Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Nas brechas do unanimismo triunfalista

O tom unanimista e triunfalista da cobertura midiática das recentes ações bélicas no Rio mais esconde problemas do que revela soluções. Que autoridades proclamem ter entrado no ‘coração do tráfico’ já era esperado, embora não se justifique. Que parte da mídia repita o mote se justifica menos ainda. Convém lembrar que o Rio tem cerca de 1.000 favelas, das quais 200 estão sob o controle de grupos criminosos ligados à polícia, as milícias, e muitas outras continuam controladas por traficantes. Isso para não falar da Baixada Fluminense e de cidades do interior do estado onde a violência do tráfico já chegou. Notar, ainda, que os verdadeiros chefes de todas essas redes, os que movem grossos milhões, estão incólumes. Nem se sabe quem são esses situados, na escala hierárquica do comércio ilegal de drogas e armas, acima dos Marcinho VP, FB, Elias Maluco, Polegar, Pezão etc.

A leitura das páginas dos cadernos de cobertura de cidades dos dois jornais paulistas mais importantes, Folha de S.Paulo e Estado de S.Paulo, edições de segunda-feira (29/11), mostra que eles se curvaram, na sua escolha de prioridades e ênfases, à lógica do discurso dominante. Disso é exemplo o título de um infográfico que ocupa duas páginas do Estadão: ‘Uma operação histórica no coração do tráfico’, reproduzindo frase do secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, que ainda na sexta-feira (26) se mostrava refratário a comemorações, mas acabou arrastado pela correnteza, seja devido ao tom geral da mídia, seja em função dos interesses de seu chefe, o governador Sérgio Cabral Filho, ou pelas duas razões combinadas.

Nem tudo são bandeiras hasteadas

Mas a consciência de profissionais que trabalham no Estado e na Folha criou brechas. Reportou sinais de dificuldades atuais e futuras para as autoridades e os cidadãos do Rio de Janeiro.

Faço aqui uma seleção das passagens que se situam a contracorrente do triunfalismo.

No Estadão, a primeira brecha aparece na página 3 do caderno ‘Metrópole’, em texto assinado por Roberto Godoy do qual basta transcrever o título: ‘Ex-soldados de elite entre os procurados’.

Na página 6, um morador ‘considera que a ocupação é positiva, mas precisa vir acompanhada de outras ações do governo. ‘As coisas aqui só vão melhorar quanto trouxerem emprego, escolas, hospitais, esgoto… Agora não tem mais desculpa para não trazer nada’, afirmou’.

Na página 7, Patrícia Villalba comenta em tom neutro o ‘Show do Alemão’ (expressão minha) transmitido pela Globo e pela Record. A certa altura, uma crítica muito pertinente: ‘Se a transmissão ininterrupta [para a praça do Rio de Janeiro] se justificaria pela importância dos fatos, as novidades, entretanto, não foram suficientes para as horas a fio no ar. A toda hora reprisavam imagens do início da invasão’. Villalba fala também do ‘tom policialesco que é a marca’ dos telejornais da Record, presente no domingo (28).

Número de traficantes questionado

Em reportagem de Bruno Paes Manso sobre a ação mediadora de José Júnior, coordenador do AfroReggae, se lê: ‘Na avaliação de Júnior, houve um exagero ao se falar de 500 a 600 traficantes no local. ‘Boa parte é formada por adolescentes, sem passagem [pela polícia], ingênuos, que estão no crime mas que têm uma vida pela frente’’.

Em texto de análise de Wilson Tosta, sob título panglossiano (‘Ao encurralar o tráfico, Cabral aposta seu futuro’), aparece uma constatação óbvia que deveria estar na chamada da Primeira Página: ‘Uma rearticulação dos bandidos, como a ocorrida após a invasão de três anos atrás, pode frustrar as ambições do governador. A possibilidade existe: até o início da noite de ontem [28/11], os principais chefes do CV [Comando Vermelho] na região não tinham sido presos’.

Na página 8, o antropólogo, ex-secretário nacional de Segurança (governo Lula) e ex-coordenador de Segurança Pública do Rio (governo Garotinho), toma distância da mídia, com a qual sempre teve relacionamento estreito, provavelmente por ter percebido que silenciar diante do oba-oba era impossível. No final da entrevista que deu a Bruno Paes Manso, do Estadão, lê-se:

As questões essenciais estão passando ao largo?

Luiz Eduardo Soares‒ Mais que passar ao largo, está havendo uma inversão das prioridades. Nós, em geral, pensamos pelo filtro do bem e do mal, do maniqueísmo mais simples, os mocinhos como oponentes dos bandidos, que seriam os maus. Ocorre que, no dia a dia, ao longo desse processo, essa distinção não existe. O tráfico tem essa dimensão por causa do apoio da polícia, que domina comunidades por meio das milícias.’

A velha polícia de sempre

Na Folha, a manchete interna, na capa do caderno ‘Cotidiano’, é mais cautelosa. Põe entre aspas o ‘coração’ do tráfico no Rio. Já nessa primeira reportagem, de Rogério Pagnan, a ressalva, perto do final: ‘A PM realizou buscas de casa em casa. Moradores reclamavam de invasões de casas pela polícia, não autorizadas pelos donos da casa’.

Só na página 5, sob a assinatura de Plínio Fraga, entrevista do já mencionado José Júnior questiona a história oficial da onda de ataques terroristas que levou ao revide policial-militar da semana passada: ‘Acho que ele [Marcinho VP, líder do Comando Vermelho na cadeia] não autorizou esses ataques também. Foi coisa de algumas pessoas do tráfico, não de todas’. Essa informação abre ou deveria abrir caminho para um tipo de investigação sobre a gênese do processo diferente da versão oficial (reação à instalação, iniciada há dois anos, de Unidades de Polícia Pacificadora ‒ UPPs ‒ em algumas favelas).

Temor na Rocinha

Na página 6, sob o título ‘Moradores falam de excessos de policiais’, Fábia Prates descreve vários deles, que não reproduzo por desnecessário. Em outra reportagem, de Vinícius Queiroz Galvão, a possibilidade de problemas no horizonte: ‘Na Rocinha, moradores dizem viver um clima de apreensão com a possibilidade de a favela ser ocupada pela polícia e com os boatos de que Fabiano Atanazio da Silva, o FB, antigo chefe do tráfico na Vila Cruzeiro, tomada na semana passada, teria se refugiado por lá’.

Na página 7, a advertência: ‘Para especialistas, ocupação só adianta se for permanente’. A matéria é de Marcelo Bortoloti. Ele ouviu Ignácio Cano: ‘Há um pouco de ilusão em cravar uma bandeira como se estivesse tomando o quartel inimigo. O avanço depende da permanência do Estado ali’. O repórter ouviu também o ex-comandante da Polícia Militar do Rio de Janeiro, Ubiratan Ângelo, que descreve o cobertor curto ao dizer que ‘o atual efetivo da PM, de cerca de 40 mil homens, não é suficiente para uma ocupação nos moldes de uma UPP. Ele diz que, além da contratação de efetivo, é preciso melhorar as condições de trabalho dos policiais. ‘Um soldado no Rio ganha cerca de R$ 1.000. Em Brasília é quase quatro vezes mais. Não é possível melhorar a polícia assim’.

Outros domingos virão?

Finalmente, em comentário assinado pelo sociólogo Michel Misse, sob o título ‘Sem controlar a corrupção de policiais, o crime ainda continuará’, o dedo na ferida:

‘Muitos ainda se perguntam se foi um golpe mortal no tráfico do Rio. Penso que não. Nos últimos dois anos, só no Alemão, foram apreendidas 1.700 armas, efetuadas 1.200 prisões e 270 suspeitos mortos pela polícia. (…) A reprodução e fortalecimento do tráfico de varejo no Rio sempre dependeram da oferta de proteção de policiais corruptos às redes de facções. Como também do tráfico de armas, que não é operado por amadores nem pelos traficantes de drogas que abastecem os morros. Sem controlar a corrupção na polícia e sem interromper a chegada das armas, provavelmente seremos obrigados a perder outros domingos assistindo a operações policiais heroicas pela televisão’.