Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Multidões integradas ao espetáculo

Há 14 anos, em artigo para a revista Imagens, então publicada pela Unicamp, usei pela primeira vez a expressão ‘fator Leo Minosa’. Recorri a ela para designar um efeito específico que as coberturas sensacionalistas podem causar na audiência: o de promover a aglomeração de multidões nos locais onde um crime ou uma tragédia aconteceram – ou onde um assassinato é apurado, debatido ou julgado. Agora, nesta semana, ‘folheando’ a internet, encontrei outra vez essa mesma expressão, desta vez invocada por outros que não eu, a propósito da intensa mobilização popular em torno da morte da menina Isabella Nardoni – fatalidade sobre a qual o leitor já está mais do que informado.


Surpreendido pelo reaparecimento do fator Leo Minosa, volto eu também a ele. Não porque haja algo que me caiba falar sobre o assassinato de uma garotinha de 5 anos de idade, mas pelo que o episódio reitera sobre o estatuto das multidões, grandes ou pequenas, em sociedades integradas por meios de comunicação de massa, eletrônicos ou não. É curioso observar como a internet – que, ao menos em tese, contribuiria para dissolver a antiga categoria da massa em múltiplos agrupamentos menores, cada qual com sua predileção – não revoga as marcas e as leis naturais mais profundas da comunicação… de massa. A despeito de tantas inovações, ainda somos, ao menos em parte, uma sociedade regida por velhos padrões de comunicação – e o sensacionalismo é uma afirmação enfática dessa verdade incômoda.


Embora as novas possibilidades tecnológicas da internet tenham acentuado a autonomia individual e propiciado o fracionamento do público numa gama virtualmente infinita de temáticas e focos de interesse, as massas, as velhas massas, às vezes voltam a ganhar a cena pública, exatamente como há 15, 30, há 60 anos. Como para avisar que não morreram. É o que o fator Leo Minosa nos mostra.


A condução do circo


Esse nome, Leo Minosa, vem do personagem de um filme clássico de Billy Wilder, lançado nos Estados Unidos em 1951, A Montanha dos Sete Abutres (The Big Carnival). O próprio Wilder assina o roteiro, em parceria com Lesser Samuels e Walter Newman. Kirk Douglas interpreta Charles Tatum, um repórter sem escrúpulos que, já em declínio, consegue um posto de repórter num jornalzinho da pequena cidade de Albuquerque, no Novo México. Mesmo ali, no seu pequeno fim de mundo, ela espera que surja uma grande história para projetá-lo nacionalmente e elevá-lo ao estrelato da imprensa. Sua chance de ouro aparece quando, num lugarejo ali perto, um jovem fica preso dentro de uma caverna, com as pernas soterradas por um desmoronamento. O jovem passa bem, mas só se conseguirá safar se alguém retirar as pedras que pesam sobre suas pernas.


A caverna fica numa montanha considerada sagrada pelos indígenas e já há os que acreditam que o rapaz ficou preso ali porque os espíritos queriam vingar-se dele. Tatum logo reconhece o imenso potencial sensacionalista da situação. Habilidoso, o jornalista consegue retardar o resgate e, em questão de dois dias, a história se converte em comoção continental.


O xerife local começa a ver vantagens na exposição do caso e se alia a Tatum. Repórteres de todos os cantos do país chegam à Montanha dos Sete Abutres. Com eles vem a multidão sedenta de sensações, pronta para seguir de perto os lances mais emocionantes. Tatum conduz seu circo de modo calculado, submetendo a seus planos o destino do rapaz aprisionado. O nome do rapaz é Leo Minosa (vivido por Richard Benedict) e o show está apenas começando.


Fazer acontecer


Voltemos ao Brasil dos nossos dias. As imagens de centenas de manifestantes no meio da rua cantando ‘Parabéns a você’ para Isabella no dia em que ela completaria 6 anos, com bolo de aniversário e tudo, trazem de volta, com exatidão, a trama de Billy Wilder. Não que exista um cérebro maquiavélico regendo a seqüência das revelações. Não que exista alguém à beira da morte, como Leo Minosa. Hoje, o que temos é a lógica automática do espetáculo conduzindo o reality show a céu aberto. Não há maestro, mas há, sim, uma partitura sendo executada.


De sua parte, a multidão não foi atraída pelo suspense de saber se uma pobre alma soterrada sobreviverá ou não, mas, movida pela fome aparentemente sagrada de justiça, grita para apressar o desfecho da novela. Ela reivindica o clímax a que julga ter direito. O que agoniza em praça pública não é mais a vítima da violência, mas a reputação dos suspeitos. As massas querem sangue – físico ou moral, tanto faz. Elas não amam ninguém – não amam Isabella nem amavam Leo Minosa. Elas amam alucinadamente o êxtase das tragédias.


Ao lado disso, ou acima disso, amam a sensação de ser aceitas no espetáculo, um amor infantil. Seguram o bolo para Isabella diante das câmeras com a mesma convicção com que abrem um cartaz onde se lê ‘me filma, Galvão’ num estádio de futebol. Num caso, expressam-se com lágrimas. No outro, às gargalhadas. A finalidade é a mesma.


Charles Tatum sabia disso muito bem: a presença da platéia eleva a dramaticidade do sensacionalismo, mas é preciso ter os elementos certos para invocá-la e chamá-la à cena. As multidões, nesse caso, não conduzem a história (com H maiúsculo ou minúsculo, tanto faz): entram como figurantes nos roteiros automáticos. Figurantes essenciais, mas figurantes.


Há algo de perturbador na constatação, como se ela retirasse dos comuns do povo a condição de tomar a iniciativa, de fazer acontecer ou, como diz o refrão, de ‘fazer a hora’. Não obstante, muitas vezes é disso mesmo que se trata. Onde muitos vêem ‘protagonismo’ das massas, há somente isto, o fator Leo Minosa.

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Formado em direito e jornalismo pela Universidade de São Paulo, é doutor em Ciências da Comunicação pela mesma universidade e autor de alguns livros, entre eles Sobre Ética e Imprensa (Companhia das Letras, 2000); foi presidente da Radiobrás entre 2003 e 2007