Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O brinquedo do plebiscito

Qualquer antologia traz o texto famoso de Artur Azevedo, intitulado ‘Plebiscito’. Tem quatro personagens: Seu Rodrigues (o marido), Dona Bernardina (a esposa), Manduca (o filho) e uma menina sem nome (a filha). Ele é negociante e ‘repimpado numa cadeira de balanço’, depois de comer ‘como uma abade’, ‘palita dos dentes’ e lê ‘uma das nossas folhas diárias’.

O filho pergunta: ‘Pai, o que é plebiscito?’. O pai ignora a resposta, tenta enrolar o filho, a filha e a esposa, mas esta não perdoa: ‘Aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito’. Diante das irritadas perorações do marido, acrescenta:

‘Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, falou, e o menino ficou sem saber!’.

O forte de Artur Azevedo, assim como de Manuel Antônio de Almeida, é o registro de usos e costumes. Do pequeno trecho ficamos sabendo que pelo menos os comerciantes liam jornal ‘depois do jantar’, desconheciam o vocabulário da imprensa, mas tinham um dicionário em casa, onde procuravam o significado das palavras que iam entrando na linguagem corrente.

O desfecho é perfeito. Com as desculpas de que foi ofendido pela mulher, o marido retira-se para o quarto e lá está o que precisa: um dicionário. Qual seria? O Dicionario da Língua Portugueza, de Antonio de Moraes Silva (1757-1824)? O Vocabulário Português e Latino, do padre Rafael Bluteau (1638-1734), que nos impôs vaga-lume, porque somente a língua portuguesa, dentre as neolatinas, acolhera caga-lume, como o povo tinha o costume de denominar o inseto, ‘nome tão imundo’?

Ao voltar à sala, depois das súplicas da esposa, movida pela piedade da filha (‘Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso!’), o senhor da casa explica, didático e glorioso:

‘Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios’.

– Ah! – suspiram todos, aliviados. – Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!.

Falta de memória

O Brasil só faz plebiscito sobre o que não interessa. E a mídia é convocada para bulir com o povo e chamá-lo a votar. O tema central é outro e devasta o Brasil: são os juros. O próprio vice-presidente da República tomou para si o estigma de Dom Quixote lutando contra os juros. Fala, fala, fala e nada acontece, mesmo sendo ministro da Defesa.

Ninguém se lembrou de convocar o povo para um plebiscito sobre as taxas de juros, as mais altas do planeta. Quem devia 10 mil reais em cheque especial ou cartão de crédito no primeiro dia do governo Lula, caso não possa abater nada do débito, estará devendo no dia que ele deixar a presidência a quantia de 967.170 reais, à base de 213% ao ano, em taxas redondas. Naturalmente, terá perdido o crédito antes, mesmo depois de ter pago várias vezes em juros e taxas de mora a quantia que ficou devendo.

No governo João Figueiredo, Guilherme Afif Domingues foi recebido pelo então presidente e se queixou dos juros. Alegou uma taxa real de 300% ao ano! Figueiredo chamou Delfim e ele fez como Seu Rodrigues do texto de Artur Azevedo. Enrolou o presidente, o queixoso, a imprensa e o povo. E seu nome vem sendo cogitado para integrar a equipe do presidente Lula! Ninguém perde ao apostar na falta de memória do brasileiro.

Depois de decidir que queria presidencialismo e não parlamentarismo (ao tempo do governo João Goulart, 1963: 82% a favor do presidencialismo), e república e não monarquia (governo Itamar Franco, 1993: 66% a favor da república e 55% a favor da monarquia), o povo agora é chamado para dizer ‘sim’ à proibição e ‘não’ às armas.

Chaga social

De toda a mídia, a Veja foi a mais clara, tomando o partido do ‘não’ à proibição e ‘sim’ às armas. Os problemas começam na formulação de falsos problemas e seguem adiante com a má formação sintática. Para dizer ‘não’, o voto é pelo ‘sim’. Para dizer ‘sim’, o voto é pelo ‘não’. Pelo ‘sim’, pelo ‘não’, depois ninguém vá se queixar de montanhas de votos nulos.

Veja dá sete razões do ‘não’ pelo ‘sim’, fazendo o seguinte prólogo:

‘O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?. Veja acredita que a atitude que melhor serve aos interesses dos seus leitores e do país é incentivar a rejeição da proposta de proibição. O sucesso de uma consulta popular deriva, antes de mais nada, da correção e da honestidade da questão a ser respondida pelos cidadãos. A pergunta que será feita no referendo das armas é um disparate. Ela ilude o eleitor. É uma trapaça, pois, mesmo que o SIM vença por larga margem, ‘o comércio de armas de fogo e munição’ no Brasil vai continuar sendo exercido com todo o ímpeto pelo contrabando em nossas porosas fronteiras e pelos eficientes agentes do mercado negro – alimentado em grande parte pelas próprias autoridades policiais encarregadas de desbaratá-lo’.

Quem pode tirar a razão de Veja quando defende que a pergunta deveria ter outra redação? Ela critica a pergunta afinal escolhida: ‘O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?’. E justifica sua crítica assim:

‘Metade do sucesso de uma consulta popular vem da correção e seriedade com que a questão é formulada. A pergunta do referendo do dia 23 de outubro é um disparate. Ela reduz um problema social complexo a uma simplória questão comercial’.

Propõe a redação que segue, baseada em que ‘a pergunta do referendo de 23 outubro poderia ser formulada de modo mais honesto e realista’:

‘O Estado brasileiro pode tirar das pessoas o direito de comprar uma arma de fogo?’

Diz Veja:

‘Os bandidos, como se sabe, são fora-da-lei. Já é ilegal matar, e eles matam. É ilegal roubar, e eles roubam’.

O signatário ficaria ainda mais de acordo com a revista se ela acrescentasse: ‘Já é ilegal cobrar juros de 200% ao ano e eles cobram’. Só que o pronome ‘eles’ designa outros: aqueles que receberam 50 bilhões de reais do PROER e daí, sim, a matéria tocaria o dedo na grande causa da chaga social do Brasil.

A origem de plebiscito

Foi o padre Rafael Bluteau em seu Vocabulário Português e Latino, publicado entre 1712 e 1728, em Lisboa e Coimbra, em oito volumes, quem trouxe originalmente ‘plesbiscito’ para o universo vocabular dos brasileiros. O dicionário Moraes diz que se trata de ‘lei romana aprovada pelos populares, e que não obrigava os nobres; mas depois veio a ser universal para todas as ordens; modernamente, votação popular tendo por fim conhecer se o chefe d’um estado tem ou não o apoio e a sympathia da maioria n’esse estado’.

Moraes já registra a preocupação dos modernos governantes do século 19 de averiguar sua popularidade. É a tal aferição da ‘sympathia’. Afinal, algumas décadas antes tinham decapitado o rei na Revolução Francesa (1789)…

José Pedro Machado, no Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, cuja primeira edição é de 1952, limita-se a dizer que veio do latim plebiscitu, sem sequer dizer que é declinação de plebiscitum, neutro (gênero que oficialmente não existe no português), junção de plebis scitum, decreto da plebe, depois populi scitum decretum, abonados, entre outros, por Cícero. Estranhável laconismo, pois o dicionarista é pródigo em abonar os verbetes com a mais antiga documentação, aliás, propósito explícito de seu Dicionário.

Há indícios de que plebe provavelmente veio para o latim plebs do grego plekó, trancar, entrelaçar, aparecendo no português do século 16 este trecho: ‘Uma plebe de riachos de pouca água’.

Em tempo

José Pedro Machado faleceu em 26 de julho deste ano, quando saía de casa para comprar os jornais, hábito que mantinha há décadas. Sua esposa, a também lexícografa Elza Paxeco Machado, primeira doutora em Letras da Universidade de Lisboa, foi perseguida por colegas docentes, a ponto de deixar a universidade. Em solidariedade, o marido também abandonou a cátedra. Ambos continuaram o trabalho fora da universidade. Os cadernos culturais e os segundos cadernos, com tanta coisa para tratar, não deram destaque a seu desaparecimento.