontos, também não acho que essa seja a única questão, nem a grande questão, mas a descrição de quem estava lá – era a periferia, não era a periferia, era o aluno da Uninove, da USP? Porque quando você vê Salvador, a Revolta do Buzu [2003], é muito diferente. São alunos da escola pública, pobres, negros, pardos. E outra coisa, não tinha celular. Tinha um por escola para eles se comunicarem, na época.

Eu queria que nós falássemos das mídias e, tanto quanto possível, a questão da mídia também entra dentro disso, quão adequada, quão verdadeira foi a cobertura dos acontecimentos. Quanto se conseguiu captar daquilo que de fato aconteceu. Porque quando se vai ler determinados relatos, você vê que é diferente. Agora que a imprensa tenha demorado a perceber não me espanta. A sociedade demorou a perceber. Ninguém avisou a imprensa também. A imprensa depende disso. Nem a polícia sabia.

Cataclismo

A.M. – Esse é um pressuposto que eu acho fundamental. Esses eventos que acontecem como desastre de avião. Não tem um fator só. É um monte de coisas. Aí, aconteceu tudo naquele dia. O cara da torre olhou para lá, o outro foi fazer xixi… Ali houve os vinte centavos, que é uma coisa, o black bloc, que é outra, a periferia, outra ainda, o mal-estar geral das pessoas, outra coisa. Aconteceu o cataclismo. Como você narra o cataclismo? A cobertura da imprensa foi aquém da presteza que gostaríamos, e certamente aquém da complexidade dos fatos…

M.M. – … e da consciência necessária.

A.M. – É muito complicado.

M.M. – Mas olha só, Alexandre. Nós precisamos de uma narrativa. Ninguém que vai estudar isso pode prescindir de uma narrativa. Eu li um livro agora, chamado A Revolta das Barcas, do Edson Nunes, que foi a revolta das barcas Rio-Niterói. Você tem um monte de fatores. Ele dissecou o processo. Mas na minha cabeça tem o momento da ruptura. É o momento em que o governo manda uma tropa de fuzileiros navais para a estação das barcas de Niterói, porque era um assunto marítimo. Fuzileiro naval, porque eles estavam usando barcos da Marinha para transportar as pessoas. E o comandante da tropa chega e diz assim: Tem de organizar uma fila. Era uma loucura fazer fila ali. E os caras pegam a metralhadora e começa a dar cacetada nas pessoas para botar na fila. Aí virou salve-se quem puder, o pau comeu….

A.M. – Quando aconteceu isso?

M.M. – Em 1959, por aí…

A.M. – Então: nós temos um livro que…

M.M. – …Mas quem narrou na época… Por isso que eu acho que os futuros livros, futuras matérias, balanços…

A.M. – Mas não é a imprensa…

“Festa e fúria”

B.P.M. – Acho que é um desafio, mas a gente fica pensando como é que se ajeitam essas coisas. Como é que você faz uma matéria para construir uma narrativa. A gente fez duas matérias lá no Estadão, uma era Festa e Fúria, foi na sexta manifestação, que eles quebraram a prefeitura. Era falando muito dos pichadores, como um grupo que há 30 anos atua na cidade pela desobediência civil. Foi lá, pichou Paulo Mendes da Rocha [Praça do Patriarca], Teatro Municipal, Prefeitura, como um ator importante nesse cenário, com outros três grupos que roubaram as lojas, o do saque, e outro grupo com o pessoal que estava festejando na Paulista. Eram as três coisas ao mesmo tempo. E alguns personagens importantes. O policial, o jornalista que apanhou, o manifestante do PT, a patricinha, o cara do MPL, os fotógrafos. A gente separou em sete personagens e tentou narrar. Tentando entender e descrever o que aconteceu. Mas também era um pouco de tentativa e erro, e a gente fica sujeito a erros e interpretação equivocadas. Mas o comandante da tropa de choque… Concordo com você…

Quem comanda?

Faltou comando, as decisões eram políticas, o governador tomava as decisões de acordo com a assessoria de imprensa e com o cara da comunicação que dá a dica para ele de como atuar.

Isso a gente vê no dia a dia. A polícia retirou a bala de borracha por causa da assessoria de imprensa, isso eu sei… Então você vê que hoje o governador atua de acordo com o plano de comunicação do jornalista inteligente e oráculo, lá do lado dele. Então, quanto à falta de norte e do que é técnico e não técnico, é evidente, as decisões eram políticas. Mas você tinha ao mesmo tempo, o cara da tropa de choque – o comandante da tropa de choque era o comandante de Pinheirinho [desocupação em bairro de São José dos Campos, 2012] no ano anterior – e qual era a tática da polícia para organizar a manifestação? Era liberar uma pista, sei lá, a gente convive com a manifestação e orienta o trânsito, ou faz a integração de posse. E a reintegração se faz na base do gás lacrimogêneo. Tanto que a gente escreveu a “Revolta do gás lacrimogêneo”.

O cara foi reintegrar a Paulista. Era uma reintegração de posse da Paulista. Não era ele lidando com um fato novo do MPL. Ele foi fazer uma reintegração de posse na frente do Masp. Quando ele estava chegando, o pessoal simplesmente saiu. E eles ficaram lá parados. Eles tiveram que dar marcha à ré… Como você dá marcha à ré?

A.M. – Não está implícito no que você está falando, que é a questão da ação da Polícia Militar. É bom explicitar. Se a gente conseguir continuar retomando o nível de consciência e caminhando rumo à democracia, o país tem que dar um jeito nisso…

B.P.M. – Engraçado, Alexandre, é que depois a polícia se justifica dizendo Ah, os caras estão bloqueando as ruas na hora do rush. Cria-se essa questão de que a ordem tem de ser mantida. Os editoriais apoiando. Naquele dia da [Rua] Maria Antônia, a ordem era não chegar na Paulista. “Não vai chegar na Paulista.” E o que a gente acompanhou, não sei se a Marlene estava… a última manifestação que eu fui, dia 5 de novembro, que teve a comemoração dos Anônimos, aquele líder inglês… e eram 50 black blocs, mais 50 jornalistas que andaram durante duas horas, das seis às oito, e uns 150 policiais em volta. E a gente andando por São Paulo. Foram pela Paulista, desceram a Luís Antônio, a polícia mantendo a manifestação… Os caras com direito de andar por São Paulo. Fazendo nada, bobagem, uns gritos de guerra muito engraçados. Mas o que eles estavam reivindicando? Estavam comemorando o dia em que explodiram o Parlamento Inglês. E andando, a polícia respeitosa. Lá no final um cara soltou um rojão, a polícia foi para cima, ficaram cinco batendo no cara. Ao mesmo tempo em que tem essa questão da ordem, há uma falta de treinamento evidente em comportamento de massa.

Mas no dia em que os caras quebraram a prefeitura por seis horas, que aconteceu no pós- massacre, o secretário de Segurança falou: Não vai ter polícia, não vai ter tropa de choque. E foi uma maravilha, milhões de pessoas nas ruas. Agora você imagina, os caras quebram a prefeitura. A polícia magoada não vai acudir. Deixa quebrar.

A.M. – Também naquele dia teve uma crítica do Haddad, foi a primeira crítica dele, sobre a ação da polícia. Aí o Haddad que se vire.

M.B. – Mais foi uma desobediência, porque o governador tinha mandado a polícia ir lá. Eu estava dentro da prefeitura e vi o governador dizendo que a polícia estava indo para lá. O Nunzio [Briguglio, assessor de imprensa da prefeitura] avisou a todo mundo: Olha, vem a tropa de choque. Chegou depois de três horas.

A.M. – Teve uma coisa ali da corporação.

M.M. – Ainda está faltando reportagem. Acho que ainda tem que ouvir soldado, suboficial, oficial… E gente da própria prefeitura. Você soube porque o Nunzio falou.

M.B. – Eu estava lá dentro.

Fora do Eixo

B.P.M. – Tudo isso aconteceu. Concordo com você. Essa história ainda não foi bem contada. Em relação às mídias alternativas, ao mídia ninja, ao Bruno Torturra, ao [Pablo] Capilé, é muito interessante porque o Existe Amor em SP, churrascão em Higienópolis…

M.M. – Marcha da Maconha…

B.P.M. – Marcha da Maconha e diferente. Ela é do DAR (Desentorpecendo a Razão), coletivo ligado ao MPL, autonomistas, totalmente horizontais. O Fora do Eixo é uma coisa completamente outsider. Eles chegaram em 2011 em São Paulo, entraram na Marcha da Maconha, quando o Bruno Torturra se ofereceu para cobrir. Porque é um tema de que ele gosta – quando era editor chefe da Trip, ele era envolvido nessa temática das drogas e entrou na Marcha da Maconha. Teve um nível de acesso absurdo (internet). O Fora do Eixo se ofereceu para produzir a Marcha da Maconha seguinte em streaming, nova tecnologia. Só que o pessoal do DAR e do MPL achou que os caras estavam querendo assumir o movimento, com um papo de Existe Amor… E brigaram com o Fora do Eixo, que ficou completamente à margem da discussão. Quando o Mídia Ninja entra na história – esse processo que começou na Marcha da Maconha com o Bruno, daí veio o Pós TV e vira o Mídia Ninja –, entram na hora certa, e foram de certa forma confundidos politicamente com o grupo, mais depois também escorraçados, toda essa crise que teve com o Fora do Eixo.

De certa forma eu fiquei meio puto de ser hostilizado, muito hostilizado, da forma como fomos hostilizados. E de toda essa discussão: “Agora é o Mídia Ninja”… Não pelo Mídia Ninja. Acho bem legal que surgiu, acho interessante, temos vários motivos para sermos hostilizados, temos vários defeitos, mas esse chavão de “grande mídia” me irrita. E eu acho que a discussão é o que é bom jornalismo e o que é mau jornalismo. O que é boa reportagem e reportagem ruim. Quando a gente acerta, quando a gente erra. Quais são os temas a serem abordados e quais não. Ao invés de “a grande mídia faz tudo errado” e “a mídia alternativa faz tudo certo”.

Alimentando a polícia?

Eu falei para o Bruno Torturra na Abraji: Vocês tiveram seu papel, foi bem legal o que vocês fizeram, eu vi várias coisas feitas por vocês, mas o que acontece é que agora a polícia está atrás dos black blocs. E o que já me disseram é que para fazer o processo muita imagem de televisão vai ser usada. E quem tinha acesso aos black blocs eram vocês. Então as imagens do Mídia Ninja serão usadas para processar os black blocs. Você sabia disso? Como fica o jornalismo nessa história? E sua narrativa independente, sensacional. Óbvio, você tem todos os méritos. Mas tem uma questão aí. Quando o Bruno Torturra veio me entrevistar num protesto quando estavam batendo no Fábio Pannunzio, ele quase tinha apanhado também. Ele veio falar comigo. Eu tinha recebido três mensagens da polícia, uma do comandante geral da PM: Pô, o Mídia Ninja está bom. A polícia é a maior audiência, um monte de policiais me mandam mensagens: “Ô, o Mídia Ninja está quente, hoje.” Eu disse para ele: É jornalismo, mas não está faltando narrativa aí? Talvez você esteja alimentando a polícia… Agora suas imagens vão servir para embasar um processo.

E aí, o que é bom jornalismo e o que não é? O que é mídia alternativa e mídia tradicional? São questões que eu acho que também precisam amadurecer. Ser levadas para frente.

Censura prévia

L.C. – Eu fui num protesto que todo mundo foi levado para o 1o DP. A polícia levou a banda do MPL – eles carregavam perigosas baquetas – e naquela prisão, do dia em que pegaram o coronel, a gente ficou até de madrugada esperando eles serem soltos. E a polícia prendeu um monte de fotógrafos. E o que a polícia fez foi apreender as câmeras e os cartões de memória, antes de publicar. É um risco que qualquer profissional, uma vez que faça o trabalho dele, hoje em dia corre. Os caras apreenderam os cartões e não se ouviu nem um pio de ninguém sobre esse negócio, que é uma prática absurda. Censura prévia. Eles queriam pegar as fotos dos caras, recompor as cenas do espancamento do coronel. Agora, quem está errado? O erro obviamente não é do fotógrafo, é da polícia fazer uma ação claramente de censura.

O ganho que a gente tem nessas manifestações, com essa multiplicação de registros, é gigantesco. Tanto que, para mim, o grande furo dessas jornadas foram os infiltrados da polícia do Rio participando da depredação. Aquilo ali tem um peso de denúncia gigantesco. Ninguém nem da grande nem da pequena imprensa pegou. É aquela coisa que só pôde ocorrer por causa da multiplicação de registros e porque havia um canal para se divulgar isso, que naquele momento era o Mídia Ninja. Não porque fosse um ativista do Ninja que tivesse captado, mas porque eles abriram um canal. Tão relevante que foi parar no Jornal Nacional. Foi o grande furo dessa cobertura toda.

Agora, eu gosto de falar de grande e pequena imprensa porque é obvio, tem uma diferença, ao menos de salário. Pega seu salário e o dos caras. É quase uma coisa de luta de classes. Eles olham para você e veem um burguês (eu olho para você e também vejo um burguês…). Os equipamentos que esses meninos usam são celulares, câmeras semi-profissionais. Claro, tem os bem equipados. Existe uma diferença quase que de classe mesmo. Aqui estão os jornalistas bem remunerados, ali os que estão como voluntários.

Mas nessa multiplicação de registros é que a gente viu o quão indistinto, e isso que eu acho que é o grave, foi a cobertura da grande imprensa e da pequena imprensa. A gente não viu, objetivamente, uma diferença grande nos relatos de um lado e do outro. Eu estou dizendo assim – o furo, a notícia exclusiva – era a mesma coisa. Num certo sentido houve uma bloguização da grande imprensa. O que você ia ler nos jornais do dia seguinte era quase um registro em primeira pessoa. Eu tomei um tiro no olho, na Folha a Giuliana Vallone. Aí vinham os cara do Mídia Ninja e diziam Eu também tomei um tiro, na perna… Era uma disputa para ver quem estava tomando mais tiro.

E o que a grande imprensa tinha de diferencial é que ela chegava nos coronéis, no governador… Mas do ponto de vista da dinâmica interna da manifestação, não acho que teve uma diferença grande entre uma coisa e outra. E ao contrário, o fato de o grande furo ter sido de um jornalista independente mostra isso. Mostra que a gente não estava fazendo a diferença.

Sem interface

Eu queria só dizer o seguinte: o que seria, no meu ponto de vista, fazer a diferença seria perfilar os caras. Essa matéria a que você se referiu é uma matéria boa, um diferencial de vocês. Até hoje a gente está querendo saber o que são os black blocs. É até triste falar disso. Passaram-se tantos meses e a gente ainda está querendo perfilar os caras. A gente não entrou, conhece pouco os caras. Chegou ao ponto de a Época fazer aquela matéria “Nós descobrimos os black blocs”… Tinha uma senhora… E você pergunta: o que essa mulher está fazendo no black bloc? A gente avançou muito pouco na qualificação desses caras.

Eu acho que um grande problema, uma grande dificuldade que a gente teve era isso que você [Matheus] estava falando. São protestos muito liquefeitos. A parte institucional não existiu. Até nos movimentos mais terríveis de explosões sociais, como foi o movimento contra a carestia nos anos 80, tinha PC do B que fazia a interface. Nos movimentos pela democratização… Dessa vez o que a gente viu foram as organizações tradicionais e semitradicionais totalmente escanteadas. Aquela história do PT ter sido expulso da avenida foi uma coisa importante. Se tem um fato importante nesse ano, pela primeira vez o PT foi expulso de uma manifestação. Os deputados do PT que apareciam estavam perdidos. Eles não vão nos ajudar a fazer a narrativa. E ao mesmo tempo a gente tem uma dificuldade de entrar nesses movimentos. Por paradoxal que seja, nós hoje temos um monte de registros e pouca narrativa. Eles abrem a câmera e é isso que aconteceu. Agora, a narrativa que dá sentido, nexo – começo, meio e fim –, isso nós ainda estamos superdevendo. Mas vamos ser sérios. Também Mídia Ninja não fez. Ninguém fez. É um buraco ainda.

Muito registro, pouca narrativa

A.M. – É uma marca desse momento que a gente está vivendo no mundo. De você ter registros fartos de tudo e pouca narrativa.

M.M. – Provavelmente o poder tem narrativas, mas não são divulgadas. O poder que eu digo é o governo federal, estadual, prefeitura, policia. Eles têm a narrativa deles.

L.C. – Que trabalharam em conjunto.

A.M. – Também com um nível de desorientação brutal. Eles não sabem o que fazer.

L.C. – Mas Mauro, esse negócio que eles estão fazendo é até página 2. Na época da ditadura eles precisavam ter os infiltrados para ter a narrativa deles.

M.M. – Mas eles têm infiltrados.

L.C. – Eles tinham infiltrados nas mesmas organizações onde nós buscávamos as nossas informações, como jornalistas. Por que vamos acreditar que eles estão acertando onde a gente não está.?

A.M. – Mas eles não estão acertando. Eles estão correndo atrás. A dificuldade é essa própria complexidade, a explosão da crise de representatividade, que nos afeta de tal maneira que se coloca o PT para fora da coisa, depois tentam enfiar o PSOL também, e não vai adiante, e o PCO [Partido da Causa Operária]. Tudo isso que estamos falando reproduz o que está acontecendo nas comunicações. Você tem essa pulverização de informações, dificuldade de ter uma narrativa confiável, uma desvantagem da grande imprensa em relação ao seu comprometimento com seus públicos. De outro lado, há um controle de qualidade mais confiável da grande imprensa do que dos reports pulverizados. É mais ou menos o que está acontecendo em todos os lugares do mundo em função dessas questões. Não é muito diferente do que está acontecendo nos EUA, no Egito ou em qualquer outro lugar. São essas contradições.

M.M. – E essa mídia nova?

A.M. – Qual é a mídia nova?

M.M. – Estou dizendo desse debate sobre novos formatos… O Bruno fez uma recapitulação sobre Mídia Ninja…

Crise de representatividade

A.M. – Esse movimentos todos têm um valor intrínseco, porque têm uma origem nobre, que é o anseio que exprimem. Mas para onde isso vai? Enquanto explosão, movimentação espontânea, tem um determinado peso, e em determinados momentos gera algum tipo de contribuição efetiva. Agora, quando você precisa institucionalizar e trabalhar essas questões a partir de uma proposta que se vai fazer, aí já fica um pouco mais difícil. Vai depender do fôlego de cada um. Eu não percebo que por si isso possa trazer uma mudança que seja significativa. É ótimo que existam esses movimentos, que venham dos sentimentos represados da sociedade, porém onde vai dar? Estamos agora numa crise de rumos. Qual é o próximo passo? O povo, se pudermos falar assim, “o povo” deu um recado, a sociedade explicitou a crise de representação. A resposta está com todo mundo. Nesses movimentos, o foco é mais localizado em questões próprias dos movimentos, não necessariamente são as questões gerais do país.

Notícia e História

M.P. – Sobre as novas mídias. O que você via no dia seguinte à edição dos telejornais eram pessoas dizendo na nossa time line: Nossa, eu vi uma realidade completamente diferente. Hoje o Jornal da Globo fez isso, mas o que eu vi foi outra coisa. Foi um movimento pacífico. Isso pipocava e era muito comum haver histórias para chamar de minha. E não era de jornalista. Era de pessoas que foram ali para protestar, ou que passaram ali e de alguma forma sentiram essa coisa de ver a história acontecer, e a minha história pessoal personaliza a macro-história.

Estou curioso para ver o registro histórico do que foi junho, do que foi o Brasil nos últimos 20 anos. Muito curioso. Depende de quem vai contar essa história. Ainda é uma coisa muito incerta e que de alguma forma expõe o próprio limite nosso como profissionais. O problema de nosso ofício é exatamente esse, fazer esse relato. Em Guerra e Paz, Tolstói fez um retrato da história, é um calhamaço e mesmo assim não é a realidade. A totalidade nunca vai ser impressa. Talvez seja um pouco pretensão demais achar que a gente vai fazer essa narrativa. Eu não sei se de partida está faltando tentativa.

Uma coisa é como você vai contar os protestos. Você vai dizer que o ponto de partida foi quando os partidos foram expulsos ou o momento em que as pessoas pararam na frente da Fiesp e cantaram o hino nacional? É o mesmo protesto. E são coisas completamente diferentes. E é o mesmo movimento.

L.C. – É a mesma coisa. O movimento, nesse caso, talvez seja as duas coisas.

A rua é conflituosa

M.P. – Nesse caso a rua é muito mais conflituosa. Em entrevistas recentes do David Harvey, um geógrafo que está no Brasil e que fala uma coisa interessante sobre isso, ele fala: os partidos não conseguem dar respostas suficientes para os movimentos de rua porque a rua é conflituosa. Uma coisa é você organizar sindicato e compreender uma estrutura. Outra coisa é a rua. A rua é um caos. E a expressão na rua é uma coisa muito mais complicada do parece. Fazer essa narrativa é uma coisa ingrata. A gente tenta. Alguma coisa a gente tem de deixar ali. Quantos foram, se teve vítimas, se teve morte… Aliás, eu não sei como não houve uma tragédia maior. Faltou muito pouco.

Vários – É verdade…

B.P.M. – Morreu um.

M.M. – Morreram seis.

M.P. – Mas mesmo assim porque algum motorista passou. A agressão do coronel foi um momento em que a coisa poderia ter estourado. Para a gente que tenta fazer esse relato, para mim 2013 está sendo um ano bem ingrato, nesse sentido. Eu tomei porrada de todo lado. Ontem mesmo teve um blogue da Veja que me fez uma homenagem dizendo que sou um líder da “corja esquerdista”. Em compensação, a esquerda tradicional me bateu também porque eu contei a pancadaria contra o PM. Eles estão “confundindo bater na PM” e “bater no PM”. “Não, mas a instituição é fascista.” Calma, se o movimento usar as mesmas armas que vocês estão criticando vai ser um massacre, porque quem tem o monopólio legítimo da violência, infelizmente, é a polícia.

Ecos do passado

E aí tem duas coisas interessantes. Você falou de 2003, da Revolta do Buzu. De lá para cá, apareceram os smartphones, o Facebook, tanto o relato como a lógica de cobertura, até a organização, é outra. Mudou, revolucionou. Isso é um ponto. Ao mesmo tempo a história se repete. Eu estava vindo para cá, lendo a primeira parte da biografia de Getúlio Vargas [de Lira Neto]. Em 1919 teve uma revolta em Porto Alegre, o governador era o Borges de Medeiros e os operários foram para as ruas para protestar porque o salário estava sendo corroído, a inflação tinha disparatado. Borges de Medeiros, muito habilidoso, falou assim: eu vou elevar o salário dos meus funcionários, para as pessoas que prestam serviço para o Estado, isso vai pressionar seu patrão a aumentar seu salário também. Dali a alguns meses a coisa não deu certo, porque a inflação voltou a correr e não tinha mais como jogar a coisa para debaixo do tapete. Essa coisa debaixo do tapete, aumento de renda aqui, mas ao mesmo tempo uma precarização dos serviços públicos. Não resolveram na raiz, a coisa estourou de novo. Só que aí entraram os anarquistas italianos, os black blocs da época. Os black blocs têm uma influência do anarquismo. Eles foram para as ruas e começaram a quebrar estabelecimentos públicos e comerciais. A Brigada Militar vai para a rua também e o primeiro debate que tem é: Nossa, mas a policia militarizada está sendo usada para manter a ordem contra os baderneiros… Isso em 1919. A oposição acusava a Brigada de massacrar os operários. Getúlio Vargas, que era deputado federal, apadrinhado por Borges de Medeiros, disse que a violência era legítima porque estavam mantendo a ordem, são uns baderneiros. Parecia que a gente estava vendo notícia de hoje. Mas completamente diferente.

Cadeado quebrado

Se a gente for debater se aquela violência era legítima ou não…. A gente demorou para compreender e está tentando até agora, mas entrou em pauta, e não só o movimento em si, o sistema de transporte, essa cadeado em cima dos transportes de alguma forma foi quebrado. Policiamento, as pessoas estão discutindo. A gente quer estrutura militarizada? A gente quer ser tratado como vândalo, como bandido, cada vez que vai para a rua? Eu concordo que o caos aéreo é realmente uma pauta. Mas não era a principal pauta. De alguma forma agora a gente está falando sobre transporte público. Quem são essa empresas? Vamos continuar falando, isso vai continuar em 2014?

A.M. – Mas tudo isso faz parte do desafio que foi proposto.

M.P. – Exatamente. Quem receber essa bola terá um grande desafio. Em parte, porque as pessoas ficaram com mais facilidade de acesso à informação e qualquer tipo de relato, e de alguma forma estão se posicionando e vão cobrar essa fatura no ano que vem. Gostaria muito que a gente se encontrasse em 2014 para um balanço de como a política tradicional, as esferas tradicionais, vão reagir ao que a gente chama de ação direta. O quanto esses canais foram abertos e sensibilizados nesse sentido.

Precarização

O senhor [Claudio] falou sobre o quanto era realmente da periferia que a gente estava falando e se só virou o que virou porque eram os filhos da classe média apanhando da policia… Acho que no livro Vinte centavos – a luta contra o aumento, num dos relatos finais tem um coronel, em reunião com as autoridades, falando “Inclusive minha filha vai para o protesto”.

Eu falei muito sobre periferia, talvez uma forma meio alegórica de dizer que a gente, as redações, a universidade, perdeu o contato com a vida real. O que está sendo discutido é a precarização da vida pública. Voltando a David Harvey, ele diz que hoje a luta de classe não está dentro da fábrica. Não se tem um salário fixo, e [tem uma disputa] com os patrões e com os governos para conseguir ter uma melhoria salarial.

Hoje a maioria das pessoas trabalha por encomenda, é serviço. É uma precariedade, uma coisa fluida. Não tem um salário fixo. Essa luta começa a migrar para o que a gente chama de direito à cidade. Tudo bem, ele vai ter uma vida desregrada mas a cidade precisa funcionar. Ele precisa ter o direito a um mínimo de segurança. Ir para o show na praça e depois ir para casa. Não é o patrão dele, é a cidade. São questões em aberto. Se a gente vai conseguir fazer esse relato, não sei. É o Mídia Ninja? Ou relatos pessoais, de pessoas que queriam contar a mini-história dentro da história, eu acho bastante válido, mas o risco que a gente corre é de falar para o nosso nicho. Mas as coisas só viram notícias mesmo quando passam por um filtro de credibilidade. Se você pegar o filtro de onde as informações estão vindo, elas estão vindo dos lugares de sempre. Que chegou aonde as pessoas não eram sensibilizada por aquilo. Aí vira um grande protesto. Poucas vezes eu vi um assunto mobilizar tanta gente. Porque são pessoas que convivem de alguma forma com essa precarização da nossa vida. Não se consegue ter planos. É uma crise quase existencial mesmo. É difícil saber o que as pessoas querem, porque é difícil filtrar esse caos. A rua expõe esse conflito.

Consciência democrática

A.M. – São duas linhas diferentes. Uma desse processo de precarização que tem a ver com questões contemporâneas que não têm a ver só com nós, aqui [Brasil], têm a ver com o mundo contemporâneo. E, de outra parte uma questão que tem a ver com a questão da consciência democrática. Que vem numa outra via. De um lado você tem os dramas que são parte da dinâmica social contemporânea e, de outra parte, as possibilidades que um processo de conscientização democrática traz. Se você pensar sobre o que aconteceu nesse país desde 1985, desde a hora em que acabou a ditadura, você vê que com toda a perversão do sistema político, com os problemas de imprensa, com tudo que aconteceu, se você pegar todos os indicadores sociais do Brasil, eles melhoraram. Mortalidade infantil, expectativa de vida, tudo, tudo melhorou. Temos um caminho que está indo para frente. Mesmo nisso que é o discurso político do PT, mas que tem uma razão. Na hora em que melhora a distribuição de renda, você cria uma insatisfação com tudo isso que está acontecendo. Isso também faz parte desse processo.

Você tem de um lado essa observação do Mauro de que é preciso fazer a narrativa porque isso é importante como o registro e como elemento de análise para uma melhor compreensão de tudo isso que nós estamos vivendo. Mas, de outro lado, as transformações importantes mesmo virão como consequência desse desafio que foi posto. A repetição desse desafio não traz grandes ensinamentos. Quebrar de novo as vitrines, os bancos, já não tem mais a mesma mensagem. A mensagem existiu naquele processo. Agora é preciso encontrar jeito das pessoas resolverem. Estou falando isso em função dessa observação. Nós tivemos melhoras de 1985 para cá, em função dessa dinâmica positiva que a democracia propicia. Que não resolve tudo, mas que resolve algumas coisas, surpreendentemente.

A cidade deu overbooking

Genira Chagas – Eu queria colocar uma coisa que vem em consequência da democracia. Enquanto as pessoas estavam represadas lá nas suas vilas, em seus lugares, e não atravessavam a ponte, os meios de transporte que tínhamos, as escolas, os serviços públicos que estavam sendo oferecidos eram suficientes. De repente, percebeu-se que os serviços públicos eram dados numa situação muito insuficiente e essas pessoas começaram a circular, até por essa condição melhor que tiveram, e a cidade deu overbooking, simplesmente.

L.C. – Ótima definição. A cidade deu overbooking.

A.M. – Esse é um aspecto importante que veio junto com uma porção de coisa.

G.C. – Veio porque houve a abertura. As pessoas agora podem falar. Essa multiplicidade de vozes só começou a existir no momento em que a gente tem tecnologia… Essa multiplicidade de vozes.

A.M. – Mas isso vem vindo na história da redemocratização. Este momento nós captamos como um momento grande. A gente vê que houve alguma coisa.

Descontentamentos

L.C. – Mas eu não acho que seja assim. Desculpa. As coisas não são tão automáticas assim. A gente teve avanço democrático. O Datafolha fez uma pesquisa outro dia, a propósito dos 20 anos do massacre do Carandiru, em que se mostrou que a população de São Paulo hoje apoia mais o massacre do que apoiava em 1992. Que a população hoje é mais a favor da pena de morte do que era em 1992, mais contra a legalização do aborto do que era em 1992. Eu acho que esse overbooking da cidade tem a ver com uma situação que a cidade está inviável. A classe média está descontente, porque não anda; os pobres estão descontentes porque não anda. O pobre lê jornal e vê que o outro vai para o Sírio Libanês e que o hospital dele não tem nada, fica puto. Ele começa a demandar. Ou seja, a inclusão social cria seres que demandam. E esse é um fenômeno que nos estamos vivendo nesse momento.

M.M. – A inclusão social. Se você olhar o que a Constituição de 1988 diz, ela pressupõe isso. Existe melhoria para se poder reivindicar mais, tocquevilianamente, mas eu estudaria também quanto influenciou a TV Globo ao começar a entrevistar pessoas pobres. Vinte anos atrás a TV Globo só entrevistava branco.

A.M. – Eu fazia um programa durante anos, na TV Gazeta, chamado Vamos Sair da Crise. Era um programa que era o único lugar onde você tinha entrevistas com gente da oposição. Era o único lugar em que o Lula falava, o Brizola falava, o Prestes falou. Não tinha outra. Quando eu falo da dinâmica democrática, não quero dizer que ela resolve tudo. Os países não foram feitos para, por definição, darem certo e darem errado, as coisas acontecem em função dos fatos e processos. Percebe-se que essa dinâmica permite o país sair de uma situação que era muito pior. Mesmo quando a gente estava falando aqui de periferia, se você pegar o Jardim Ângela e o Jardim Míriam de anos atrás, por pior que seja hoje, era um Deus nos acuda total. E as pessoas estão percebendo as coisas porque tem um processo democrático em que mudou a questão da representatividade, mudou a prioridade dos governos, o que de alguma forma propiciou esta nova dinâmica.

Avanços e recuos

L.C. – Se evolui de um lado e se recua de outro. A quantidade de cadeias que se constroem hoje no estado de São Paulo e as pessoas pedem cada vez mais cadeia. Tem um movimento de avanço e recuo. Não é automático.

A.M. – Eu quero deixar claro que eu não disse que seja automático.

L.C. – A gente tem um recuo nessa questão dos direitos humanos que é muito importante.

A.M. – Quando a gente fala do deputado Feliciano, se vai ser o deputado mais votado [em 2014], é porque a complexidade da vida social não comporta um só caminho. Mas que essas coisas que foram explicitadas nesse movimento de junho são um desafio para a sociedade e que existe uma possibilidade, desde que a nossa regressão não seja muito grande, de enfrentar essas questões e de procurar respostas, não tenho dúvida. Os políticos todos estão em pânico, porque não sabem o que fazer. E eles, ou assemelhados a eles, é que têm de dar as respostas.

Justiça tarda e falha

B.P.M. – Nessa questão dos direitos humanos, a questão da justiça privada, esse pedido de linchamento, normalmente é muito ligado a um problema na Justiça. E a Justiça é muito vagarosa, muito ineficaz, e ela dá uma sensação de impunidade. A gente estava falando dos programas do Datena, do Marcelo Rezende, eu cheguei a escrever no “Aliás”, não me lembro o gancho. Vocês assistiram o “News Room”, uma série fantástica sobre jornalismo que passa na TV a cabo? No século 15, 16, você tinha aqueles enforcamentos em praça pública, que as pessoas iam em peso para ver as pessoas enforcadas, a justiça não existia nesses lugares. Dava uma sensação de tranqüilidade e ao mesmo tempo era um espetáculo. Nesses lugares onde não existe justiça, vociferar em praça pública contra o bandido, mais ou menos o que esses programas fazem, é uma forma de enfrentar esse círculo e meio que apaziguar essa sensação de impunidade, porque a Justiça parece não evoluir na democracia. Ao mesmo tempo que se tem o sistema Executivo e Legislativo tendo que responder a eleições, e as evoluções constitucionais, a Justiça fica naquele patamar aristocrático tipo não é comigo, e as coisas não avançam.

A.M. – O problema central do Brasil é de justiça. A justiça está muito pressionada para mudar. Mas para mudar é um transatlântico, uma cultura imobilista está muito entranhada. Mas você vê, o julgamento do mensalão foi um sacode enorme, a prisão do Lalau [Nicolau dos Santos Neto], por mais que tenha sido uma coisa isolada, e é um juiz do trabalho, e o outro, João Carlos da Rocha Mattos, são coisa inimagináveis ao longo da nossa história.

Não é de hoje

Eu tenho uma história de um grande professor de Economia que o pai dele morreu. E o pai dele era um desembargador desse de quadro antigo, barba branca, severo, e aí o cara descobriu que o pai tinha um cofre cheio de dólares, e ele diante daquela situação ficou numa sinuca, Não sei para quem eu devolvo isso, Não posso denegrir a memória do meu velho pai. Aí ele passou dez anos em Paris gastando o dinheiro… É que antigamente aquela imagem de quadro dava uma ideia de que era coisa séria, mas já era uma bandalha total. Agora nós estamos pelo menos descobrindo isso, estamos peitando os caras.

M.M. – Acho que existe uma deficiência de relato histórico no Brasil muito grave. Nossa historiografia tem muita falha, as pessoas desconhecem as coisas de uma maneira alarmante. Você fala em democratização e eu penso o tempo todo em desfascistização. Nós fomos mais fascistizados durante a ditadura do que imaginávamos. Fascismo para nós na década de 1960 era a Alemanha nazista que os americanos tinham ajudado a derrotar. Como um regime aliado aos americanos poderia estar fascistizando? E estava, porque tinha uma raiz fascista no Brasil muito forte. E aí você vai jogando para trás e chega no maior partido que já teve no Brasil, que se chama Ação Integralista Brasileira.

A.M. – O livro 2 do Getúlio você tem esse relato que é uma maravilha.

M.M. – O partido tinha 1,2 milhão de aderentes numa época em que o Brasil tinha 40 milhões de habitantes. E você tem que retroceder e ver que o início da República foi farsesco. E eu chegaria finalmente, para não ir até dom João VI, à Lei de Terras, em 1850: quando os escravos foram libertados, em 1888, não podiam ter terras porque já tinha sido resolvido que não. E eu acho que se a gente não entender essas coisas a gente não vai entender nada.

Guerra Fria

A.M. – Tem outra coisa. Se você considerar o período de 1945 a 1964 como um período em que regia a Guerra Fria, você tinha formalmente uma democracia no país, mas era formalmente, porque você não tinha como discutir as questões. Elas eram colocadas de forma maniqueísta, se eram a favor do capitalismo ou do comunismo. Eu lembro de uma discussão de duas primas minhas em que uma estava chamando a outra de “inocente útil”. Uma pessoa que, sem ser comunista, defendia teses que favoreciam o comunismo. Era uma discussão violenta, porque uma tinha dado 13º e direito a férias para a empregada doméstica… E foi esse espírito que fez com que D. Helder [Câmara] virasse um bispo vermelho. Então, a considerar isso como verdadeiro, vamos observar que do descobrimento até 1985 a gente não teve democracia no Brasil. As eleições falsificadas até o Getúlio, a ditadura do Getúlio, você teve democracia de 1946 a 1964.

M.M. – Você teve democracia no Brasil de 1945 a 1947-48, quando foi cassado o Partido Comunista (PCB) no Brasil.

A.M. – Tudo bem, mas ainda estávamos sob o impacto da Guerra Fria,

M.M. – O Dutra era o presidente e tinha sido ministro da Guerra. Uma coisa que as pessoas não sabem é que na eleição do Clube Militar de 1952, que selou o destino de Getúlio, porque derrotaram o Estilac Leal, o ministro da Guerra nacionalista, os caras contra a chapa nacionalista torturaram gente [oficiais] nos quartéis, para evitar que a chapa ganhasse. Prenderam e torturaram.

A.M. – Quando eu falo desse processo democrático é porque é um doente em estado de coma que começa a se recuperar e perceber coisas, que estão na cara da gente e não estamos percebendo.

Mídia e percepção

M.M. – Uma coisa fundamental é que todas as nossas percepções, tudo o que a gente acha, pensa, sente e expressou aqui nessa reunião foi criado pela mídia. Por algum tipo de mídia. Não tem como você formar seu pensamento sem mídia. Então, todos os relatos são relatos da mídia socialmente aceitos. Para um lado e para o outro. Por exemplo: tem o Datena e tem o André Caramante, o Bruno, o Matheus, etc. Mas é a mídia. Ela conforma uma consciência social. Não tem como ser diferente. A não ser que o país tivesse 20 mil habitantes. O povo se encontra na praça para discutir.

M.B. – Mauro, eu colocaria que a gente está olhando junho como se já fosse história. Vocês relataram aí uma série de coisas assim: Surpresa, não tínhamos percebido isso, não estávamos dentro dos movimentos para entender. Enfim, qual a lição que fica disso e se essa lição pode ser aplicada? Essa percepção de vocês, que estão ali na linha de frente, no dia a dia, a direção dos jornais em que vocês trabalham também tem? E se há uma preocupação de continuar olhando isso de uma outra maneira. Para não ser pego de surpresa. Eu queria entender como é que fica essa história de junho para frente, do ponto de vista da imprensa, do fazer jornalismo. O que vai acontecer na rua, evidentemente a gente não sabe ainda. Mas do ponto de vista do que a gente aprendeu e pode aplicar.

M.P. – Um risco é que qualquer coisa menos do que junho não tenha a mesma importância. Há quem diga que até o ano que vem muitos movimentos podem surgir porque ainda tem muito fio desencapado. Mas o risco na hora de avaliar se vale a pena aquilo ali, porque aquilo é um investimento de tempo, vai começar tudo de novo? O risco é que qualquer coisa menos com menos de um milhão de pessoas não tenha o mesmo efeito. Pode não mobilizar os donos de veículos como mobilizou em junho. Tem uma batalha por legitimidade. Pega o último ato, pela catraca livre, tenho a impressão de que já não tinha a mesma atenção e já não teve o mesmo apoio. Vamos de novo? A energia baixou. O risco é de que talvez seja mais difícil você cavar uma história de novo.

Não programável

A.M. – O que ficou foi esse desafio posto para a sociedade. Esse movimentos não têm esse poder, essa articulação, uma proposta para mobilizar no momento em que eles quiserem. Eles são importantíssimos, não estou desmerecendo, mas o que aconteceu foi uma confluência de fatores e isso não se programa. Os fatores são muito incertos. Também os jornalistas, mesmo que tenham adquirido um ganho de consciência e isso resulte em pautas e enfoques diferentes. Mas o jornalista também não tem o dom de recolocar essa questão de outra forma a não ser fazendo uma cobertura mais desconfiada ainda dos movimentos políticos estabelecidos, tradicionais, e sempre cotejando o que for dito pelos movimentos políticos estabelecidos com esse anseio que ficou explícito. Todos os partidos políticos no horário eleitoral falam da solidariedade que eles têm com o cidadão de um jeito risível. Não tem como dirigir isso. “Só se a gente colocar mais uma vez um milhão de pessoas nas ruas.” O movimento não está com essa bola toda. É preciso ter consciência disso para não se decepcionar. Senão, eles vão achar que foram eles. Não foram eles. Eles foram deflagradores, importantíssimos, e são fundamentais. Mas isso não se repete.

B.P.M. – O principal movimento social hoje é o MTST em São Paulo. Eles, sim , são muito articulados. Eles têm uma ação mais direta, de invasão de prédios, terrenos. Receberam pessoal do MST porque se percebeu que a cidade é o lugar do conflito.

A.M. – As coisas estão se agudizando, tem o overbooking da cidade. A sociedade está em movimento.

M.P. – Tinha luta. Por moradia, transporte.

L.C. – Do ponto de vista de pautas, o Bruno falou Eu me senti tocado ou ofendido com o fato de ser tratado como grande mídia. Eu acho que há um sectarismo enorme de todos os lados. Tanto da grande imprensa quanto vice-versa. Será que esses caras não estão trazendo um outro enfoque? Veja-se a virulência da polêmica em relação ao Fora do Eixo… Para mim é prova cabal do sectarismo.

B.P.M. – Mas um sectarismo que partiu dos próprios movimentos. Uma linguagem de internet.

Quem é o Ruas?

L.C. – Isso mesmo, linguagem de internet. Um sectarismo generalizado, uma ofensa. Aí você pega carona e diz: Eles estão com contratos públicos. Acho que isso prejudica a reflexão sobre o que cada um poderia aprender de lição em relação a esses protestos. Tanto do ponto de vista da grande imprensa, que se sente feliz com o que fez. Na Folha o balanço é que foi uma boa cobertura. Mas eu acho que a gente tem coisas impressionantes para fazer, do ponto de vista das pautas. Por exemplo: quem são essa meia dúzia de empresários que detêm contratos de ônibus bilionários com a cidade? A gente só conhece o Ruas [José Ruas Vaz]. Que tipo de negócio ele fez, como ele fez, como ele açambarcou essa quantidade gigantesca de linhas? Quais as relações perigosas que ele estabeleceu com os políticos? Esse negócio que está acontecendo hoje com as empreiteiras, são centenas, muito mais pulverizadas do que esse setor de transportes, são mais corruptas. Essa pauta ainda não foi feita.

Quando apareceu o Gilmar Mendes, todo mundo fez matéria, ele apareceu deitado no sofá com a mulher… Quem é esse Mendes? O Ruas é um mistério. Quem é o Ruas? E no entanto ele tem um contrato de bilhões. Ninguém fala sobre isso.

Como é feita a contagem do bilhete único na catraca? Todo mundo sabe que já é uma fonte de evasão de recurso. Essa matéria está para ser feita. Nós ficamos muito, ainda, nos fogos de artifício das manifestações. Eu estava vendo as capas da Folha daquele período, era um monte de vermelho. Do fogo, das catracas, nós ficamos nos fogos de artifício. Agora, o que dignifica o jornalismo, a grande reportagem, que é de abrir e lançar luzes sobre essas questões, isso aí acho que ainda não fizemos e também acho que estamos longe de fazer.

Força das assessorias

O Mário Sérgio Conti, no posfácio do Notícias do Planalto, fala um pouco sobre a dependência que o jornalismo desenvolveu das assessorias de imprensa, da briga dos partidos, dos porta-vozes, que é isso que você estava falando. Do tráfego de dossiês.

M.B. – Quer dizer, se a coisa não cai no colo não sai. É isso?

A.M. – Os vazamentos seletivos…

L.C. – Ele fala isso claramente.

M.P. – O grande furo é o cara te escolher para falar com você.

L.C. – Tem muita pauta a ser feita.

A.M. – O Oliveiros Ferreira escreveu sobre isso, o Marco Aurélio [Nogueira] falou. Como a conversa está sectária.            

Ilhas

L.C. – Xingamentos.

A.M. – Xingamentos. O país está se isolando, estamos criando ilhas e mais ilhas de difícil entendimento. Sinto isso no debate político. É uma coisa absurda, porque você fala uma coisa e alguém te dá uma porrada. Fala outra, leva porrada do outro lado. Que coisa complicada. Porque não era assim. Tinha os eixos condutores. Estamos no pós-modernismo, as coisas estão todas sem eixo. A argumentação desqualificada, uma coisa sectária que está no país e que é muito preocupante. Falta debate, o país precisa ter debate público das questões. Não é possível que você tenha uma instalação como essas emissoras de televisão todas e você não tem um programa de debate na televisão. E quando você vai fazer um programa de debate, querem que você faça uma coisa toda cronometrada. Estamos precisando fazer um projeto de país. Não estamos avançando com a celeridade que seria possível.

M.P. – É uma grande contradição. Na celebração dos 25 anos de Constituição, os discursos de quem esteve direta ou indiretamente envolvido na elaboração eram Não vamos esquecer os processos históricos que nos levaram até essa Constituição. Porque as ruas em determinado momento pareciam dizer que aquilo ali não importava mais. Que a democracia que veio se desenvolvendo de lá para cá não tivesse mais nada importante. Não é bem assim.

Parece que existem dois movimentos de lá para cá, é um evento muito recente, a gente ainda está aprendendo a lidar com liberdade democrática de fato. Um coisa que se desenvolveu de 25 anos para cá é o nosso direito de consumidor. Qual a principal reclamação. Contra as operadoras de celular? Se não funcionar, o cara sabe que pagou por isso e tem direitos. O recado veio um pouco torto da rua porque as vezes tem alguma confusão de entender o Estado como cliente.

A.M. – Porque o forte do processo da inclusão foi o consumismo.

Debate terceirizado

M.P. – Ai do atendente de telemarketing. Ao mesmo tempo a gente não aprendeu a debater. Eu fiz parte do centro acadêmico da faculdade e para mobilizar as pessoas era difícil. A pergunta era Mas vai cair na prova? Era um cálculo de custo e benefício. Em reunião de condomínio a gente não vai porque não aprendeu a debater. A gente terceiriza.

A.M. – Você joga a cidadania como direito de consumo. Às vezes faz parte da cidadania, mas não é a cidadania. Acho um escândalo como falta debate no Brasil. Você precisa ter um debate que seja livre e plural.

M.M. – Acho que existe um conformismo da imprensa. Ela já passou para a campanha de 2014 porque vai ter eleição, está marcado. É o que se sabe fazer. Isso já está aí direto, como se não tivesse havido nada. E de outro lado uma coisa que é inescapável: é que depende das eleições para resolver as coisas. E não pode ser na rua todo dia que você vai botar esgoto, melhorar os ônibus, descobrir quem é o Ruas.

A.M. – O Datafolha que saiu nesse fim de semana mostra a vida correndo normal para o Alckmin, a Dilma, e você tem 66% da população que quer que o governo seja diferente do atual. Tem-se uma aprovação da Dilma e uma desaprovação do governo. Isso expressa um pouco o que estamos aqui dizendo. É uma contradição flagrante, e não se diga que a gente não percebeu antes.

M.M. – Se algum jornal fosse fazer essas pautas que a gente está dizendo que falta, o leitorado ia chiar. Porque as pessoas não querem ver.

L.C. – Eu não acho, não. Você pode fazer benfeito ou malfeito. Imagina um cara que ganha bilhões de uma concessão. Que cara ele tem, como ele é.

M.M. – Não é isso que eu estou dizendo. O leitorado de jornal não quer saber da miséria alheia.

L.C. – Mas nós vamos falar do glamour do Ruas…

M.M. – Isso todo mundo quer saber.

L.C. – Isso é lindo. O cara que está pendurado nas tetas do Estado, sugando bilhões ali. Como vive esse cara?

M.M. – O casamento da Dona Baratinha [neta do empresário de ônibus do Rio Jacob Barata].

L.C. – Aquilo foi incrível, maravilhoso. E quem fez essa matéria sensacional? Mídia Ninja. Naquela semana [de junho de 2013]. (Transcrição de Genira Chagas)