Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Não basta ser competente

Nunca se falou tanto em ética como nos dias atuais. Escreve-se cada vez mais sobres este tema. Alguns, com propriedade, estilo e sincera preocupação com o quadro vigente. Outros tentam de todas as formas, ao modo dos antigos sofistas, desmontar valores, desconstruir concepções e, o que é pior, defender a idéia de que, na prática, é impossível ao homem contemporâneo adotar uma postura ética em seu dia-a-dia, pessoal e profissionalmente. No meio jornalístico, o problema é semelhante.

Pode-se perguntar, então, como faz o jornalista Maurício Guidani Romanini: como é que fica a questão ética nesse contexto da mídia contemporânea? Infelizmente, a ética de alguns jornalistas e de algumas empresas confunde-se com interesses escusos de políticos. Ignoram, portanto, o princípio básico, segundo Romanini, de que o jornalista escreve para o seu leitor, o exercício de um jornalismo sério e ético é a pedra de toque do contrato com os leitores.

O propósito deste texto não é exatamente analisar esta questão por demais complexa, mas reafirmar a importância e a possibilidade da ética como fundamento da profissão de jornalista. Trata-se menos de um desejo e mais da obrigação profissional de intervir e de modificar o mundo, conforme a lição ensinada e vivida, coerentemente, pelo professor Paulo Freire quando diz em sua Carta do direito e do dever de mudar o mundo: ‘A luta ideológica, política, pedagógica é ética ao ser dada por quem se posiciona em uma opção progressista e não escolhe lugar nem hora’.

É oportuno ressaltar que é pelo discurso, em seus diversos formatos e suportes, reunindo dialeticamente teoria e prática, que a defesa da ética se faz. Faz-se, também, pela educação do espírito, pelo aprimoramento da sensibilidade, pelo cultivo da inteligência. Pela educação que, ainda segundo Freire, não podendo jamais ser neutra, tanto pode estar a serviço da decisão, da transformação do mundo, da inserção crítica nele, como a serviço da imobilização, da permanência possível das estruturas injustas, da acomodação dos seres humanos à realidade tida como intocável.

Armadilhas e artimanhas

Entre os jornalistas e os profissionais das outras áreas da comunicação social isto acontece com freqüência. A internet, livre como se mostra, está repleta de artigos levianos e superficiais sobre temas ligados à ética. Exceções existem, ainda bem!

Esses artigos estão recheados de ironia, preconceitos, ideologias, interesses duvidosos e senso comum da pior espécie. Faltam, geralmente, conhecimentos científicos e, por isso mesmo, compreensão do sentido profundo da questão ética. Questão complexa, diga-se de passagem, sobre a qual já se curvaram os mais importantes filósofos, de Pitágoras a Sócrates, de Platão a Kant, passando por Hegel, Marx, Nietzsche até estudiosos contemporâneos, como Habermas, Leonardo Boff, Eugênio Bucci, Francisco Karan, Marilena Chauí e Renato Gianini. Cito estes nomes para mostrar a amplitude e a diversidade de questões que a ética coloca para a sociedade.

A preocupação, neste caso, é defender a validade da ética e a possibilidade mesma de sua adoção, enquanto essência de um projeto humano justo, equânime e solidário. Neste ponto, é preciso destacar que é desnecessário retalhar a ética para contemplar ou atender as especificidades de cada atividade profissional. Estes desdobramentos rompem os limites da ética e invadem o campo deontológico. Trata-se, portanto, de outra discussão, tendo a ética como pano de fundo.

A defesa da ética – apesar das armadilhas e artimanhas do discurso como representação e construção simbólicas – significa, também, a certeza de que a linguagem é possível, passível de confiabilidade, enquanto fator de comunicação e humanização do ser humano. Assim, coloca-se na escrita, apesar de sua natureza ambígua, a esperança de contribuir para uma reflexão serena e honesta sobre a importância da ética para a sobrevivência da sociedade e a conquista de cidadania pelo homem contemporâneo.

O que falta no prato

Ao leitor, fica a responsabilidade de desvendar as contradições inerentes à teia da linguagem em geral e do discurso jornalístico em particular. O que se quer dizer é que, apesar das técnicas jornalísticas, apesar do ‘lead’, das condições de produção e veiculação das informações, ou melhor, por causa delas, não só é possível, como necessário – e o termo necessário, aqui, é utilizado no sentido metafísico, de não-condicionado, de obrigatoriedade essencial – envidar todo o esforço intelectual e espiritual para se agir eticamente. Isto, como ser humano e como profissional, juntos, em sua integridade ontológica e deontológica. Ser ético – e não ser moral, legal – não é uma possibilidade condicionada, mas condição essencial sine qua non para a construção e o desenvolvimento do sujeito social, que cada pessoa, jornalista ou não, encarna em sua vida cotidiana e concreta.

Contradições à parte, este é o caminho que se coloca à frente, atrás e no presente da vida de todo cidadão. Ser ético não é um favor, nem luxo, não é qualidade que se agrega. É da constituição mesma do ser humano. Ou se é assim ou se é apenas uma caricatura do que seria pessoa ou até mesmo profissional. Nem valem aqui as desculpas de que o mercado está cada vez mais competitivo ou que se corre o risco de perder o emprego ou que não dava para perder aquela oportunidade, coisas assim! O que está em jogo é a essencialidade de cada indivíduo, de cada profissional, no contexto de sua coletividade, de sua comunidade. Ética, como se vê, é inegociável. Ou se tem ou não se tem. Não há como ser meio ético aqui e ético por inteiro depois.

É verdade que a sociedade contemporânea está marcada pelo consumismo, pelo niilismo, pelo falso hedonismo, pelo pragmatismo, pelo utilitarismo, pelo mau gosto e, sobretudo pelo relativismo. A crise pós-moderna e o neoliberalismo nutrem-se destes ingredientes. E os casos de depressão, corrupção, suicídios, de abusos de toda ordem e de impunidade povoam, cada dia mais, as páginas e a programação das diversas mídias. Em relação à TV, nem se fala. Deve ser vista com olhos fechados, segundo recomenda o crítico Eugênio Bucci. Mas também é verdade que, exatamente por isto, o exercício ético exige mais sensibilidade, mais inteligência, mais esforço do espírito humano.

Não só em termos acadêmicos, mas na dimensão estritamente prática do cotidiano de cada pessoa, em todas as dimensões de suas vivências e convivências. Nem ético, nem poético nem estético. O homem de nossos dias está perdendo sua dimensão de verdade, de bondade e de beleza. Mas isto são valores muito antigos, clássicos, dirão outros. Os ‘espertos’, especialmente os que, irreflexivos, passam a vida toda correndo ‘atrás do prejuízo’, como erroneamente costuma-se dizer por aí. Claro que são valores clássicos, mas não é exatamente isto o que está faltando no prato do dia da maior parte dos indivíduos? Ou será que a maioria prefere mesmo é a violência, a exclusão social, a corrupção, a degradação moral e ambiental, o preconceito, a mentira, a manipulação, a alienação, a extorsão e a mais deslavada e ameaçadora barbárie? Se assim for…

Grandeza e beleza

Bem, neste ponto vale a pena recorrer ao professor Francisco José Karan, quando afirma em artigo sobre formação e ética jornalística: é importante que, dentro deste contexto, sejam aprofundados estudos sobre os limites para o exercício ético da atividade profissional no jornalismo, diagnosticando os principais problemas existentes hoje e situando, simultaneamente, as suas possibilidades. É preciso situar a potencialidade e os limites do exercício profissional. Ao mesmo tempo, mostrar as mudanças que a multimídia e as novas tecnologias em geral apontam para a área, para a nova mediação social da realidade que os profissionais terão como desafio fazer e os limites que se avizinham e aumentam.

O leitor há de convir: para que o jornalista garanta rigor e ética na busca, na apuração e na mediação das informação, não basta a multiplicação dos códigos por categoria e especificidade profissional. Fosse assim, o Código de Hamurabi, o Corão, os Dez Mandamentos e mais outras tantas formas prescritivas, de caráter moral e/ou legal, já teriam resolvido este problema fundamental da sociedade humana: o problema ético. Em vez disso multiplicam-se, a cada dia, no âmbito da própria mídia, os casos de desrespeito aos princípios éticos. São casos de calúnia, injúria, difamação, subserviência, traição, propinas e agressões a leitores, a jornalistas ou, infelizmente, entre os profissionais da imprensa. Em lugar de uma moral do dever (moral legalista, que se esmera em discriminar o proibido do permitido), apresenta-se uma ética da responsabilidade e da liberdade, como recomenda a professora Adélia Bezerra de Menezes, da USP, ao comentar o livro Moral, amor e humor (Igreja, sexo e sistema na roda-viva da discussão), do frei dominicano Carlos Josaphat. Um obra inteligente e generosa que trata de temas contundentes, como homossexualismo, contracepção, camisinhas/Aids, bioética, ética da mídia, engenharia genética, ética da economia e da política.

Não basta ser competente. É necessário ser ético. Assim, quanto mais ético for mais humano e, com certeza, terá maiores chances de ser respeitado como cidadão e como profissional de seu tempo. Não um barco à deriva. Sem destino, ou simplesmente cumprindo à risca o destino traçado de acordo com os interesses dos que detêm o poder, aliados intrínsecos dos que detêm o monopólio dos meios de comunicação. Nunca é demais lembrar que todo ser humano deve ir na direção do bem, em seu sentido mais profundo. E que só poderá realizar esta empresa, coletivamente, conhecendo e exercitando os valores éticos acumulados ao longo da história do ser humano.

E para reafirmar a grandeza, a beleza e a importância da ética pode-se dizer como Imanuel Kant, o mais destacado filósofo do iluminismo, que dedicou grande parte de seus estudos para lançar as bases de uma ética autônoma, nos limites da razão humana: ‘As estrelas no céu e a ética dentro de meu coração’, ou seja, dentro dele próprio. Poder-se-ia dizer: dentro do coração de cada homem, cuja principal missão é interferir e transformar o mundo, transformando-se a si mesmo.

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Formado em Filosofia e Jornalismo, coordenador do Curso de Jornalismo da PUC Minas Arcos.