Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Novos estabelecidos, novos outsiders?

Os cursos universitários de Jornalismo têm mais de meio século de existência, mas foi só a partir do decreto-lei 972 de 1969 que a profissão se viu regulamentada e seu exercício facultado apenas àqueles que apresentassem diploma da profissão. Para muitos contrários a tal medida, essa decisão – engendrada nos salões acarpetados e plúmbeos do regime militar – tinha como objetivo afastar da profissão intelectuais de esquerda que porventura desejassem se expressar em algum meio de comunicação. Por mais excludente que pudesse ser o decreto-lei, ele acabou por formalizar, por assim dizer, uma categoria profissional historicamente heterogênea.

O decreto de 1969 também possibilitou, por caminhos inicialmente tortuosos, a valorização do curso de Jornalismo e os estudos (tanto na graduação quanto na pós-graduação) nesse campo das ciências sociais aplicadas – como é categorizado juntos às agências de fomento à pesquisa. Dessa forma, pôde-se sedimentar um campo que nasceu multi e interdisciplinar e que se manteve assim ao longo de décadas por necessidade profissional e exigência acadêmica. Este artigo pretende discutir justamente o quanto esses dois campos – o profissional e o acadêmico – se tangenciam e se tocam e como o fazer jornalístico, na prática, é devedor desses parâmetros, não sendo, como podem acreditar os defensores da queda do diploma, atividade eminentemente empírica, pautada apenas na experimentação cotidiana, e que pode ser praticada por outros profissionais eivados de boas idéias. Ou que, como afirmou o ministro Carlos Ayres Britto em seu voto, pode ser exercido ‘pelos que optam por se profissionalizar na carreira ou por aqueles que apenas têm `intimidade com a palavra´ ou `olho clínico´’. Pensar de acordo com Ayres Brito pode ser um caminho arriscado para se criar uma nova categorização para os profissionais da área, divididos – numa paráfrase a Elias e Scotson – numa nova vertente de ‘estabelecidos’ e ‘outsiders‘, sem que possamos distinguir claramente quem seria um ou quem seria o outro.

Não apenas um ‘olhar clínico’

Não foi dito diretamente, mas muito da decisão do Supremo Tribunal Federal se baseou na utilização cada vez mais freqüente das chamadas novas mídias – meios eletrônicos como internet, blogs, twitter e mesmo imagens enviadas por celulares – como forma de transmitir algum tipo de informação. Assistiu-se recentemente, durante as manifestações que eclodiram no Irã após as eleições presidenciais – como esses meios podem ter um forte efeito junto à sociedade e como conseguem driblar, por assim dizer, uma possibilidade de censura oficial. As novas mídias são acessíveis a qualquer um com conhecimento rudimentar de informática e alguma intenção na cabeça – seja ela boa ou má. Mas seria um equívoco confundir seu teor com jornalismo – pelo menos o jornalismo sério que se pretende fazer na chamada grande imprensa. É como salientou Gay Talese, um dos criadores do new journalism, em entrevista à revista Veja (edição2117, 17 de junho de 2009):

‘O apelo da internet é oferecer informação rápida. A internet é o fast food da informação. É feita para quem quer atalho, poupar tempo, conclusões rápidas, prontas e empacotadas. Quem se informa pela internet, de modo assim estreito e limitado, pode ser muito bem sucedido, ganhar muito dinheiro, mas não terá uma visão ampla do mundo. Para piorar, surgiram esses blogs com blogueiros desqualificados, que apenas divulgam fofoca. (…) É gente que não apura nada, só faz barulho.’

Talese toca em dois pontos fulcrais que envolvem o fazer jornalístico: a necessidade da apuração constante, sistemática e cuidadosa de um fato e a transmissão de informação (e também de conhecimento) resultante dessa apuração. Não apenas a notícia, o fato, mas uma história narrada, encadeada e apresentada em todas as suas dimensões. Em seu paroxismo, a reportagem, a essência do fazer jornalístico e talvez a interpretação mais extrema da mediação da sociedade, tarefa precípua do jornalista. Essa mediação e a conseqüente interpretação do fato narrado exigem sensibilidade e técnica jornalística (que é apresentada nos bancos universitários em várias disciplinas específicas e desenvolvida e aperfeiçoada na prática profissional), e também um olhar apurado sobre o objeto – mas não apenas um ‘olhar clínico’, como quis aludir de forma simplista o ministro Ayres Brito.

O mito da objetividade

A título de comparação, poderíamos dizer que a notícia pode ser informação pura, seca, desprovida de contornos ou entrechos – que caberia na formatação de um lead e que é replicada pela internet, principalmente. Já a reportagem seria a informação com conhecimento que, como afirma LAGE, é um estilo ‘menos rígido do que a notícia: varia com o veículo, o público, o assunto. Podem-se dispor as informações por ordem decrescente de importância, mas também narrar a história, como um conto ou fragmento de romance’ (1999, p.47). Nesse ponto, a reportagem poderia se aproximar daquilo proposto por Propp, contendo vários elementos da narrativa literária ou ficcional – mas tratando da realidade. Esse tipo de narrativa jornalística quando elevado ao seu grau mais extremo chama-se ‘grande reportagem’ e tem em sua fundamentação o Jornalismo Literário – ou new journalism, como foi inicialmente batizado.

Essa prática jornalística, no entanto, tem perdido cada vez mais espaço com as formas rápidas e imediatistas de se transmitir uma informação ou uma notícia. A reportagem pode ser vista ainda como uma fuga da cobertura tradicional da imprensa, que busca novas formas de linguagem para a reportagem, que prevê um profundo entendimento daquilo que o ser humano representa para a atualidade, nas esferas comuns muitas vezes excluídas da cobertura da mídia. ‘De certa forma a ação coletiva da grande reportagem ganha uma sedução quando quem a protagoniza são pessoas comuns que vivem a luta do cotidiano’ (MEDINA, 2003, p.42). Na imprensa escrita brasileira, atualmente, talvez apenas a revista piauí invista consistentemente na prática da narrativa de não-ficção ou na grande reportagem, que ‘dê tempo aos repórteres para apurar e escrever’, como afirmou seu criador, o cineasta João Moreira Salles, quando do lançamento da revista, em outubro de 2006.

Existe no meio jornalístico – e também fora dele, como um caso incômodo de senso comum – a idéia de que o profissional de imprensa deve pautar-se sempre pela objetividade e isenção. Essa idéia é correta na teoria, mas deve ser constantemente praticada para que se torne real. Isso se dá porque o jornalista, como qualquer ser humano, é eivado de subjetividade e opiniões – e mesmo quando apura uma matéria, um fato, essa subjetividade pode aflorar, desde o momento em que ele escolhe o personagem X ou Y para entrevistar, quando edita as falas que coletou e quando escolhe a angulação que dará a seu texto. Este texto, sim, pode e deve ser objetivo, mas estará nutrido por toda a história pessoal de seu autor e por suas experiências. É desse aspecto subjetivo que falamos aqui e que não deve ser descartado quando se pensa no fazer jornalístico – ele é, por outro lado, balizado pela técnica e pelo conhecimento profissionais, para que não solape nem o texto nem a tão decantada isenção jornalística. Fica uma questão, que não necessariamente precisa ser respondida nesse artigo, mas que serve como um convite à reflexão: será que profissionais de outras áreas que possam enveredar pelo caminho jornalístico teriam esse discernimento acerca da dicotomia objetividade x subjetividade?

‘Força de verdade’

Outro aspecto que precisamos levar em consideração no jornalismo contemporâneo é quanto ao fato relatado, à reportagem apurada dentro do mundo sensível e possível. Parece óbvio pensar que o jornalista e os jornais não retratam o mundo e toda a sua realidade, mas sim, retratam um recorte de mundo e de realidade . É esse recorte que é oferecido ao público – o que pode conter riscos que se devem evitar. É como afirma Barros Filho:

‘A realidade que conhecemos resulta da edição de mundo. Essa parte construída, reelaborada pelos `produtores´ dos meios (empresários, profissionais de mídia, donos de aparatos tecnológicos, entre outros), pode ser, muitas vezes, tão pequena e tão plena de interpretações implícitas ou explícitas que se distancia extensamente do fato `narrado´, procurando atender aos objetivos tanto dos que detêm os meios de comunicação como, no afã de agradar ao público, atendê-lo no que lhe é caro: o espetáculo e a satisfação dos estereótipos morais ultrapassados. Esse processo metonímico – a parte pelo todo – acaba tendo a força de `verdade´, da `objetividade´, da totalidade. E desse modo esse `mundo todo´ será reproduzido e se incorporará à história vivida’ (BARROS FILHO, 2008, p. 7).

Desde muito cedo, o jornalista em formação é – poderíamos usar a expressão – ‘doutrinado’ a conter arroubos e deitar sobre o fato apurado uma visão isenta e eqüidistante, procurando sempre ver todos os ângulos de seu tema. Ele é o tradutor das várias vozes dos atores sociais que compõem uma comunidade e deve, na medida do possível, homogeneizá-las para que sejam compreensíveis aos vários espectros de receptores. Dessa forma, deve-se cuidar quanto ao que Barros Filho chamou de ‘força de verdade’ – o mundo jornalístico apresentado ao grande público é um outro retrato de mundo, o mundo possível (e passível) de ser divulgado e noticiado.

Uma categorização sócio-profissional

Não seria presunção acreditar que esse mundo possível existe para o grande público a partir da visão do jornalista e dos veículos nos quais eles trabalham. E se esse profissional tem determinado papel social – para o bem e para o mal, consideremos assim –, há uma constante cobrança da sociedade pairando sobre ele. Esse profissional é visto, no senso comum da sociedade, não como indivíduo, mas sim como uma entidade – a ‘imprensa’ ou a ‘mídia’. Se é divulgado um dado equivocado ou publicado um erro, não foi um jornalista que se equivocou ou errou: foi a ‘imprensa’. Claro que esse tipo de simplismo atinge também outras categorias profissionais, mas com relação à imprensa essa colocação parece ser contumaz – e muitas vezes até incentivada. O presidente Lula, em entrevista à revista piauí (edição 28, janeiro de 2009), disse que a imprensa lhe dava ‘azia’ e que não lia jornais. A explicação: ‘Um homem que conversa com o tanto de pessoas que eu converso por dia deve ter uns trinta jornais na cabeça.’ Nesse ponto talvez caiba um questionamento simbólico: se já há tanta cobrança por parte de todas as hostes da sociedade sobre uma determinada categoria profissional, como ela ficará agora que seu diploma não é mais necessário, abrindo-se espaço para que profissionais de outras áreas a exerçam? Pode-se estar constituindo-se, assim, uma nova qualificação, na qual são contrapostos ‘jornalistas estabelecidos’ (aqueles diplomados) e ‘jornalistas outsiders‘, aqueles que vêm de outra formação profissional. Reflitamos a respeito disso.

Segundo Elias e Scotson, a distinção entre estabelecidos e outsiders – a partir do estudo e descrição de uma comunidade de periferia urbana relacionando um grupo estabelecido desde longa data e um grupo mais novo de residente – se dava quando o ‘grupo estabelecido cerrava fileiras contra eles [os outsiders] e os estigmatizava, de maneira geral, como pessoas de menor valor humano’ (2000, p.19). Pela análise dos autores, os integrantes do primeiro grupo consideravam que faltava ao segundo grupo o ‘carisma grupal distintivo que o grupo dominante atribuía a si mesmo’ (op.cit.).

A partir desse raciocínio, e procurando fazer uma ilação com a possível nova situação profissional que se apresenta aos jornalistas com a não-obrigatoriedade do diploma, poderíamos dizer que tal situação pode vir a criar uma categorização sócio-profissional semelhante àquela aludida por Elias e Scotson: um grupo – o de jornalistas formados ou em processo de formação acadêmica e profissional – cerra fileiras contra um outro grupo, mais novo dentro do quadro profissional, o de possíveis jornalistas sem a ‘distinção’ do diploma específico, mas sim, com algum outro diploma de curso superior ou mesmo sem ele.

Tendência para o crescimento e enriquecimento

A reação que partiu dos ‘estabelecidos’ na profissão de jornalista quando da decisão do Supremo Tribunal Federal pode muito se assemelhar àquela de estabelecidos em uma comunidade, como referendaram os autores: indignação e intenção de diminuir a capacidade do outro (possível) recém-chegado a esse mercado profissional, por natureza excludente e egocêntrico. Passou-se a discutir não mais apenas a decisão do STF, mas sim a capacidade intelectual e profissional daqueles que porventura quisessem exercer a profissão de jornalista sem terem, necessariamente, freqüentado os bancos universitários de uma escola de Comunicação Social.

Como já pudemos observar ao longo deste artigo, a formação profissional e acadêmica para um jornalista – assim como para outras categorias – é essencial, não pelo que ela possa oferecer de titulação, mas sim, pelo ensino de práticas, técnicas e teorias acerca do fazer jornalístico que são inerentes à profissão e que não devem (ou não podem) ser simplesmente apreendidas de forma empírica ou cotidiana. Acredita-se que haja a necessidade de uma base bem sedimentada para tal prática. Isso, no entanto, não exclui que outros profissionais possam – como aludiu a decisão do STF – expor suas idéias, opiniões e conhecimentos específicos em um texto publicado em jornal ou revista ou divulgado por algum meio de comunicação eletrônico. Mas a isso não poderíamos chamar ‘jornalismo’ in totum, posto que na categorização jornalística estaria mais próximo de uma coluna – artigo, ensaio –, com teor opinativo e não necessariamente inserido nos padrões de reportagens e apuração. Há distinções nesses fazeres, o que não foi levado em conta até agora – pelo menos não seriamente – nessa discussão. A liberdade de expressão está garantida. O que não parece estar é a discussão quanto à prática profissional formal e o ônus e o bônus inerentes a ela.

Por isso esse risco de categorização social entre ‘estabelecidos’ e ‘outsiders’. Para os que defendem a decisão do STF, atribui-se a noção – não de toda equivocada – que a formação do jornalista é generalista e que um profissional de outra área se incumbiria melhor de determinada tarefa mais próxima de sua área de conhecimento. Esquecem-se, contudo, que a função do jornalista não é exatamente saber sobre o que está escrevendo, mas sim, saber perguntar a especialista sobre o tema abordado e bem escrever e explicar a respeito dele. Mas nesse contexto, o jornalista formado – como categorias – pode acabar por se sentir ameaçado, e busca soluções, como de fato aconteceu num primeiro momento.

O grupo estabelecido tende a atribuir ao conjunto do grupo outsider as características ‘ruins’ de sua porção ‘pior’ – de sua minoria anômica. Em contraste, a auto-imagem do grupo estabelecido tende a se modelar em seu setor exemplar, mais ‘nômico’ ou normativo – na minoria dos ‘melhores’ membros. Essa distorção pars pro toto, em direções opostas, faculta ao grupo estabelecido provar suas afirmações a si mesmo e aos outros; há sempre algum fato para provar que o próprio grupo é ‘bom’ e que o outro é ‘ruim’ (ELIAS;SCOTSON. 2000, p. 23).

Esse posicionamento, contudo, pode eclipsar um outra discussão, mais pertinente: a qualidade dos cursos de comunicação no País e a demanda por especialização dos profissionais formados por esses cursos. A título de reflexão, podemos acreditar que os cursos de jornalismo apenas na cidade de São Paulo coloquem no mercado cerca de 500 novos profissionais por semestre. Parece óbvio acreditar que esse mesmo mercado não tem condições de assimilar tal número de novos profissionais, muitos deles tendo a apresentar como qualificação apenas o diploma. Com a quebra da necessidade da formação acadêmica e do próprio diploma, o mercado se verá ainda mais afetado pela concorrência profissional de outros – os, como apresentamos, outsiders. Assim, antes de uma defesa corporativista – o que parece ter se dar nesse momento e cuja intenção deste texto é oposta – os jornalistas ‘estabelecidos’ (novos e já veteranos) poderiam pensar, sim, em uma nova reclassificação de sua carreira profissional e em um novo dimensionamento, procurando inverter a mão da situação que se configura atual. Ou seja, ao invés da segregação e do maniqueísmo entre ‘bons’ e ‘ruins’, qualificados e não-qualificados, deveria haver uma tendência para o crescimento e enriquecimento profissional. É sabido que o mercado, como afirma o senso comum, cuida e acolhe os bons profissionais. Mas esse mercado também precisa que o ajudem nessa seleção natural das espécies bem qualificadas.

Conclusão

Este artigo, como afirmamos há pouco, não tem a intenção de ser corporativista e de defender uma categoria profissional. Sua intenção foi a de procurar lançar luzes sobre uma discussão que ainda se apresenta tíbia e por demais maniqueísta e estigmatizada. Por mais que o ministro Gilmar Mendes acredite que o fazer jornalístico e como o fazer culinário – que se aprende na prática e na estética da tentativa-erro –, a discussão é bem distinta. E deve ser levada a contento por todas as partes envolvidas. O risco de uma categorização entre ‘estabelecidos’ e ‘outsiders’ é real, mas não pode ser fomentada, por mais que pareça já estar em andamento. Esse é um momento seminal para que o jornalista profissional reflita sobre sua própria carreira e formação – sem ter que procurar no outro o vilão que pode lhe roubar o quinhão de poder que ele acredita sustentar.

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Jornalista e escritor, mestre e doutorando em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da USP. É professor do Centro Universitário FIEO e diretor de redação do Jornal da USP