Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O ‘aconselhamento’ da mídia

A proposta de criação do Conselho Federal de Jornalismo (CFJ) provocou grande polêmica ao ganhar espaço nos jornais. No entanto, o noticiário está deixando de informar os pontos necessários e o objetivo pretendido com essa medida por meio de um debate aberto e esclarecedor. A postura das matérias demonstra que alguns veículos estão atuando como ‘conselheiros’ ao fragmentarem os pontos do projeto e concentrarem a contextualização do tema em fontes parciais e em exemplos que não se assemelham a realidade brasileira.

Ao acompanhar o noticiário sobre a proposta do CFJ em alguns dos principais jornais do país – como O Estado de S.Paulo‘, O Globo e Folha de S.Paulo – o leitor pode ter a sensação de que o governo federal está criando um mecanismo de censura típico dos governos autoritários e centralizadores e não que existe uma proposta, desenvolvida pela própria categoria, de regulamentar a profissão de jornalista e criar uma entidade reguladora como ocorre em outras áreas – a exemplo da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Crea (Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia), CRM (Conselho Regional de Medicina), entre outros.

Para reforçar essa visão, o material divulgado pela Folha e pelo Globo na sexta-feira (6/8), um dia após o texto do projeto de lei ser publicado no Diário Oficial da União, destaca pontos específicos do projeto como sendo a diretriz básica e potencializa a interpretação de que a proposta surgiu nos corredores do Palácio do Planalto, e não de uma criação da própria categoria por meio da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj).

‘A partir da aprovação da lei o jornalista terá de pagar à entidade para poder trabalhar’, expressa a linha-fina do texto publicado pelo Globo (pág, 16, Primeiro Caderno). ‘Lula quer conselho para fiscalizar jornalismo’ (http://www1.folha.uol.com.br/
folha/brasil/ult96u63040.shtml) e ‘Presidente da ABI se diz contra criação de órgão’ (http://www1.folha.uol.com.br/folha/
brasil/ult96u63041.shtml), anunciam as manchetes da Folha Online.

O material publicado pelo Estado de S.Paulo‘ foi mais objetivo a respeito do tema, como pode ser observado pelo título, publicado no mesmo dia que os concorrentes: ‘Lula envia projeto do Conselho Federal de Jornalismo’ (http://www.estadao.com.br/educando/
noticias/2004/ago/06/31.htm).

Informação omitida

Foi nas edições do fim de semana (7-8/8), porém, que o caráter de campanha da Folha e do Globo tornaram-se mais explícitos. No sábado, o jornal carioca publicou dois textos sobre o tema. O primeiro, com o título ‘ANJ analisa proposta’, informa em sua linha-fina que a ‘Entidade defende liberdade de expressão’ (pág. 13, Primeiro Caderno). Na matéria seguinte, o título reproduziu o trecho de uma frase atribuída ao senador Cristovam Buarque (PT-DF), que foi divulgada em seu blog (http://www.cristovam.com.br/blog/) –’Pode ser um passo para a tragédia da censura’ –, que foi complementada pela seguinte linha-fina: ‘Ex-ministro petista, ABI e especialistas criticam proposta do governo de criação do Conselho Federal de Jornalismo’ (pág. 13, Primeiro Caderno).

Já a Folha de S. Paulo retomou o processo de vinculação da proposta com os membros do governo federal. No sábado, a Folha Online publicou ‘Gushiken ‘quer proteger a sociedade’ com conselho de jornalismo’ (http://www1.folha.uol.com.br/
folha/brasil/ult96u63068.shtml
) e ‘Conselho de jornalismo vai coibir excessos, diz Berzoini’ (http://www1.folha.uol.com.br/folha/
brasil/ult96u63067.shtml)
. Em outra frente, o jornal paulista demonstra a desarticulação da categoria com o texto intitulado ‘Fenaj apóia conselho de jornalismo; ABI veta’ (http://www1.folha.uol.com.br/folha/
brasil/ult96u63069.shtml).

Mesmo contando com mais dados sobre a proposta, os textos mantiveram o discurso de caráter negativista sobre o projeto, deixando a informação objetiva, a qual o leitor tem direito, em segundo plano.

Na edição de domingo (8/8) a Folha voltou a reforçar a tese de perseguição e de que o projeto de criação do Conselho Federal de Jornalismo pode ser uma ferramenta de censura ao publicar os textos ‘Entidades dos EUA condenam conselho de jornalismo no país’ (http://www1.folha.uol.com.br/folha/
brasil/ult96u63088.shtml) e ‘Profissão não pode ter nenhuma forma de pressão, diz promotor’ (http://www1.folha.uol.com.br/folha/
brasil/ult96u63089.shtml)
. No entanto, ao contrário dos textos anteriores, nos quais, na contextualização das matérias, o jornal paulista recordou as declarações de ministros e membros do governo descontentes com a atuação crítica da imprensa e o lamentável ‘caso Larry Rohter’, em nenhum momento a Folha citou ou fez qualquer referência aos não menos lamentáveis episódios envolvendo a mídia americana como no ‘caso Jayson Blair’ e as fraudes no USA Today.

A reportagem também deixou de informar que, nos Estados Unidos, o exercício do jornalismo não exige nenhum tipo de formação específica, ou seja, é uma área sem qualquer regulamentação. Diante disso, como considerar de forma isenta e tomar como referência a posição de uma entidade americana, quando a situação da mídia nos EUA passa por um momento de descrédito.

Da mesma forma, ao citar artigo 220 da Carta Magna, que trata da comunicação social, como gancho para repercutir a possível inconstitucionalidade da proposta, a Folha não faz qualquer referência ou citação ao decreto-lei nº 972/69, que foi regulamentado em 1974, e que determina a exigência do diploma de bacharel em jornalismo para o exercício da profissão. E deixa de informar ao leitor que o Grupo Folha é contrário a essa legislação, como é citado na página 113-114 do Manual de Redação da Folha de S. Paulo (2001), o que neste contexto é um dado relevante e um sinal de transparência diante de uma discussão política.

Íntegra do projeto

Os leitores mais familiarizados com o tema que realizarem uma pesquisa rápida pela internet ou por arquivos de jornais poderão notar que os veículos deixaram de consultar os seus próprios bancos de dados, e que demonstraram um erro de apuração em suas matérias ao atribuir o projeto ao governo federal.

Na edição de 7 de abril último, O Estado de S.Paulo publicou matéria sobre o tema com o título: ‘Fenaj quer criação de Conselho Federal de Jornalismo’ (http://www.estadao.com.br/
agestado/noticias/2004/abr/07/74.htm). Em uma linha mais crítica, a Folha de S. Paulo‘ publicou em 8 de abril matéria com o título ‘Ministro cobra ‘agenda positiva’ da mídia’ (http://www1.folha.uol.com.br/
folha/brasil/ult96u59909.shtml), em que citou as declarações críticas do ministro-chefe da Secretaria de Comunicação de Governo, Luiz Gushiken, e relatou, assim como O Estado de S.Paulo‘, que a ‘Fenaj pediu a Lula que enviasse ao Congresso o projeto que cria um conselho federal e conselhos regionais de jornalismo, assunto em discussão no Ministério do Trabalho’.

Da mesma forma, a Folha e O Globo deixaram de destacar que o projeto de lei da criação do Conselho Federal de Jornalismo não é contra a liberdade de imprensa, como ficou caracterizado, nem que está previsto que o conselho, em caso de aprovação, será formado por profissionais regularmente registrados e não por membros do governo ou de qualquer órgão público – ou seja, será uma entidade independente.

O próprio texto do projeto de lei cita essa preocupação nos artigos 1º, parágrafo 1º (‘O CFJ e o CRJ têm como atribuição orientar, disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão de jornalista e da atividade de jornalismo, zelar pela fiel observância dos princípios de ética e disciplina da classe em todo o território nacional, bem assim pugnar pelo direito à livre informação plural e pelo aperfeiçoamento do jornalismo’) e no artigo 5º (‘No exercício da profissão, o jornalista deve pautar sua conduta pelos parâmetros definidos no Código de Ética e Disciplina, mantendo independência em qualquer circunstância’).

De acordo com o texto do projeto de lei, as circunstâncias cabíveis de punição são direcionadas às transgressões éticas e legais, que podem e devem ser observadas em qualquer profissão, como ‘exercer a profissão quando impedido de fazê-lo, ou facilitar, por qualquer meio, o seu exercício aos não inscritos ou impedidos’; ‘solicitar ou receber de cliente qualquer favor em troca de concessões ilícitas’; ‘praticar, no exercício da atividade profissional, ato que a lei defina como crime ou contravenção’; entre outras obrigações administrativas como, por exemplo, o pagamento de anuidade.

Diante disso, o ombudsman da Folha, Marcelo Beraba, observou em sua critica diária (http://www1.folha.uol.com.br/
folha/ombudsman/), divulgada em 6/8, que o veículo ‘teria sido mais informativo se o jornal tivesse feito uma arte com os principais pontos do projeto, e não a memória dos atritos com o governo’. Além de sugerir que ‘no caso de uma continuação com a repercussão sobre o CFJ, que o jornal forneça o endereço eletrônico onde possa se ler a íntegra do projeto’ e ‘ que o jornal, depois de conhecer melhor o projeto, deveria se posicionar com editorial’.

Transparente e democrático

Deixando de lado qualquer posição ideológica contra ou a favor da proposta de criação de um Conselho Federal de Jornalismo, é preciso discutir os propósitos, objetivos, ferramentas e critérios que pretendemos consolidar para a manutenção de um jornalismo sério, transparente, independente e responsável.

Desse episódio, mais que repensar sobre o tema, devemos refletir sobre a superficialidade de nosso noticiário em determinados momentos e sobre a responsabilidade ética e moral dos profissionais e das empresas de comunicação e jornalismo, que precisam esclarecer os temas em discussão e não deixar dúvidas sobre os fatos relatados.

Em uma sociedade democrática não pode ser admitida nenhuma censura ou restrição de qualquer tipo, espécie ou grau. No entanto, é preciso ter claro as regras e leis que norteiam os direitos e deveres de seus membros.

Dessa forma, somente por meio de um debate amplo, transparente e coerente será possível determinar se o texto do projeto de lei proposto pela da Fenaj, que sugere a criação do Conselho Federal de Jornalismo, possui falhas, omissões ou excessos. Deve ser, também, por meio de um processo transparente e democrático que devemos corrigir as possíveis falhas no texto do projeto de lei, na regulamentação da profissão, no exercício do jornalismo, na formação dos estudantes dos cursos de comunicação e, até mesmo, na divulgação dos fatos de qualquer natureza.

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Jornalista, professor no curso de jornalismo do Imesb (Instituto Municipal de Ensino Superior de Bebedouro) e da Unaerp (Universidade de Ribeirão Preto)