Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Na era do comentário sagrado e da informação livre

O filósofo francês Jean-François Revel, autor de O conhecimento inútil (Bertrand Brasil, 1991), trouxe uma questão inquietante à propalada ‘sociedade do conhecimento’. Vale a pena tirar o livro da estante e reler, mais de 10 anos depois, algumas de suas análises.

Para introduzir o tema, Revel observa que a civilização do século 20, mais do que qualquer outra, propagou com entusiasmo o discurso da disseminação da informação, do ensino, da ciência e da cultura. No geral, o tempo de permanência na escola aumentou, os meios de comunicação multiplicaram-se e passaram a veicular uma quantidade de informação inconcebível há duas ou três gerações. Assim, ainda que a circulação de conhecimento no planeta seja desigual, é inegável que governantes e administradores têm melhores condições de saber sobre em que dados apoiar suas decisões, e os cidadãos estão mais bem-informados sobre o que fazem aqueles que decidem. Mas o autor propõe que investiguemos se essa ampla difusão de informação ocasionou, ‘como seria natural esperar’, uma gestão mais acertada e justa da humanidade.

Lamentavelmente, não é isso que mostra a história. O século 20, um dos mais sangrentos de todos os tempos, lembra o filósofo, ‘singulariza-se pela aplicação de suas opressões, de suas perseguições, de seus extermínios’. Foi o período no qual, ao lado de grandes conquistas na área da tecnologia, da saúde e das artes, sistematizou-se o genocídio, o campo de concentração, a extinção de nações inteiras pela guerra ou pela fome organizada, o terrorismo, a escravidão e as formas mais sofisticadas de escravidão. Foi também, de acordo com relatório da ONU de 2002, o século que terminou com 1 bilhão e 100 milhões de pessoas vivendo em extrema pobreza, ou seja, com menos de um dólar por dia.

Essa dinâmica, para Revel, inviabiliza os prognósticos de que a ‘era da comunicação’ teria tudo para celebrar o triunfo da democracia. O que explica, então, que com tanta informação, com tanta circulação de conhecimento, ainda erremos tanto?

Talvez seja conseqüência de um cálculo, em todo caso racional, que nos abstenhamos de utilizar o que sabemos, pois existem circunstâncias freqüentes na vida das sociedades, assim como na dos indivíduos, em que se evita considerar uma verdade que se conhece muito bem porque, caso as conseqüências sejam avaliadas, perceber-se-ia que a ação seria contra seu próprio interesse. (Revel, 1991, pp. 9-10).

Último lugar

Seria possível que a própria abundância de informação excitasse o desejo de ocultá-la, em vez de utilizá-la? Será que a abordagem da verdade desencadeia mais ressentimento do que satisfação, mais sensação de perigo do que de poder?, questiona. Para Revel, essas interrogações apenas se aproximam das margens do verdadeiro mistério.

Tem-se em conta que as sociedades abertas são, ao mesmo tempo, causa e efeito da liberdade de produzir, difundir e receber informação. A democracia, regime baseado na livre-determinação das grandes escolhas pela maioria, caminharia inevitavelmente ao fracasso se os cidadãos que fazem essas escolhas se pronunciassem na ‘ignorância das realidades, na cegueira de uma paixão ou na ilusão de uma impressão passageira’.

Mas Revel observa que viver em um mundo moldado pela prática da ciência não significa imaginar que os seres humanos como um todo pensam de forma científica. Isso quer dizer que, na prática, a quase totalidade dos indivíduos utiliza os instrumentos criados pela ciência sem participar intelectualmente do grupo de disciplinas do pensamento que geram as invenções e organizam as descobertas. Por outro lado, e essa é uma chave para se esboçar a compreensão do processo, mesmo os cientistas mais brilhantes estão sujeitos a ‘forjar suas opiniões políticas e morais de maneira tão arbitrária e sob influência de considerações tão insensatas quanto os homens que não possuem qualquer experiência de raciocínio científico.’

Revel observa que as opiniões são estruturadas sob diversas influências, e que o discernimento intelectual freqüentemente ‘ocupa o último lugar, antecedido por crenças, meio cultural, acaso, aparências, paixões, idéias preconcebidas e preguiça de espírito’. E afirma ainda que ‘cada um de nós deve saber que possui, em si, essa perigosa capacidade de construir um sistema explicativo do mundo e, ao mesmo tempo, uma máquina de rejeitar todos os fatos contrários a este sistema’.

Conclusões grosseiras

Quando o que está por trás da opinião é uma base ideológica, a comunicação se torna ainda mais contaminada. Revel acredita que a ideologia é a principal fonte de desorganização da informação – pois, para sustentar-se, necessita de mentiras sistemáticas, e não simplesmente ocasionais. Portanto, para permanecer intacta, precisa defender-se incessantemente contra o testemunho dos sentidos e da inteligência, e é obrigada a modificar constantemente a imagem do mundo em função da visão que se deseja manter.

O problema é complexo. Um princípio fundamental da democracia é que todas as opiniões têm o direito de serem expressas. Mas é igualmente inequívoco que a democracia é também um sistema que só pode funcionar se os cidadãos dispuserem de um mínimo de informações corretas. Para Revel, não há contradição entre os dois princípios. ‘A imprensa, repete-se incessantemente, deve ser pluralista. Ora, é a opinião que pode ser pluralista, não a informação. Conforme a sua própria natureza, a informação pode ser falsa ou verdadeira, não pluralista’, escreve. Para ele, o problema da imprensa moderna vem precisamente de que o direito amplamente reconhecido de expressar as opiniões, ‘incluindo as mais extravagantes e rancorosas, o direito de errar, mentir e ser estúpido’ influenciou a missão da informação. Em outras palavras, o axioma ‘o comentário é livre, a informação é sagrada’, acredita o autor, foi pervertida para ‘o comentário é sagrado, a informação é livre’. E, para ele, o mal mais prejudicial, e infelizmente comum, é a ‘opinião disfarçada de informação’.

Portanto, em plena era da comunicação de massa, Revel defende que as convicções da humanidade não decorrem, de modo algum, de um maior acesso ao raciocínio científico ou de uma compreensão aprofundada dos elementos do debate.

O público só tem acesso às conclusões grosseiramente simplificadas, e não aos raciocínios que as fixaram, mesmo quando se trata de problemas (o da Aids, por exemplo) relativamente simples de se expor. O público moderno continua a viver, como o seu predecessor da Idade Média, sob o argumento da autoridade: ‘É verdade porque um tal Prêmio Nobel o disse.’ (Revel, 1991, p.232)

Enfim, um problemão.

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Estudante de Jornalismo na Universidade de Uberaba (Uniube)