Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

No mundo da ficção hipócrita da Globo

Aqui estamos nós, de volta, salvos, de pé e de cabeça erguida, após uma enxurrada de cartas e e-mails de leitores, neste maravilhoso país multirracial, em que da mistura nasce a síntese da sabedoria universal, brancos, negros, orientais, índios e outros juntos e sem conflitos de cor e credo, pelo menos nada declarado até o presente momento, certo? Mas acho que vou colocar mais lenha nesta ‘fogueira’ que foi acesa aqui neste espaço, inclusive levando até a manifestação de representantes da comunidade negra junto à direção da Rede Globo de Televisão, para reivindicar alterações no texto da novela Da cor do pecado, por conta do conteúdo que alguns, como eu, consideramos altamente racista.

Devo salientar que, semelhante a um quebra-cabeça, cada uma das etnias que constituem o nosso planeta representa uma peça importantíssima na construção de um mundo perfeito, basta juntá-las. Mas precisam se combinar, para que uma complete a outra, se conhecer, para que possam respeitar-se mutuamente. Alguns dizem que quando houver paz entre os povos haverá liberdade e paz na Terra. Isso realmente seria desejável. Imaginem só, neste exato momento, em várias localidades do globo, povos estão brigando por algo totalmente fútil. Realmente, acreditar que existe supremacia de um povo sobre outro é uma idéia descabida, pois todos os seres humanos reúnem as mesmas capacidades; até podemos admitir que algumas civilizações estão mais atrasadas do que outras, mas isso se deve ao monopólio de informações; a educação faz o ser, não a cor.

Aqui no Brasil existe calor humano, a música é riquíssima, a literatura tem vasto vocabulário e são muitas as variações culturais. Como sintetizar tanta cultura? O primeiro passo seria conhecer os costumes de cada etnia e selecionar tudo o que pareça positivo, estudar e praticar suas idéias, levando sempre em consideração o respeito. Todos reúnem idéias positivas e negativas, de modo que, para haver conciliação, o que importa são as coisas ‘boas’. Faz-se necessário empreender uma autocrítica, não tomar partido de nenhuma delas, pois é preciso todas as crenças juntas para que todos os povos participem da síntese. É importante lembrar que aqui nós é que somos os estrangeiros; a América era dos índios e, portanto, racismo seria uma ignorância tão grande quanto é na África do Sul. O que queremos é um mundo livre, e talvez nosso exemplo de paz se reflita para o resto do mundo – uma nova consciência social e a solidariedade entre os povos.

Os pseudo-intelectuais brasileiros precisam fazer um exame de consciência e parar de, parcialmente, criticar as iniciativas dos movimentos negros, sem estarem a par do que vai na formulação teórica e prática desses movimentos sociais. Existe um descaso, senão um preconceito, por parte de certos ‘intelectuais’ em ler a produção negra, nacional? Pois bem, vá um negro com diploma universitário pedir emprego como balconista num shopping centers. Não conseguirá, não faz parte do padrão branco ou próximo do exigido. Para os que negam essa evidência e dizem que o país é mestiço e lindo, que fiquem com a lindeza, pois o negro tem ficado com as privações, as ofensas, os insultos. Não venham me dizer que o negro não é ofendido no cotidiano. Por favor, não insistam no modelo de que você ‘até’ tem um amigo negro, e que ele ‘até’ é bem tratado, que é como se fosse da família. No Brasil há pessoas que consideram o cachorro integrante direto da família. No entanto, ser da família não representa ter adquirido os direitos de eqüidade social que dignifica o ser humano e garante bem-estar social.

Mística cínica

Sim, os brancos pobres são sempre postos na discussão para minimizar os efeitos das desigualdades sociais por nós apontados. Eles também são parte da injustiça, são sócios naturais sob o sistema de dominação implantado neste país. Mas isto não invalida nem atenua a existência de um sistema de desprestígios e de intolerâncias sociais contra os descendentes de africanos.

O Brasil é o país do futuro e o despertar de uma nova aurora. Acreditamos que um veículo de comunicação como a Rede Globo, emissora de maior audiência entre brasileiros de todas as classes sociais, poderia mudar essa triste realidade que está enraizada em sua programação e que ao longo desses anos tem contribuído para a manutenção do racismo no país.

Especificamente sobre essa tal Da cor do pecado, verificamos que é racista, com total indiferença em relação aos 45% de negros da nossa população. O fato de a telenovela colocar a personagem negra numa condição de integridade, de honestidade, de caráter, como é salientado por alguns leitores que utilizam este argumento para negar-lhe o racismo, não exclui a presença do preconceito. Da cor do pecado tem ajudado a reforçar comportamentos racistas que vemos na sociedade no momento em que permite que a vilã Bárbara agrida Preta com adjetivos pejorativos cada vez que as duas contracenam.

E mais: como se não bastasse o tal dramalhão exibido às 19h, a Globo, não satisfeita com o processo de inferiorização do negro em sua programação, resolveu agora, em sua novela das 21h, expor dois bebês negros ao ridículo. Essas crianças estão pagando o maior mico na tal Celebridade. Deveriam ter nascido brancas, louras e de olhos azuis, como o texto sugere.

Ser negro no Brasil significa pertencer a uma parcela do tecido social classificada como inferior, em todos os aspectos culturais e sociais, iniciando-se na remuneração da mão-de-obra do trabalho do negro, em comparação à do branco, conforme comprovado em pesquisas cientificas. A mística de que não existe racismo no país é tão demagógica, cínica, sobretudo desumana, que chega às raias da injustiça social de forma camuflada, porém perceptível a qualquer um do povo que sofra no seu dia-a-dia as desigualdades sociais em todos os ramos de atividade.

Na contramão da história

O movimento negro no Brasil tem conseguido objetivar conquistas no combate às diferenças de oportunidade, notadamente aquelas referentes ao campo de atuação do negro na sociedade de consumo em que vive. A Globo, que tem avançado muito, como formadora de opinião que é, deveria abraçar a causa de todos aqueles que se sentem discriminados e excluídos. Que os veículos, principalmente os da comunicação, adotem iniciativas visando dar oportunidades aos artistas negros em condições de igualdade aos brancos, sem que para isso sejam compelidos judicialmente – em cumprimento à determinação da lei de combate ao racismo–, bem como as que se referem à discriminação social, e, finalmente, àquelas que asseguram direitos constitucionais para o ingresso de negros nas escolas e universidades do país.

Este artigo não tem o objetivo de gerar polêmica inconsistente; o que pretendemos é tão somente questionar o forte aparato segregacionista existente no seio da sociedade brasileira, essa mesma sociedade que sonha um dia figurar entre as nações desenvolvidas, o que provavelmente não acontecerá até que os negros sejam elevados à categoria de verdadeiros cidadãos. Obviamente que serão respeitadas as idéias que contrapõem nossas afirmações, porque vivemos num país democrático, e este é o preço que pagamos pela liberdade de expressão e de opinião.

No entanto, reafirmamos as nossas percepções críticas em relação à Rede Globo de Televisão e torcemos para que ela reveja sua prática e, de fato, contribua para formar uma sociedade baseada em princípios igualitários, e que, sobretudo, não sirva de instrumento reforçador de atitudes e comportamentos que distanciem esse ideal de igualdade entre as etnias. Não podemos, em pleno século 21, na era da cibernética e da provável ida do homem a Marte, calar diante de uma atitude que coloca a Globo na contramão da história. Um axé para todos.

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Jornalista, professor de Jornalismo, rádio e TV e doutorando em Ciências Políticas e Administração Pública pela American World University of Iowa, Iowa City, EUA