Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Não mais que um papa santo

Alguém poderá dizer que não devo dar pitaco sobre o papa, assunto que apenas interessaria à cúpula da religião. Discordo. Acho que o papa é uma figura pública e, sendo assim, eu sou socialmente beneficiado ou prejudicado por algumas coisas que ele faça ou diga. A própria igreja católica, aliás, convalida meu direito, intrometendo-se assiduamente em assuntos civis, como leis de aborto, eutanásia, distribuição de contraceptivos etc.

Mais razão teria eu para dizer que esses temas, por serem civis, fogem à análise da igreja. Quando o país baixa uma norma, está legislando para todos os cidadãos, não apenas para católicos. O Estado é laico, tem atribuições próprias, nem sempre coincidentes com os dogmas religiosos. Sob o seu guarda-chuva devem estar acobertados os cidadãos de todos os credos e, até mesmo, aqueles que não professam credo algum. A meu ver, certa está a França ao proibir símbolos religiosos em repartições públicas. Ou se permite a todas as crenças ou a nenhuma. Sem essa de alguém ser ‘mais igual do que os outros’, para ficar na expressão de George Orwell.

No Brasil, terra dos absurdos, temos o feriado de Nossa Senhora Aparecida. E se um grupo de adoradores do diabo resolver pedir decretação de feriado para o dia de Lúcifer, como reagiria a Santa Madre Igreja? Voltaria a acender as fogueiras e a assar hereges e blasfemos?

Posto isso, vamos ao que me proponho: comentar sobre a figura pública do papa João Paulo II, recém-falecido. De antemão, quero dizer que a Igreja bem poderia canonizar Sua Santidade imediatamente, sem necessidade de qualquer milagre comprobatório (mesmo porque milagre é uma conseqüência sem causa, coisa impossível de ocorrer!). Karol Woityla era mesmo um santo, um homem puro, bem intencionado, exemplo de fidelidade, de vida regrada, de alguém que viveu em consonância com as suas (dele) verdades.

Mas, precisa ser dito que era um homem retrógrado. Sustou o avanço que João XXIII provocara na igreja. Em vez de queimar etapas, andar para frente, engatou uma marcha-ré lastimável. Amordaçou as mentes pensantes da igreja, condenando seus teólogos mais proeminentes ao ‘obsequioso silêncio’, como fez com Küng e com Leonardo Boff, entre outros. Democracia era coisa para se cobrar dos outros, não da igreja. Em seu nome passaram a falar apenas figuras retrógradas, os conservadores como Eugênio Salles e Vicente Scherer, que tinham ficado na orfandade com as reformas de João XXIII.

Praticou a política do stop-and-go com as outras religiões. Fazia chamamento aos anglicanos e à igreja ortodoxa não católica, defendendo a unidade, a volta ao leito comum. Quando os representantes estavam próximos demais, quase a ponto de discutir detalhes para um acordo aproximativo, soltava uma bomba de atraso, dizendo que a igreja católica era a única certa e válida, ‘a única capaz de levar a Deus’. E adeus, ecumenismo! Era como um tiro no pombal, com penas a voar para todos os lados.

Gesto difícil

A morte dos jovens pelo HIV não o sensibilizou, continuou desaconselhando camisinha até morrer. ‘Parem de fazer sexo, vão rezar!’ – vociferava o cardeal que falava em seu nome. Condoía-se com os miseráveis, mas colaborava com a proliferação da miséria, proibindo os meios contraceptivos. Não se deu conta de que esse negócio de sexo só para procriar é história da carochinha, como o celibato dos padres. Não tendo um meio legal e aceito de satisfazer suas necessidades sexuais, alguns presbíteros vão fazê-las de modo escuso, com os abomináveis desvios de conduta que a maior parte dos laicos não pratica.

Tentou impedir – e em parte conseguiu – o avanço da ciência em áreas vitais, como saúde. Tantas doenças que poderiam ser tratadas com células-tronco, e a igreja amaldiçoando cientistas. Por quê? Porque João Paulo II não sabia a diferença entre um ser vivo e um embrião. A depender do entendimento dele, todo espermatozóide é uma vida. Aquele esperma, congelado há anos nas clínicas, para ele era um ser vivo, pleno de direitos. Assim, quem praticar uma só masturbação é assassino de milhões de vidas porque, numa só ejaculação, libera-se uma quantidade de espermatozóides maior do que a quantidade de judeus cremados por Hitler. E as pessoas morrendo de câncer, de diabetes, do coração.

Karol viveu sob o tacão do comunismo soviético e sentiu na carne a tirania e a falta de liberdade. Por isso, se empenhou para a derrocada daquele tipo de regime, que vigorava também sobre a Polônia. Mas ele nunca viveu sob o consumismo americano, que, por dinheiro, vende a própria mãe e entrega! E o mundo, antes bipolar, agora tem um único pólo: o império USA a subjugar o mundo. Ele deve ter pensado nisso quando foi manifestamente contra a invasão do Iraque. Os americanos, arrogantes, fizeram uma banana para as posições da igreja e foram em frente. Exatamente como fez Stálin. Avisado de que a igreja não aprovava seus crimes, o títere soviético perguntou ao emissário da Santa Sé: ‘Quantas divisões de exército tem esse tal de papa?’

Woityla teve, inegavelmente, algumas condutas que o marcarão na história: passou seu pontificado pedindo perdão à humanidade. Contrito, reabilitou Galileu, desculpou-se com os judeus, pediu perdão pelas cruzadas, pela Santa Inquisição. Não eliminou todos os débitos, é verdade. Ainda faltaram os negros, pela escravidão, os índios do Novo Mundo, dizimados pelos católicos espanhóis, os bens materiais roubados da igreja ortodoxa russa etc. Mas, é um começo.

Precisamos anotar que foi ele o autor desse gesto difícil. Daqui a 50 anos, talvez um outro papa apareça para pedir perdão aos gays, estigmatizados pela igreja; às mulheres, cujo papel é hoje tão ridículo e subalterno como lhes fora ordenado por São Paulo, um discriminador inominável.

Puro e santo

Enganam-se os que pensam que a dimensão de João Paulo II possa ser aferida pela emoção que tomou conta das pessoas com sua doença e falecimento. A maior parte dessa comoção generalizada foi alimentada pelos meios de comunicação de massa, numa hora em que o mundo precisava de uma causa comum.

Seu verdadeiro julgamento histórico será feito mais adiante, quando a peneira do tempo fizer seu trabalho e deixar visível o que de proveitoso significou para a humanidade seu período, o terceiro mais longo de todos os vinte séculos que tem a igreja.

Graças ao mandato longevo, os que hoje choram sua morte já não lembram que, no início de seu pontificado – quando sua eminência parda ainda era o cardeal Marcinkus –, o Papa João Paulo II, secundado por Ronald Reagan, depositou flores num monumento em um cemitério de oficiais nazistas, na Alemanha. Nada obstante, como o tempo purga os erros, tenho para mim que sobrará a seu favor a figura de um homem bom, bem-intencionado, puro e santo. E esse reconhecimento já lhe concedo hoje, sem qualquer favor. Para um papa com 26 anos de reinado, convenhamos, é muito pouco.

******

Poeta e escritor