Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Mulheres incômodas afastadas

As editorias de política teriam que valorizar as fotos de Lula confraternizando com Maluf. De preferência, a que mostra Maluf pegando Fernando Haddad pelo cangote. Quem não fizesse isso ia ser chamado de inepto, ou de maluco, ou de petista, ou de malufista.

Mas não deveriam ter ficado só nisso. Ou melhor, poderiam ter apresentado as coisas de forma mais realista.

Lula não escolheu Maluf como aliado preferencial. Chegou a ele conduzido, digamos como o general Charles de Gaulle, pela força das coisas. A partir de determinadas escolhas feitas antes, entenda-se.

Marta fora

A escolha básica foi barrar a candidatura de Marta Suplicy. A candidatura dela teria sido a melhor para o PT? Não exatamente. A melhor para Marta, claro, e para o grupo hegemônico no PT da capital paulista. Essa entidade política, em suas diversas vertentes, não coincide com o PT-de-Lula.

Para o PT-de-Lula, e talvez para o PT todo, uma candidatura nova, desde que patrocinada por Lula, pode ser mais vantajosa.

Mas, sem a parcela de votos que seria transferida especificamente por Marta, como vencer? Não se trata necessariamente de derrotar Serra/Kassab. Há outros candidatos fortes: Gabriel Chalita e Celso Russomano.

Os votos de Maluf provavelmente compensam os que Marta deixará de carrear para Haddad (deixará?, ainda nem começou o primeiro tempo do jogo, é cedo para dizer isso).

Resumo da ópera: Lula não está tantã, como pretendem alguns. Fez simplesmente o que uma visão realista da política eleitoral ditava. Nisso, não foi diferente de ninguém importante. Fernando Henrique Cardoso fez o mesmo. Dilma Rousseff também faz. Acaba de receber com sincero enlevo o beija-mão de Maluf.

Erundina fora

Um subproduto interessante para Lula foi a renúncia de Luiza Erundina.

Lula e Erundina não são exatamente dois bons camaradas. Numa entrevista dada ao Jornal da Tarde em 1997, reproduzida no livro Já vi esse filme, de 2005, Paulo de Tarso Venceslau diz ao repórter Luiz Maklouf Carvalho:  “Eu não tive só experiências ruins no PT. Eu tive experiências ótimas, fantásticas. Mesmo aqui na administração da Luiza Erundina. Ela foi pressionada para fazer acordo com o Roberto Teixeira e se recusou.”

Roberto Teixeira é o compadre de Lula que cedeu um apartamento em São Bernardo para Lula morar, até ser eleito presidente da República. Era ligado à empresa CPEM – Consultoria para Empresas e Municípios −, cujos serviços à prefeitura de São José dos Campos foram contestados por Venceslau, secretário de Finanças do município na gestão de Ângela Guadagnin (1993-1996).

Maklouf pergunta: “Como foi essa pressão?”

Paulo de Tarso Venceslau responde: “Houve um almoço em que estavam presentes o Lula, a Erundina, o Roberto Teixeira e [houve] essa discussão toda para pressionar a contratação da CPEM para fazer esse serviço que eu contei aqui”. (Em resumo, um tipo de fraude que fez a prefeitura dever R$ 10 milhões à empresa. O esquema fora herdado da administração anterior, de Pedro Yves, do PRN, partido criado por Fernando Collor para se lançar candidato, em 1989.)

Maklouf: “E como é que você sabe disso?”

Venceslau: “Eu sei porque trabalhei na administração petista e tive informação segura a esse respeito. O que eu vi muitas vezes foram manifestações raivosas contra a Luiza Erundina por ser muito rigorosa nessas questões. Ela não foi conivente com isso. É voz corrente.”

A campanha de 1989

Também é voz corrente entre petistas veteranos que Erundina, então uma personalidade de grande prestígio no partido, a primeira mulher eleita para governar São Paulo, derrotando Paulo Maluf (em 1988), não foi exatamente a mais devotada colaboradora da campanha de Lula para presidente, em 1989. Nem política, nem financeiramente.

Erundina acabaria fora do PT, depois de aceitar convite de Itamar Franco para ocupar a secretaria de Administração do governo federal, num período em que era necessário manter cortes feitos na máquina, não mais em nome da redução do tamanho do Estado, segundo a concepção de Collor, mas devido à situação ruim das contas públicas.

O mundo deu muitas voltas. Em 2012, Erundina aceita formar chapa com Haddad, de modo algum ignorando que a famosa base aliada é um mingau ideológico de sabor indefinível.

Sua reação à foto Lula-Haddad-Maluf não foi imediata. Algo já tinha desandado no arranjo e a direção do PSB lhe informou que ela não deveria permanecer na chapa. O prêmio de consolação foi a liberdade para externar indignação com a aliança espúria, ou melhor, com o strip-tease da aliança.

O papel de ofendida valeu a Erundina alguns dias de celebração midiática que estarão esquecidos antes mesmo de começar a campanha eleitoral propriamente dita.

Muito antes da cena no jardim

Qual é o equívoco da imprensa ao fornecer munição, sob a forma de “indignação cívica”, para ex-petistas, ainda-petistas e outros afrontados? É fazer de conta que as pessoas descobriram agora o realismo político de Lula. Só agora. Só no jardim da casa de Maluf. Que é uma maneira de validar a mise-em-scène ideológica de Lula. Visitas a Cuba, confraternização com Fidel Castro, apoio a Hugo Chávez etc. E esquecer a camaradagem com George W. Bush, por exemplo.

Em 1989, o jornalista Mário Morel perguntou a Lula (vide Lula, o Metalúrgico, 2ª ed., 1989): “Qual o principal adversário do PT?” Lula: “A nível ideológico seria o PC [Partido Comunista, PCB]. A nível de voto o PMDB, pois nós vamos pegar uma grande fatia deles. A tendência do PMDB é refluir.” Nos anos seguintes, Lula explicitou mais de uma vez que o rótulo de esquerda não se aplica a ele.

Quanto ao conflito com o PMDB, acabaria custando caro a Lula, como mostrou o episódio do mensalão. Se tivesse sido estabelecida uma aliança com o PMDB, o governo Lula poderia ter evitado o método de arrebanhar governabilidade dando mesada, segundo investigação da Procuradoria Geral da República (não se entende direito por que parlamentares do PT também ganhavam mesada; quer dizer, entende-se, o que é pior).

A lição foi aprendida. Logo após a reeleição em 2006, o PMDB passou a fazer parte da coalizão governista. Seu então presidente, Michel Temer, é hoje vice-presidente da República. Por sinal, está faltando na imprensa um bom perfil político do antigo secretário de Segurança Pública dos governadores André Franco Montoro e Luiz Antônio Fleury Filho.

Erundina vs. Jânio

Nesta breve recapitulação cabe ainda referência a uma notícia bem recente. Foi publicada na Folha de S. Paulo, em 22 de junho. O repórter Rubens Valente, graças à Lei de Acesso à Informação, pôde examinar documentos que mostram como Lula foi vigiado por órgãos de informação do governo entre 1976 e 1991.

A matéria se detém num registro importante. Erundina foi eleita em 15 de novembro de 1988. No dia seguinte, o prefeito cujo mandato se encerrava, Jânio Quadros, anunciou que poderia ser candidato à presidência da República em 1989. A cúpula petista, nesse mesmo dia, reuniu-se na casa do advogado e vice-prefeito eleito Luiz Eduardo Greenhalgh. Lula e José Dirceu estavam lá.

O informe do SNI diz que foi decidido então fazer uma devassa nas contas e atividades da prefeitura janista, com o propósito de “propiciar maior promoção à candidatura de Lula, obstruindo a de Jânio Quadros”.

Um parêntese. Na reportagem de Valente, lê-se: “O relatório não esclarece como o SNI teve acesso a detalhes do encontro, o que levanta a hipóteses de uma gravação ambiental ou de um informante na cúpula do PT. Outros textos sobre Greenhalgh sugerem que o SNI dispunha de acesso privilegiado às conversas dele.”

Obras retomadas

Em maio de 1989, cinco meses após a posse, Erundina deu entrevista coletiva para denunciar irregularidades na gestão municipal antecedente. Como é habitual nesses casos, não houve consequências cíveis ou criminais.

Erundina, aparentemente indignada com os métodos nada republicanos que supostamente presidiram a contratação de algumas grandes obras da administração de Jânio – notadamente o túnel sob o Rio Pinheiros e as obras viárias que posteriormente seriam batizadas com o nome de Ayrton Senna −, decidiu interromper os trabalhos.

No plano federal, as acusações contra Jânio parecem ter funcionado. Ele não concorreu em 1989. Lula conseguiu a proeza de ultrapassar a fortíssima candidatura de Leonel Brizola no primeiro turno e disputar o segundo com Fernando Collor.

No plano municipal, as decorrências do ataque à administração janista não funcionaram a contento. Paulo Maluf explorou com a conhecida competência a promessa de retomar as obras monumentais paralisadas. Ganhou votos da parcela do eleitorado paulistano pouco preocupada com clivagens ideológicas e eternamente fascinada com grandes obras. É preciso dizer que as clivagens ideológicas pareciam então mais nítidas.

Comentou-se em 1992 que a promessa de retomar as obras rendeu a Maluf supostos dividendos traduzidos em recursos para sua campanha eleitoral. De fato, eleito no segundo turno (derrotou Eduardo Suplicy), ele retomou as obras, concluiu-as e inaugurou-as com o alarido de praxe, a que não faltou mídia espontânea.

Assim, a estratégia pré-eleitoral convertida em denúncias de Erundina contra Jânio, se beneficiou Lula, não deixou de contribuir para apear o PT do poder na maior cidade do país. E Maluf ainda conseguiu munição para fazer o que Lula faria em 2010: eleger em 1996, para sucedê-lo, um desconhecido, Celso Pitta.

Serra perde Maluf, Lula leva

Do desastre da administração de Pitta beneficiou-se Marta Suplicy, eleita em 2000. Novamente, o PT da capital paulista chegou ao poder. Em 2004, foi desalojado pela dupla Serra/Kassab. Oito anos depois, mas agora sob o comando direto de Lula, a legenda tenta retomar a prefeitura, com o apoio de Maluf, que vai muito além do minuto e meio acrescentado pelo PP ao tempo de televisão de Haddad.

Maluf permanece onde sempre esteve. Negociou com Serra e Kassab posições na máquina administrativa em troca do tempo de TV e dos votos que é capaz de orientar. Os cavalheiros envolvidos na barganha não se entenderam. Lula fez seu lance no leilão e ganhou a prenda.

O afago de Maluf no cangote de Haddad vitaminou a campanha do candidato de Lula. Sem as presenças incômodas de Erundina e de Marta. E disseram que Lula estava desorientado, abatido pelos efeitos do tratamento químio e radioterápico. Quanta subestimação da capacidade transformista da “metamorfose ambulante”. E da eficácia de seu pragmatismo político.