Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O cavalo de Tróia e o rolo compressor

Ninguém está quite com a miséria só por ter saudado a revolução. Maurice Merleau-Ponty, Les Aventures de la Dialectique (1955)

O jornalismo brasileiro corre o risco de permanecer por muito tempo refém de uma armadilha histórica, na forma da busca de respostas para questões viciadas. Em torno do debate que se pretende abrir sobre o projeto de lei de criação do Conselho Federal de Jornalismo (CFJ), estamos ainda patinando em um círculo vicioso alimentado pela polarização entre os defensores e opositores da proposta.

Em meio à crise econômica global que assola a mídia, às sucessivas eliminações de postos de trabalho, ao processo de concentração de propriedade dos meios de comunicação, à miscigenação crescente do espaço jornalístico com o entretenimento, à proliferação das formas e alternativas de veículos e à própria pulverização dos valores referenciais e de credibilidade, estamos nos limitando a um ‘sim ou não’ a uma proposta de uma instância de regulamentação profissional parida nos moldes anacrônicos da tradição cartorial brasileira, incapaz de dar conta da complexidade e da dinâmica do atual contexto da comunicação.

De um lado dessa polarização, temos a Federação Nacional de Jornalistas Profissionais (Fenaj), autora da proposta, que por sua vez acabou sendo encampada pelo governo federal na forma de projeto de lei enviado ao Legislativo e apoiada por muitos parlamentares da base governista. Agindo como se desconhecesse sua precária representatividade da categoria dos jornalistas – seja devido à sua falta de empenho ou de condições para ampliar sua base, seja devido à omissão por grande parte dos profissionais que a criticam e da eterna maioria silenciosa –, a entidade não teve o menor escrúpulo com a própria ética jornalística ao levar adiante seu projeto unilateral de regulamentação. Longe de respeitar o preceito ético profissional que proíbe expressamente de ‘frustrar a manifestação de opiniões divergentes ou impedir o livre debate’, a Fenaj e vários sindicatos a ela associados sempre foram tradicionalmente refratários a críticas e opiniões contrárias.

Do outro lado dessa oposição, temos um amplo e multivariado espectro de interesses. Desde os mais independentes aos mais comprometidos com o patronato da mídia, passando também por aqueles que automaticamente se alinham contra toda e qualquer proposta apresentada ou apoiada pelos quadros do PT. Embora sejam unânimes na condenação do projeto de lei de criação do CFJ, os integrantes desse lado da polarização divergem em muitos pontos, a começar pela própria idéia da necessidade de haver uma regulamentação para a profissão de jornalista e se ela deve se estender à atividade do jornalismo. Embora alguns deles proponham um amplo debate sobre o assunto, por parte de muitos veículos, salvo exceções, o esforço de discussão não foi além da mera formalidade de ouvir o outro lado ou de dar-lhe algum espaço. A resultante dessas diversas e multifacetadas forças tem tomado forma como um rolo compressor sobre a iniciativa da Fenaj.

Maniqueísmo simplório

A Fenaj e os sindicatos a ela associados são prisioneiros de uma tradição política maniqueísta e simplória, que consiste em enquadrar somente como favoráveis à ‘categoria’ ou somente como favoráveis aos patrões os atores políticos, seus atos e seus posicionamentos. Impossibilitados de transcender seu débil e restrito quadro de referências conjunturais, essas entidades passaram a atuar como uma caricatura do conceito marxista do sujeito revolucionário da História, que – haja o que houver – sempre estará no sentido correto dos esforços transformadores da sociedade. Como o curso da História tem uma racionalidade, e como coincidentemente o sujeito revolucionário tem a consciência privilegiada dessa razão, nada mais correto que usar suas certezas como fatores de transformação social, tirando do caminho as posições contrárias.

Por mais simplista que seja esta interpretação, ela é plenamente corroborada pelos discursos e atitudes dos diretores da Fenaj, antes de eles serem surpreendidos pela avassaladora reação à sua proposta. Em clima de vitória, embriagados por sua auto-imagem de portadores da razão da História, e amplamente articulados com o governo federal, que enviou o projeto de lei ao Legislativo em 4 de agosto – coincidentemente em pleno 31º Congresso Nacional dos Jornalistas, em João Pessoa (PB) –, dirigentes dessa entidade repetiram nesse dia o que já vinham dizendo havia meses: ‘Precisamos de um movimento nacional de todos os jornalistas para pressionar os parlamentares para que o projeto possa ser rapidamente aprovado sem emendas’.

Mesmo que desconsiderássemos o caráter precário da representatividade da Fenaj, não haveria como ignorar que é mistificador seu argumento de que a proposta do CFJ é fruto de ampla discussão entre os jornalistas. As manobras sobre o projeto de lei não se restringiram aos sumários e substanciais acréscimos feitos pela Casa Civil da Presidência da República, esmiuçados em artigo deste Observatório [‘A ‘canetada’ que o governo não explicou’, 10/8/04, remissão abaixo]. O texto aprovado em outubro do ano passado em Florianópolis, em sessão plenária do 30º Congresso Nacional de Jornalistas, tinha como anexo os 17 artigos do Código de Ética do Jornalista, como demonstrei em artigo publicado na Folha de S.Paulo (24/8/04) [remissão abaixo]. Portanto, além da ‘canetada’, a proposta sofreu também uma ‘tesourada’ naquilo que foi votado em plenário.

Não bastassem essas manobras, ao ser analisada detalhadamente, a proposta enviada pelo governo ao Congresso Nacional revela assustadoras evidências de um projeto de poder. Contrariando a tradição detalhista da legislação brasileira e, em particular, das leis que criaram os conselhos regulamentadores profissionais, o projeto de lei tem muitos pontos omissos, ao mesmo tempo em que prevê para o CFJ a prerrogativa de arbitrar sobre todos os casos omissos. Mas que isso, o projeto de lei prevê para a Fenaj a competência exclusiva para designar a primeira diretoria do conselho, que, se for criado, arrecadará taxas de todos os jornalistas brasileiros. Nada mau para uma federação sindical com uma representatividade cada vez menor entre os jornalistas: um verdadeiro cavalo de Tróia.

Uma vez esfregado em suas caras o não reconhecimento pela categoria dessa auto-imagem de sujeito revolucionário da História por eles cultivada, os sindicalistas passaram a entregar os anéis para não perder os dedos, propondo o debate em torno daquilo que antes não esperavam colocar em discussão.

Defesa do establishment

Se, por um lado, a proposta da Fenaj não é unânime entre os jornalistas, por outro lado é nítida a unanimidade contra ela entre os que controlam os veículos de comunicação. E, assim como não dá para reduzir tudo ao conflito entre os interesses dos proprietários desses meios e os dos jornalistas que para eles trabalham – como querem muitos de nossos sindicalistas –, também não dá para esquecer totalmente desse aspecto. Mais que a defesa da liberdade de expressão, o denominador comum dessa conjunção de interesses acaba sendo o ataque a uma forma de regulamentação da profissão de jornalismo, qualquer que seja ela.

Muitas razões vêm sendo apontadas para crer que a atividade jornalística pode ser exercida com respeito ao direito de livre expressão e de acesso à informação por meio de leis já existentes. Poucos foram os representantes dos veículos da grande imprensa que se posicionaram favoravelmente a alguma forma de regulamentação da profissão e da atividade do jornalismo, como foi o caso de Otavio Frias Filho, diretor de Redação da Folha de S.Paulo.

Em sua maior parte, as críticas que partiram dessa direção traziam a mensagem de que as coisas deveriam ficar como estão. Algumas mais subjacentes, outras bem explícitas, como a manifestação de Milton Temer, vice-presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), que afirmou na edição de 6 de agosto da Folha que a fiscalização do exercício do jornalismo já é feita pelas comissões de ética dessa entidade, da Fenaj e dos sindicatos. Ressalte-se que durante vários dias o website da ABI apresentou erroneamente uma versão anterior da proposta da Fenaj como sendo o texto enviado ao Legislativo, numa demonstração clara de que a associação desconhecia o objeto que criticava.

Por mais independentes e interessados no debate que tenham sido muitos dos críticos do projeto de lei, suas palavras acabam engrossando o combustível do rolo compressor que se pretende passar sobre a proposta. Involuntariamente, muitos daqueles que fazem os disparos mais contundentes à Fenaj e ao governo acabam servindo de franco-atiradores – ou melhor, atiradores de elite, aproveitando o trocadilho com a conotação de luta de classes –, o que a contragosto inclui até mesmo este articulista. Com muita propriedade, Mino Carta, em editorial da edição de 18 de agosto de Carta Capital, referiu-se aos ‘caubóis da liberdade de imprensa’, incorrendo, porém, em uma generalização simplista ou equivocada ao afirmar que tais críticas têm sido feitas ‘a mando do dono da manada’. Certamente ele não se referiu à boa matéria sobre o assunto na mesma edição da revista.

Para muitos dos que se engajaram na frente contra o autoritarismo e a burocratização estatizante do projeto de lei de criação do CFJ, a reflexão crítica sobre as questões que motivam essa e outras propostas de regulamentação está prestes a se tornar munição a ser guardada para necessidades futuras.

Questões viciadas

Assim como, por um lado, precisamos reconhecer que os apelos à defesa da liberdade de expressão abrigam interesses patronais camuflados em boicotar transformações que levem a alguma forma de regulamentação da profissão de jornalista e até da atividade de jornalismo, por outro lado é necessário ter a clareza de que não existe uma prática democrática entre muitos dos que pretendem combater as iniciativas dos proprietários dos veículos de comunicação.

É compreensível, e talvez até inevitável, que todas as instituições – inclusive veículos de comunicação e sindicatos – tenham limites para sua capacidade de tolerar o exercício da crítica, mesmo quando ela tem início em uma direção que lhes interessa. Em outras palavras, veículos de comunicação e sindicatos ou associações de profissionais de imprensa ou de proprietários de meios jamais formularão questões de fundo sobre suas prerrogativas de poder. Quaisquer que sejam suas propostas, elas sempre estarão comprometidas com seu quadro de referências, e terão em seu bojo uma armadilha histórica.

Por mais liberais e abertos que se mostrem, governos, empresas e outras entidades jamais aceitarão de antemão o mergulho de cabeça em um oceano de infinitas possibilidades. Seguir por esse caminho significa entrar pela porta do Inferno, na qual Dante vislumbrou o aviso ‘Lasciate ogni speranza voi ch’entrate’ (Abandonai toda esperança vós que entrais). No plano individual, no entanto, principalmente para os que exercem a profissão de jornalista, o que se espera é justamente a passagem por essa porta. Vale lembrar as palavras escritas há exatos 50 anos – e publicadas no ano seguinte – pelo filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) ao final de sua obra Les Aventures de la Dialectique:

‘Ninguém está quite com a miséria só por ter saudado a Revolução. Ela exige não só nossa boa vontade e nossa escolha, mas também nosso conhecimento, nosso trabalho, nossa crítica, nossa presença inteira.’

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Jornalista especializado em ciência e meio ambiente.