Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O deputado e o hitlerismo

Certamente todos os principais veículos de imprensa já se debruçaram de várias formas contrariamente às posições adotadas pelo deputado federal Jair Bolsonaro, endossadas por seus filhos, também políticos no Rio de Janeiro. Também foram lembradas as inúmeras vezes que o deputado fez declarações a favor do militarismo, contra inimigos (sic) do passado hoje no poder, racistas, homofóbicas, a favor da pena de morte e da tortura, dentre outras pérolas do pensamento extremado e radical. Chegou a propor o fuzilamento de FHC. E no emaranhado da nebulosa imunidade parlamentar, sente-se cada vez mais à vontade para vociferar e fazer pouco, ou ‘se lixar’ – emulando pronunciamento do ano passado de outro ilustre parlamentar – para a opinião pública, para eventuais representações, contra a OAB etc. Chega a parecer engraçado, e aí passa a ser o capitão-Tiririca, quando propõe projeto de lei que estabelece cotas para metade das vagas na Câmara dos Deputados, ainda anunciando que vai votar contra a própria proposta. Não sei se alguém já se deu ao trabalho de compilar todas as pérolas emanadas da sempre vociferante boca do deputado, mas, caso isso já exista ou venha a ser feito, encontraríamos uma semelhança extraordinária com a dita ‘visão de mundo’ de um jovem austríaco de nome Adolf Hitler.

Não vale a pena se estender pela psico-história para entender a complexidade de Hitler, como chegou ao extremismo patológico genocida, assim como arrastou uma nação próspera e culta, ressentida por ter perdido a Primeira Guerra, para uma aventura sem sentido que culminou com 60 milhões de mortos, a suprema humilhação de seus arquirrivais soviéticos tomarem Berlim e restar a ele a última chance de escapar da mesma humilhação que ele sempre tentou ‘reparar’, a perda da guerra em 1918, através do covarde suicídio no bunker da chancelaria do Reich.

Assassinatos denominados ‘eutanásia’

Mas é muito interessante tentar analisar semelhanças entre o pensamento e o comportamento de Bolsonaro e Hitler. Evidentemente que o deputado não se tornou (ainda) um ditador plenipotenciário, tampouco está criando conflitos, mentindo, assinando acordos de mentirinha para justificar anexações, como o anschluss da Áustria e dos Sudetos, ou a seguinte barbárie na Polônia e daí para o resto da Europa continental, arrastando todo o planeta para uma nova e inimaginável Guerra Mundial.

Adolf Hitler fazia proselitismo fanático baseado em crenças sem base científica alguma a favor de um darwinismo social; seus camisas-parda promoviam distúrbios assustadores, intimidando qualquer um que se colocasse contra os mesmos em seu caminho, agindo com uma brutalidade que faria um Ivan, o Terrível, ou Pol Pot, girarem em suas tumbas. Não demorou a agregar simpatizantes de elites germânicas, incluindo médicos, que criavam justificativas para seus programas de esterilização e eutanásia, a favor da tão falada ‘pureza ariana’.

Os projetos de controle de natalidade já apresentados pela família Bolsonaro contêm evidentes semelhanças com o embrião da política nacional-socialista, que nos seus primórdios, após a tomada do poder por Hitler em 1933, eram conduzidas em segredo para não chocar segmentos da população e gerar conflitos com as igrejas, mas esvaziaram, literalmente, inúmeros asilos de doentes mentais e pessoas com deficiências congênitas, em assassinatos erroneamente denominados como ‘eutanásia’, inicialmente com a injeção do barbitúrico Luminal, posteriormente com o início dos primeiros protótipos de morte por asfixia a gás, em caminhões móveis, amplamente utilizados mais tarde nos campos de extermínio.

Adorava os deuses pagãos do passado germânico

Hitler era intolerante e radical com tudo; a brincadeira de quem tem apenas dois neurônios, o Tico e o Teco, não seria justa com o ditador alemão, pois que alguns dons excepcionais ele possuía: era um orador e propagandista de primeira categoria, o que conquistou corações e mentes de milhões de compatriotas, que alegremente marchavam e desfraldavam as bandeiras vermelhas com as suásticas nos monstruosos congressos anuais do partido em Nuremberg. Hitler dizia ser contra pogroms, e sim, a favor de uma eliminação racional dos que achava que conspurcavam a nobre pureza alemã em seu entender, mas nada fez para impedir a Noite dos Cristais e o que depois se tornou comum em todo o território alemão, Áustria, Polônia e demais regiões conquistadas. Mas o cabo do exército alemão da Primeira Guerra, simples mensageiro entre o Estado Maior e a linha de frente, conseguiu atingir o ponto mais alto do narcisismo e da egolatria, o que o levou a acreditar que era mesmo um gênio político e militar. Desde os primórdios, afora alguns oportunistas, os militares de carreira das Forças Armadas alemãs torciam o nariz para ele, tanto é que por várias vezes planejaram e em outras chegaram mesmo a tentar o assassinato de Hitler ou a prisão do mesmo e um golpe militar. Mas divisões dentre esses opositores do regime, e também o sentimento de obediência ao chefe supremo das Forças Armadas germânicas – mesmo detestável, mas hierarquicamente defensável na linha de pensamento do militarismo prussiano – impulsionaram a Wermacht para a guerra, mesmo mal preparada no início do confronto; espertamente, Hitler percebeu que não era exatamente adorado por seus generais e passou a dar cada vez mais força e independência a um exército paralelo, as famosas Waffen-SS, que em várias ocasiões se digladiavam com os próprios militares de carreira.

A intolerância maior de Hitler era baseada em um antissemitismo patológico, mas também considerava sub-raças eslavos e africanos, e perseguia com igual furor homossexuais, ciganos, evangélicos e bolchevistas. Apesar de proferir em alguns discursos que era católico, na realidade na esmagadora maioria das vezes se referia a uma espécie indefinida de Ser Superior à Providência, adorava os deuses pagãos do passado germânico e combatia ferozmente as Igrejas católica e protestante. Estrategicamente, em várias ocasiões adulou tais igrejas por puro interesse momentâneo, da mesma forma que em vários momentos arrefeceu seus ataques aos judeus, também por puro oportunismo.

Quebra da hierarquia

Nosso deputado, embora não investido dos poderes que conferiram a possibilidade da execução das ideias mais malignas, provavelmente iria se sentir confortável trabalhando para o führer. Mas que fique bem claro que aqui não se faz a apologia do stalinismo: embora em opostos ideológicos, Stalin cometeu os famosos expurgos em seu exército na década de 1930, inexplicáveis a não ser por sua paranoia, que evidentemente só puderam enfraquecer suas próprias Forças Armadas quando atacadas pelos nazistas, quando os mesmos rasgaram o inacreditável acordo de não agressão entre as duas nações antípodas, o tratado Ribbentrop-Molotov.

Jair Bolsonaro continua com medo dos comunistas e defende o regime militar que dominou o Brasil por vinte anos. Curiosamente, apesar da Guerra Fria, regimes em molde stalinista, afora Cuba, só apareceram em pleno século 21, com a Venezuela de Chávez caminhando para uma ditadura dita de esquerda, e com alguns países-satélite.

Josef Stalin mandou fuzilar milhares de oficiais poloneses quando aquela nação foi dividida entre a Alemanha e a Polônia, com a assinatura do famigerado tratado. Quando a Rússia foi invadida na Operação Barbarossa, passou quinze misteriosos dias sem fazer nada, mas quando o jogo virou, especialmente após a vitória em Stalingrado, o Exército Vermelho foi encurralando os nazistas cada vez mais em direção ao oeste, até que o desembarque dos demais aliados na Normandia fechasse o cerco e terminasse com a aventura nazista, ao custo de 60 milhões de vidas, das quais 20 milhões apenas de russos, sem falar nos milhares transportados para trabalhar como escravos em plena Alemanha. E a conquista de Berlim pelos soviéticos foi igualmente bárbara, pois Hitler proibiu a rendição, deixando em seu lugar um impotente general Jodl; com a previsível fúria de quem havia sofrido todas as atrocidades pelos nazistas, os civis berlinenses puderam provar daquilo que seus compatriotas perpetraram nas nações invadidas e apenas nessa situação limite de devastação total e cerco pelos aliados houve a rendição de um engalanado Jodl em uniforme frente ao marechal soviético Jukov.

O deputado brasileiro, ex-capitão de nosso exército, aplaude os generais-presidentes. Fico imaginando se ele poderia se manifestar dessa forma impunemente durante o regime de Ernesto Geisel: por muito menos, este deteve oficiais da mais alta patente que lhe cruzaram o caminho e pronunciaram asneiras, ou foram omissos em seu modo de ver, pois, como chefe da Nação, o general Geisel não aceitava a quebra da hierarquia. Não seria de todo surpreendente se, ao tomar conhecimento de que um oficial seu atacava de todas as maneiras algumas ideias mais arejadas de Geisel e Golbery, não viesse a prender e/ou expulsar da força alguém desse tipo.

Intolerância racial, versão original

Em resumo, o deputado exerceu em princípio os mesmos desvios de personalidade e humanísticos de um Adolf Hitler, de um Josef Stalin, de Pol Pot, de Ahmadinejad, porém sem ter o poder de executar na prática suas ideias; como o velho Adolf, é um orador, não de cervejaria de Munique, mas do Congresso Nacional. Mas crê que a imunidade parlamentar vai proteger tudo que disser: Hitler também pensava assim e acabou por se suicidar quando seus mais temíveis adversários, os bolcheviques, já estavam quase às portas de seu bunker. Espanta e assusta que haja quem compartilhe fielmente de suas ideias, pois está na sexta legislatura. E seu partido, que passou a se apresentar como mais moderno e afinado com os novos tempos, ainda o mantém intacto. Está mais que na hora dele ser contido e, felizmente, estamos em uma democracia e a imprensa está de maneira nobre assumindo seu papel na divulgação e no propósito de coibir tais despautérios – Bolsonaro não é um Hitler brazuca, mas ninguém precisa ficar ouvindo ofensas de quem se imagina impune.

Deve ficar bem claro que liberdade de expressão não é um valor absoluto por si só. Como no clássico exemplo tomado das obras de William Wendell Holmes, conceituado juiz da Suprema Corte norte-americana de vários anos atrás, nada impede que um cidadão, em um teatro, grite ‘fogo!’. Mas se desse ato resultarem balbúrdia, correria, ferimentos aos que tentam escapar do teatro, danos materiais, acionamento dos bombeiros etc., ele pode plenamente ser responsabilizado judicialmente.

Ao se referir aos negros, depois canhestramente dizendo ter entendido mal e dirigindo seu foco aos gays, tentou sair de uma posição de racismo, que é crime previsto em lei, para a homofobia, ainda não protegida por dispositivo legal. Mas seu histórico embasa a versão original de intolerância racial, para dizer o mínimo.

Que as trombetas continuem a soar.

******

Médico, São Paulo, SP