Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O coronelismo eletrônico evangélico

Na Constituinte de 1987-88, ao contrário de todos os outros temas, o capítulo da Comunicação Social só logrou ser ‘rascunhado’ na Comissão de Sistematização e somente ganhou forma definitiva por acordo de plenário. As normas constitucionais finalmente aprovadas sacramentaram bandeiras defendidas por radiodifusores e representantes de igrejas evangélicas, sobretudo no que se refere ao processo de concessão, renovação e cancelamento dos serviços públicos de rádio e televisão.


A ação coordenada dos interesses da ‘bancada da comunicação’ articulada a parlamentares evangélicos está identificada no artigo ‘Comunicação na Constituinte: a defesa de velhos interesses’ [não disponível online], que publiquei no primeiro número do Caderno CEAC/UnB, ainda em agosto de 1987. Àquela época, no entanto, não estava claro que a Constituinte viria a se constituir no ponto de referência para a atuação e o crescimento de representantes das igrejas evangélicas no Congresso Nacional e, sobretudo, para o avanço significativo de diferentes denominações evangélicas como concessionárias de emissoras de rádio e televisão no país.


A participação de igrejas no sistema de comunicações e na política vem, gradativamente, merecendo a atenção de analistas e pesquisadores. A tese de doutorado defendida há pouco no Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro) pelo cientista político Valdemar Figueredo Filho, com o título ‘Os três poderes das redes de comunicação evangélicas: simbólico, econômico e político’, é mais uma contribuição ao entendimento de parte importante das relações entre religião e mídia no nosso país.


O argumento principal do trabalho de Figueredo Filho é que ‘a representação política evangélica é o mesmo que representação das redes de comunicação evangélicas’ e ‘nem mesmo os supostos valores morais comuns ao grupo religioso conseguem o grau de coesão alcançados pelos interesses relacionados à formação, manutenção e expansão de suas redes de comunicação’. No contexto legal que regula a concessão, renovação e o cancelamento dos serviços públicos de rádio e televisão no Brasil, isso significa a manutenção de um tipo particular de coronelismo eletrônico, agora o evangélico.


Bases do coronelismo eletrônico evangélico


A representação evangélica no Congresso Nacional (ver Quadro 1) tem aumentado na medida em que também aumenta o percentual de evangélicos no total da população brasileira. Dados apresentados por Figueredo Filho para o ano de 2000 indicam que esse percentual já atingia 15,6% contra apenas 9%, em 1990. Em relação à representação política, no entanto, há uma diferença fundamental. Se até o fim da década de 1980 ela era composta, sobretudo, por usuários do rádio e da televisão (a chamada ‘igreja eletrônica’), a partir de então ela passou a ser principalmente de concessionários deste serviço público.


QUADRO 1
Representação Evangélica no Congresso Nacional (1983-2011)




























Legislatura


Titulares


1983-1987


12


1987-1991 (Constituinte)


32


1991-1995


23


1995-1999


30


1999-2003


52


2003-2007


48


2007-2011


44


O levantamento realizado por Figueredo Filho, apoiado em informações da Anatel e da Abert, até março de 2006 revela que 25,18% das emissoras de rádio FM e 20,55% das AM nas capitais brasileiras são evangélicas (ver Quadros 2 e 3). Há de se notar, no entanto, que as denominações pentecostais são as que controlam o maior número de concessões, destacando-se a Igreja Universal do reino de Deus (IURD) entre as FM (24) e da Igreja Assembléia de Deus (IAD) entre as AM (9).


QUADRO 2
Rádios FM evangélicas nas capitais brasileiras






















Evangélicos Pentecostais


47


69,11%


Evangélicos de Missão


5


7,35%


Paraeclesiásticas Evangélicas


16


23,52%


Total de FMs evangélicas nas capitais brasileiras


68


100%




 


QUADRO 3
Rádios AM evangélicas nas capitais brasileiras






















Evangélicos Pentecostais


24


64,86%


Evangélicos de Missão


5


13,51%


Paraeclesiásticas Evangélicas


8


21,62%


Total de AMs evangélicas nas capitais brasileiras


37


100%




Em relação à televisão, além do grande número de programas evangélicos que é transmitido por emissoras de TV abertas, existem também redes cujas entidades concessionários são igrejas. E, sobretudo, existe um grande número de retransmissoras (RTVs) controladas diretamente por igrejas (Quadro 4, com dados anteriores a setembro de 2007).


QUADRO 4
RTVs controladas por entidades evangélicas


























ENTIDADES
EVANGÉLICAS


NÚMERO DE RTVs


GRUPO


Fundação Evangélica Boas Novas


19


IAD


Rádio e Televisão Record S.A


196


IURD


Rede Mulher de Televisão Ltda(desde 9/2007 Record News)


61


IURD


Rede Família de Comunicações S/C Ltda


10


IURD



A criação de uma Frente Parlamentar Evangélica (FPE), em 2003, formaliza a articulação dos interesses evangélicos no Congresso Nacional. Estes são defendidos através da participação de seus membros nas comissões de Comunicação tanto na Câmara quanto no Senado e nas votações das proposições legislativas em plenário.


Fundada por iniciativa do deputado Adelor Vieira (PMDB-SC), membro da IAD, a FPE é atualmente presidia pelo deputado pastor Manoel Ferreira (PTB-RJ), principal líder da IAD da Convenção Madureira. O Quadro 5, organizado por Figueredo Filho, mostra a composição atual da FPE.


QUADRO 5
Frente Parlamentar Evangélica (2007-2011)


































































































































































































































































































































NOME


TÍTULO ECLESIÁSTICO


PARTIDO


UF


IGREJA


01


Antonio Cruz


Presbítero


PP


MS


IAD


02


João Campos


Pastor


PSDB


GO


IAD


03


Silas Câmara


Membro


PTB


AM


IAD


04


Takayama


Pastor


PMDB


PR


IAD


05


Zequinha Marinho


Membro


PSC


PA


IAD


06


Dr. Nechar


Membro


PV


SP


IAD


07


João Oliveira de Souza


Membro


PFL


TO


IAD


08


Jurandir Loureiro


Pastor


PAN


ES


IAD


09


Sabino Castelo Branco


Membro


PTB


AM


IAD


10


Manoel Ferreira


Pastor


PTB


RJ


IAD Madureira


11


Filipe Pereira


Diácono


PSC


RJ


IAD Madureira


12


Cleber Verde


Membro


PAN


MA


IAD Madureira


13


Antonio Bulhões


Bispo


PMDB


SP


IURD


14


Flávio Bezerra


Bispo


PMDB


CE


IURD


15


George Hilton


Pastor


PP


MG


IURD


16


Léo Vivas


Bispo


PRB


RJ


IURD


17


Paulo Roberto


Bispo


PTB


RS


IURD


18


Eduardo Lopes


Bispo


PSB


RJ


IURD


19


Vinicius Carvalho


Pastor


PT do B


RJ


IURD


20


Mario de Oliveira


Pastor


PSC


MG


IEQ


21


Jorge Tadeu Mudalen


Membro


PFL


SP


IIGD


22


Dr. Adilson Soares


Pastor


PRB


RJ


IIGD


23


Eduardo Cunha


Membro


PMDB


RJ


CESNT [Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra]


24


Robson Rodovalho


Bispo


PFL


DF


CESNT


25


Francisco Rossi


Membro


PMDB


SP


Comunidade de Carisma


26


Marcos Antônio


Membro


PSC


PE


Metodista Wesleyana


27


Carlos Manato


Membro


PDT


ES


Cristã Maranata


28


Carlos Willian


Membro


PTC


MG


Cristã Maranata


29


Íris de Araújo


Membro


PMDB


GO


IARC [Igreja Apostólica Renascer em Cristo]


30


Geraldo Tenuta


Bispo


PFL


SP


IARC


31


Henrique Afonso


Pastor


PT


AC


Presbiteriana


32


Leonardo Quintão


Membro


PMDB


MG


Presbiteriana


33


Onyx Lorenzoni


Membro


PFL


RS


Luterana


34


Luis Carlos Heinze


Membro


PP


RS


Luterana


35


Arolde de Oliveira


Membro


PFL


RJ


Batista


36


Gilmar Machado


Membro


PT


MG


Batista


37


Natan Donadon


Membro


PMDB


RO


Batista


38


Neucimar Fraga


Membro


PL


ES


Batista


39


Walter Pinheiro


Membro


PT


BA


Batista


40


Andréia Zito


Membro


PSDB


RJ


Batista


41


Jusmari Oliveira


Membro


PFL


BA


Batista


42


Lincoln Portela


Pastor


PL


MG


Batista Renovada (Pentecostal)


43


Marcelo Crivella


Bispo


PRB


RJ


IURD


44


Magno Malta


Pastor


PL


ES


Batista



Serviço público ou proselitismo religioso?


A tese de Figueredo Filho demonstra que, a exemplo do ocorre também em relação às outorgas de rádios comunitárias [ver, neste Observatório, ‘Rádio comunitárias – Coronelismo eletrônico de novo tipo‘], número expressivo das concessionárias das emissoras de rádio e televisão (aberta) e RTVs está vinculado a entidades religiosas. E mais ainda: seus representantes são atores políticos que atuam de forma articulada no Congresso Nacional nas questões referentes às políticas públicas de comunicação e na formação, manutenção e ampliação da suas redes de rádio e televisão.


Obviamente os evangélicos não são o único grupo religioso concessionário do serviço público de radiodifusão. E a utilização de concessões públicas não é a única forma de atuação de grupos religiosos na mídia.


A questão que precisa ser discutida, no entanto, é se um serviço público que, por sua própria natureza, deve estar ‘a serviço’ de toda a população pode continuar a atender interesses particulares de qualquer natureza – inclusive ou, sobretudo, religiosos.