Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

O belicista e submisso Gandhi

Já ouvi de pessoas, que em regra seriam tidas como dotadas de bom senso, que não se deveria contradizer a Veja, sob pena de se dar força aos ‘inimigos de tudo o que bons brasileiros consideram correto’. Dentre estas pessoas, não é pequeno o número das que admiram Gandhi. Entretanto, diante da matéria de Duda Teixeira intitulada ‘As guerras e os amores de Gandhi, publicada na edição nº 2215, datada de 4 de maio de 2011, tais pessoas entrariam num tremendo dilema. Lê-se na página 119: ‘O mito construído ao redor de Gandhi não fica de pé após uma análise mais cuidadosa de sua vida. O indiano estava longe de ser um pacifista irredutível – em parte por ter participado diretamente de três esforços de guerra, em parte por sua obsessão em relacionar sexo com violência. […] Para quem ficou conhecido como um opositor do imperialismo, Gandhi foi notavelmente submisso aos interesses ingleses. Mais do que isso, ele fez de tudo para ser reconhecido como um deles. Em 1918, um ano antes de ganhar o epíteto Mahatma (‘Grande Alma’, em sânscrito), Gandhi iniciou uma peregrinação por povoados rurais no distrito de Kheda, centro da Índia. A missão era árdua: recrutar vinte soldados em cada uma das 600 vilas da região para morrer pelo império inglês na I Guerra Mundial, totalizando 12.000 combatentes. `Está claro que aquele que perde o poder de matar não pode praticar a não-violência´, argumentava o líder espiritual em seus discursos e panfletos.’ Na página 120: ‘Defender a causa do império era para ele o caminho mais curto para o swaraj – termo usado por Gandhi para designar quatro idéias: a união entre muçulmanos e hindus, o fim da casta dos miseráveis intocáveis, a não violência como meio de vida e a fabricação artesanal de tecidos.’ A seguir, vem a narrativa acerca do Gandhi combatente: ‘Na África do Sul, onde trabalhava como advogado, ele se dispôs a lutar em dois conflitos regionais – e sempre contra os oprimidos, para usar um jargão caro aos que hoje idolatram Gandhi. O primeiro foi a Guerra dos Bôeres (1899-1902), em que o império inglês massacrou os colonos descendentes dos holandeses, que haviam se rebelado contra os planos de anexação de seus territórios. Gandhi conduziu uma divisão de 1.100 carregadores de macas, todos indianos, para resgatar os ingleses feridos nas batalhas. O segundo conflito de que participou foi a repressão à rebelião dos zulus, que empunharam lanças contra os colonizadores em 1906. Nessa guerra, Gandhi assumiu o posto de sargento-mor e comandou um pelotão de dezenove carregadores de macas.’

Preciosos ensinamentos

Não é segredo que, até 1919, o empenho de Gandhi foi no sentido de que, sendo a Índia britânica, aos indianos fossem reconhecidos os direitos inerentes à cidadania britânica. No filme que Attenborough a ele dedicou há a referência ao pronunciamento em Madras, 1915, no qual ele chega a entoar o ‘God save our gracious queen’. O enfoque muda para a independência a partir de 1919, quando o general Dyer – com apoio da opinião pública inglesa – procedeu aos fuzilamentos de Amritsar e vem a ser dado um recado muito claro de que jamais aos indianos súditos da Inglaterra seria reconhecido qualquer dos direitos inerentes à cidadania britânica. Pelo menos, ao que informam Dominique Lapierre e Larry Collins em Esta noite a liberdade – que, para se concordar com a Veja, ou deve ter sido escrito com fins propagandísticos ou devem seus autores ter lançado mão de fontes nada confiáveis. De outra parte, Veja acabou me ensinando que os serviços voltados à saúde também devem ser considerados, na guerra, como combatentes e, pois, devem ter o mesmo tratamento que aquele que está a empunhar armas, se comandar um pelotão de carregadores de macas implica, necessariamente, uma atuação beligerante. Neste caso, nada haveria de reprovável em quem alvejasse uma ambulância ou carregadores de macas cuja bandeira fosse a do exército inimigo, de acordo com a Veja. Antes, eu pensava que o tratamento ao corpo médico era distinto.

Acabei, também, de receber da Veja o precioso ensinamento de que na Guerra dos Bôeres, ao contrário de que eu supunha, não havia uma disputa entre duas nações colonizadoras para saber qual delas dominaria o torrão denominado hoje África do Sul, mas sim, habitantes originários – os bôeres – que não queriam perder a sua liberdade em face do invasor britânico. E que, por outro lado, o retrato que deles pintou Hannah Arendt em As origens do totalitarismo, como bucaneiros expulsos da Europa e que vinham para esgotar todos os recursos humanos e materiais existentes naquele território, estaria marcado pela injustiça.

O ‘faquir seminu’ de Churchill

Articulando, outrossim, os objetivos do swaraj, descritos no topo da página 120 – ‘a união entre muçulmanos e hindus, o fim da casta dos miseráveis intocáveis, a não violência como meio de vida e a fabricação artesanal de tecidos’ – com o juízo posto ao final do texto, na página 122 – ‘Gandhi construiu seu mito graças a uma estranha capacidade de transformar argumentos incompreensíveis em credo. Uma fórmula infalível para gurus aproveitadores’ –, chega-se à conclusão de que seus objetivos – união entre muçulmanos e hindus (com isto, aprendi com a Veja que é irrelevante e mesmo indesejável um tal desiderato num território onde as pessoas se matam por causa de religião), o fim da ‘casta’ dos intocáveis (a Veja acaba de me ensinar que os intocáveis eram uma das castas, eu achava que tinha aprendido que a mais baixa dentre estas era a dos sudras, que os intocáveis, os párias, sequer mereciam ser enquadrados como casta), a não violência como meio de vida (viu-se, acima, como Gandhi, realmente, empregou a violência, comandando dois pelotões de combatentes aguerridos na Guerra dos Bôeres e na rebelião zulu) e a fabricação artesanal de tecidos (algo de profundo interesse da Inglaterra e de todas as nações industrializadas, já que quem fabrica tecidos artesanalmente não precisaria adquirir os que eram produzidos pelas fábricas) – deveriam, mesmo, ser considerados incompreensíveis e aptos a gerarem um lucro pessoal para ele por quem Churchill nutria um ódio incomensurável, ao ponto de chamá-lo ‘faquir seminu’. Julgava que, se fosse um ‘guru aproveitador’, mesmo após os fuzilamentos de Amritsar, procuraria estar bem com os ingleses, até porque se a opinião pública se mostrara simpática ao general Dyer, este não deixou de ser julgado e punido.

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Advogado, Porto Alegre, RS