Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O Estado de S. Paulo


ARGENTINA
Ariel Palacios


Mídia: controle é feito por meio da verba de publicidade


‘Vários presidentes civis tiveram uma relação difícil com os jornais. Perón
não hesitava em ameaçá-los com a redução das cotas de papel, mas mesmo assim
diversas empresas resistiram. Menem preferia levar os jornalistas aos tribunais
com acusações de calúnias. Mas nenhum deles conseguiu o controle exercido por
Kirchner, que conta com um tratamento complacente da maior parte da imprensa
argentina.


Poucos meios atrevem-se a criticá-lo, já que correm o risco de ficar sem a
publicidade oficial, a principal base de sustento. Segundo a ONG Poder
Ciudadano, em 2005 o governo gastou 43,8% a mais em publicidade oficial do que o
estipulado no orçamento. Jornais de baixa tiragem, mas que elogiam Kirchner,
recebem quase o dobro de jornais de grande venda, mas de tom crítico.


Kirchner também exerce férreo controle sobre os militares, atualmente com o
menor poder em toda a história. Perón tinha apoio do Exército, mas enfrentava
oposição da Marinha e Aeronáutica. Raúl Alfonsín sofreu três tentativas de
golpes. Menem enfrentou uma rebelião. Kirchner reduziu drasticamente o poder dos
militares ao estabelecer que as três forças fiquem subordinadas ao
Estado-Maior.’


 


ONLINE
Fran Ahrens


Expansão da web muda o foco dos gigantes da mídia


‘Quando a tentativa do governo de tornar menos rígidas as normas sobre
propriedade de mídia foi derrotada na Justiça, há dois anos, alguns comemoraram
isso como uma vitória contra o fato de se permitir excesso de poder nas mãos de
uns poucos barões da mídia. Agora, o governo está tratando da questão novamente,
mas o cenário na mídia é radicalmente diferente.


Desde 2003, os gigantes da mídia têm expandido sua presença na internet,
comprando sites de sucesso na web ou redobrando esforços. O continuado
surgimento de internet de alta velocidade, a melhoria do conteúdo online e uma
explosão de dispositivos portáteis se combinaram para dar à grande mídia um
alcance muito maior e potencialmente maior influência do que teriam se fosse
permitido às empresas comprar mais algumas estações de televisão.


Na semana passada, a Federal Communications Commission (Comissão Federal de
Comunicações) votou para que essa questão pegajosa da propriedade de mídia fosse
retomada. Desta vez, a agência planeja afrouxar algumas normas, permitindo que
as empresas de mídia de grande porte se expandam. Por exemplo, pela primeira vez
desde 1975, provavelmente será permitido a um jornal comprar a estação de
televisão mais popular na mesma cidade.


Mas os tempos, a tecnologia e o mercado de mídia mudaram tanto desde a última
vez que a FCC começou sua revisão sobre propriedade, em 2002, que algumas das
mesmas gigantes da mídia que antes fizeram lobby em favor das mudanças na época
– tais como o Tribune Co. – talvez tirem pouco proveito das mudanças desta
vez.


Em 2002, as gigantes da mídia já haviam sido prejudicadas pela internet. A
recente fusão AOL Time Warner Inc. assumiu uma redução no valor do ativo de US$
10 bilhões graças aos maus negócios e à queda na receita da America Online. A
Walt Disney Co. perdeu milhões no seu portal na internet Go.com.


Os iPods ainda estavam nas pranchetas da Apple Computer Inc. Quase todos os
usuários da internet tinham conexões discadas, o que tornava o vídeo online
quase tão assistível quanto um filmede Zapruder – o cineasta amador que
registrou o assassinato do presidente John Kennedy com uma câmera de 8
milímetros).


A Yahoo Inc. não era a potência multimídia que é hoje. O YouTube e seu
estoque de 70 milhões de vídeos não existiam. Nem o MySpace e sua comunidade
global de usuários. E o Google era o mais popular mecanismo de busca na
internet, mas não era ainda o monstro gerador de receitas cujo modelo de
publicidade está sendo imitado por todos na mídia tradicional.


Em maio de 2003, Mel Karmazin disse a uma comissão do Senado que devia ser
absoluta e positivamente permitido à sua Viacom Inc. – então a controladora da
CBS – comprar mais estações de televisão. Era essencial para o futuro da
empresa, disse ele.


Os pedidos de Karmazin não deram em nada. Embora a FCC tivesse afrouxado as
normas sobre propriedade naquele ano, a Justiça as derrubou em 2004 e o
Congresso aprovou uma lei impedindo a CBS de comprar mais estações.


Ocorre que não apenas a CBS sobreviveu como também se tornou uma rede de
primeira linha. A empresa prevê seu futuro não tendo mais estações de televisão
e sim ampliando seu fluxo de receita que era um plano B em 2003 – a internet e
seus várias reproduções de downloading e streaming digitais, canais que dão um
impacto muito maior do que estações de televisão locais.


‘O desafio da CBS agora é como comercializar seu conteúdo e, uma vez que
estamos impossibilitados de fazer isso comprando mais estações, estamos fazendo
isso de outras formas’, disse Martin D. Franks, vice-presidente-executivo de
relações com o governo da CBS Corp. ‘Tivemos que nos adaptar ao que o regime
regulamentador nos concedeu.’


Para ajudar a compartilhar o imenso custo do contrato da rede com a NCAA para
apresentar o torneio de basquete masculino universitário sempre em março (US$ 6
bilhões no decorrer de 11 anos), este ano a CBS comprou a CSTV Networks Inc.,
que transmite esportes ao vivo pela internet e televisão a cabo. A média de
usuários do site na web é de mais de 8 milhões por mês e na rede a cabo, de mais
de 15 milhões de domicílios – um alcance muito maior que qualquer estação de
televisão metropolitana.


Este mês, a CBS começou vendendo episódios dos seus seriado de grande
audiência – CSI, Survivor e outros programas – via Apple’s iTunes, seguindo o
exemplo da ABC, por US$ 1,99 cada. Também a rede lançou um site na web
sustentado por anúncios, o ShowBuzz, com notícias sobre celebridades e
entretenimento.


As circunstâncias também mudaram para a Tribune Co. Em 2003, a Tribune era
uma cadeia de 13 jornais e 26 estações de televisão que queria comprar mais
estações de TV em cidades onde já tinha jornais, na esperança de colher grandes
lucros com publicidade.


Agora, a empresa está vendendo estações de televisão, enfrentando uma revolta
dos acionistas por causa de seu direcionamento e não consegue descobrir como
combinar a publicidade em televisões e jornais locais em seu proveito.


A Tribune tem uma participação acionária na CareerBuilding, um site de
classificados de emprego na internet, e está trabalhando para ampliar o impacto
online de seus jornais. Se a FCC retirar a proibição da propriedade cruzada de
jornais e estações de televisão, a Tribune provavelmente não comprará mais
estações de televisão, segundo uma fonte que falou sob a condição de que seu
nome fosse mantido no anonimato por causa da natureza melindrosa da divergência
em andamento com os acionistas.


A News Corp, de Rupert Murdoch, foi uma das primeiras gigantes da mídia a
mudar seus métodos depois que os últimos regulamentos foram derrubados em 2004.
A empresa lutou para criar duopólios – grupos de duas estações de televisão – no
maior número de cidades que conseguisse. Em Washington, por exemplo, a News Corp
é dona da WTTG (Canal 5) e da WDCA (Canal 20).


Tais duopólios somam recursos para economizar custos e tornam a propriedade
de uma estação de TV ainda mais lucrativa do que já é. Geralmente, uma estação
de televisão produz margens de lucro anuais de 25% a 50%. Mas os duopólios só
eram permitidos nas maiores cidades. As normas de 2003 da FCC os teriam
permitido em cidade menores e levantado a possibilidade de grupos de três
estações, ou triopólios, nas maiores cidades, o que interessava a News Corp.
Mas, quando a expectativa dos triopólios morreu em 2004, a News Corp voltou-se
para a internet.


Em julho, a News Corp formou a Fox Interactive Media, um guarda-chuva para os
muitos sites da empresa na web, tais como o FoxSports.com. Dias mais tarde,
anunciou a compra, por US$ 580 milhões, do MySpace, o mais popular site de
relacionamentos da Web. Os usuários postam perfis, marcam encontros, ouvem
música, assistem vídeos e clicam em anúncios que rendem receitas para a News
Corp. Na época da sua compra, o MySpace tinha cerca de 16 milhões de usuários
mensais.


Esse número é agora de mais de 85 milhões no mundo inteiro e continua
aumentando. A Fox precisa de 35 estações de televisão para atingir 134 milhões
de telespectadores em todos os Estados Unidos.


Além disso, a News Corp está querendo se livrar de algumas de suas estações.
A empresa e o presidente do conselho da Liberty Media Corp estão próximos de
chegar a um acordo pelo qual a News Corp compraria de volta a participação
acionária com direito a voto da Malone na News Corp em troca de algumas das
estações de televisão do mercado intermediário da empresa.


Da mesma forma, a gigante do rádio, a Clear Channel Communications Inc, mudou
de rumo depois da derrota de 2004 sobre as normas da mídia e ‘expandiu seus
horizontes’, disse Andy Lewis, vice-presidente-executivo de relações
governamentais da empresa.


A Clear Channel cresceu graças a aquisições em massa no final da década de
1990, tornando-se a maior cadeia de rádio do país. Em 2003, a empresa procurou
revogar as restrições quanto ao número de estações que podia ter em muitas
cidades. Impedida, voltou-se para a internet.


Em 2004, a Clear Channel contratou Evan Harrison, chefe da unidade de rádio e
música da America Online, para servir de ponta-de-lança nas incursões online da
gigante do rádio. Sob a liderança dele, a divisão de música digital tornou-se o
segmento de crescimento mais acelerado da Clear Channel. Os podcasts (programas
de áudio gravados no formato MP3) produzidos pela Clear Channel venderam mais
que todos os outros no iTunes.


‘Assim é o rádio hoje, como nós o vemos’, escreveu Harrison, via BlackBerry.
‘Temos que trabalhar todos os dias para criar uma melhor programação do que a
MTV para formar nossa audiência. A idéia de que uma empresa radiofônica estaria
competindo com um rede a cabo simplesmente era inconcebível há seis anos.’


E, apesar de a Clear Channel gostasse se as restrições à propriedade de rádio
fossem revogadas nas cidades maiores, as ambições de aquisição da empresa não
são mais o que eram três anos atrás, um espelho do que acontece na indústria da
mídia em geral.


‘Não estou certo se existe uma demanda reprimida de mais consolidações’,
disse Mark Fratrik, vice-presidente dos pesquisadores de mídia BIA Financial
Network Inc. ‘Creio que em 2006 o ambiente de mídia está muito mais apinhado,
muito mais competitivo. Os grupos de rádio estão procurando oportunidades onde
possam levar valor agregado e não ficar maior somente pelo interesse de
crescer.’’


 


ARTE
Antonio Gonçalves Filho


Um Degas pela metade no Masp


‘A respeito de Degas, homenageado com uma retrospectiva no Masp – Museu de
Arte de São Paulo (Degas, O Universo de um Artista, até 20 de agosto), o
escritor Emile Zola jamais aceitou que ele pudesse ser o líder da escola
realista (1860/70). Usou para tanto um argumento que persiste até hoje entre
gente menos culta: Degas não passaria de um pintor de bailarinas. Zola tinha lá
suas razões particulares para dizer isso (Degas era militarista, anti-Dreyfuss,
politicamente conservador e anti-semita no fim da vida), mas é inconcebível que
alguém, hoje, questione a importância de um artista que antecipou muitas das
criações da arte moderna no século 20 – Matisse e Picasso, para citar apenas
dois nomes. Pois bem: a retrospectiva de Degas no Masp não faz justiça a essa
vocação profética. Visitantes que desconhecem Degas saem da exposição com a
mesma (e equivocada) impressão de Zola, a de que o filho do banqueiro não passou
de um fetichista adorador de bailarinas e jóqueis.


Não é, evidentemente, culpa de Degas. Curadores podem orientar o olhar do
espectador, promover novas leituras de obras produzidas pelo artista, ou
simplesmente escolher o caminho mais fácil, o da associação analógica baseada em
fatos conhecidos da sua biografia. No caso de Degas, a referência aos mestres do
passado (Ticiano, Ingres) e o diálogo difícil com seus contemporâneos
impressionistas (Renoir, Toulouse-Lautrec) parecem evidentes demais para ser
ignorados. Assim, não há equívoco em aproveitar o que o Masp tem de melhor em
seu acervo (invejado por muitos museus europeus) para fazer tal associação.
Contudo, isso não basta para organizar uma grande exposição.


Em termos comparativos, seria o mesmo que montar uma retrospectiva do
cineasta Walter Moreira Salles – também filho de banqueiro – e selecionar apenas
suas concessões a Hollywood (Dark Water, por exemplo), ignorando Central do
Brasil. Salles pode ter aproveitado a temporada hollywoodiana para exercitar seu
formalismo, mas é Central do Brasil que define um caminho, um modo de ver o
mundo. Da mesma forma, Degas não desenhou, pintou e esculpiu bailarinas com
olhar contemplativo, mas participativo. Tudo em Degas é movimento, dinâmica.
Argan dizia que Degas fazia das bailarinas corpos plasmados pelo exercício de um
movimento rítmico. Isso também se aplica às suas engomadeiras (só há um
solitário exemplo em toda a exposição)ou à melancólica mulher que bebe absinto
num café parisiense (ausente na retrospectiva). O gesto repetitivo do ferro
sobre as roupas (que a aristocracia polonesa mandava a Paris para passar) é tão
ou mais importante que o desenho forjado pelos movimentos das bailarinas.


É até compreensível que o Masp, hoje desmoralizado e com pouco poder de
barganha junto a importantes instituições internacionais – afinal, nunca se
ouviu o caso de um museu estrangeiro que teve sua luz cortada por falta de
pagamento -, encontre dificuldades para conseguir obras emprestadas. No entanto,
uma tela como L’Absinthe (1876) é imprescindível para mostrar um lado menos
explorado da obra de Degas, o da busca de uma objetividade pós-clássica que não
se mede pela sensação impressionista nem pela comoção realista. Está certo: o
Museu D’Orsay é ciumento de suas raras obras, mas é preciso enfatizar que todo o
diálogo interclassista de Degas (com as passadeiras, cantoras de cafés,
prostitutas) nada tem a ver com o reducionismo dos realistas (que se compraziam
ao pintar entorpecidas garotas num café) ou com a tentativa de chocar burgueses
escandalizáveis por meio de estéreis panfletos sociais. Os curadores tinham,
enfim, a obrigação de conseguir ao menos um exemplo à altura de L’Absinthe.


Quando tentam preencher os buracos da retrospectiva, esse se mostra um
caminho abrupto, que conduz o visitante a mais equívocos. Tome-se como exemplo a
série de monotipias sobre os bordéis parisienses, reinterpretada posteriormente
por Picasso, antípoda de Degas. Na visão do cubista, Degas não passou de um
voyeur que sequer tocava nas garotas, limitando-se a contemplar o bordel. Sua
posição é reforçada não só pelo texto da mostra, que acompanha a releitura de
Picasso – nela, Degas surge sempre como um estático e tímido observador – bem
como pelo confronto direto. É uma comparação impertinente como a de santo
Agostinho com o marquês de Sade. Ou de um jansenista com um renitente pagão.
Degas, apesar da paixão pelas mulheres de Ticiano, nunca foi sensual como o
mestre italiano, nem voluptuoso como Ingres. Talvez até mesmo não gostasse delas
(era misógino, o que não significa que fosse homossexual), apesar de freqüentar
bordéis (suas prostitutas não parecem reais, e sim inspiradas nas aquarelas de
Constantin Guys). Picasso, ao contrário, gostava de garotas, mas jamais deixou
de ser misógino (espancava e maltratava suas mulheres). Então, que sentido faz o
corpo-a-corpo? Degas fetichizava o corpo da mulher ou sublimava o desejo
corporal, como defende Carol Armstrong no catálogo da exposição?


Talvez o caminho para se montar uma retrospectiva sobre um pintor tão
reservado e mitificado por seus biógrafos não fosse, então, o da associação
analógica, mas o de destacar o caráter antecipatório de uma obra até hoje
insuficientemente estudada. Nada do que se supõe ter sido produzido por ele foi
espontâneo, embora ninguém possa acusá-lo de falta de experimentalismo. Foi
pioneiro no uso da monotipia, no cruzamento de técnicas e na utilização da
fotografia como modelo para sua pintura e escultura – seus cavalos, para ficar
num único exemplo, não só devem algo ao holandês Van Dyck ou ao inglês J. F.
Herring, mas principalmente às pesquisas sobre o movimento feitas por Eadweard
Muybridge. Esse, paradoxalmente, é o aspecto menos explorado da retrospectiva,
que praticamente ignora as experiências fotográficas de Degas, ao contrário do
que fez o Metropolitan de Nova York, em 1998, ao organizar a exposição Edgar
Degas, Photographer.


A ligação da fotografia com a escultura de Degas é orgânica. Sendo o Masp um
dos raros museus do mundo a possuir toda a série dos 73 bronzes de Degas, era o
caso de esclarecer ao visitante como o olhar fotográfico do pintor o levou a
produzir esculturas quando sua visão já começava a falhar, obrigando-o a
recorrer ao tato. Ou até mesmo pinturas como L’Absinthe, pintada no mesmo ano em
que ele pediu ao barítono Jean-Baptiste Faure fotos de Louis Mérante. A
composição de L’Absinthe é quase fotográfica. Ele praticamente obriga o
espectador a ‘entrar’ na tela e compartilhar o drama de uma viciada, revelando
ângulos inesperados nessa composição ousada sobre vidas desperdiçadas. Degas
também recorreu à fotografia para estudar efeitos de luz em suas pinturas (há
negativos preservados que ele fez de telas como Mulher Passando Roupa,
pertencente à coleção Durand-Ruel) ou realizar, a partir delas, algumas
monotipias (inclusive uma que está na exposição, a da mulher nua secando-se com
a toalha (Após o Banho, 1896).


Não há nada de libidinoso nesse olhar. O nu, para Degas, serve à exploração
do movimento do corpo como a dança de suas bailarinas a uma reflexão sobre o
desenho no espaço a partir de um gesto (Matisse bebeu nessa fonte). Pintar um
corpo para Degas era como pintar uma garrafa para Morandi. É a beleza de um
mundo estático que importa ao italiano. Nele, tudo está integrado num mesmo
plano. Já para o francês, o que permanece é a beleza do movimento, do esforço
físico e da concentração de quem faz o gesto e cria o espaço – absolutamente
concreto, segundo Argan, embora longe do ‘natural’ (ele raramente pintou
paisagens).


É compreensível que a complexidade de Degas não possa ser ‘traduzida’ numa
única exposição. O que é incompreensível é a reunião um tanto apressada e
aleatória de obras-primas do acervo para compensar lacunas. Elas mais confundem
que orientam. Resta ao serviço educativo do museu – um raro caso de eficiência
comprovada no Masp – a tarefa de guiar o visitante nesse labirinto de falta de
idéias.’


 


ILUSÃO
Charles McGrath


Distantes do mundo real


‘‘A pequena Nell está morta?’ Assim gritavam nova-iorquinos em 1841,
aproximando-se das docas e perguntando aos europeus que chegavam sobre as
últimas novidades no Old Curiosity Shop de Dickens. Estava, a propósito – e
Dickens disse que matá-la causou a ele uma ‘angústia indefinível’. E tanto nos
EUA quanto na Inglaterra, os leitores choraram.


Para preparar seus leitores e evitar reações parecidas, J.K. Rowling , autora
dos livros da série Harry Potter, anunciou recentemente que no sétimo e último
volume da coleção dois personagens morreriam, dando a entender que o próprio
Harry poderia ser um deles. Não que os fãs estejam dispostos a aceitar tal
destino. Após o lançamento do sexto livro, em que Dumbledore morre, foi logo
criado por um grupo de fãs um site chamado Dumbledore não Está Morto, em que se
argumentava que o mago apenas desapareceu de propósito e que pretende mais tarde
reaparecer em um momento chave da trama.


O fato é que, de acordo com uma pesquisa realizada na Inglaterra, a grande
maioria dos leitores prefere finais felizes e não tristes – e incomoda
particularmente quando um personagem querido é morto. Rowling, no entanto, deu
pistas sobres os motivos que a levaram a resolver matar algumas de suas criações
ao afirmar que entende ‘um autor que pensa: ‘Talvez seja melhor matá-los antes
que outros autores resolvam reutilizá-los em seqüências não autorizadas’. Ela
também afirmou que escreveu o capítulo final de sua saga há muitos anos e que em
momento algum se sentiu tentada a mudar os planos originais.


Os leitores podem não gostar da idéia. Mas, nos lembraríamos de Nell se ela
não tivesse morrido? Teria sido melhor se Emma Bovary não tomasse veneno? E
queremos realmente ver Harry, careca e com dores no corpo, a marca de nascença
transformada em um sinal de envelhecimento, trabalhando como comentarista em
partidas de quadribol? Certamente faz muito mais sentido empregar um outro tipo
de magia e sugerir aos leitores que voltem ao primeiro capítulo e comecem a
reler a história.’


 


CERVANTES
Karla Dunder


Um cavaleiro errante e suas peripécias


‘Pouco se sabe sobre a vida de um dos mais importantes escritores espanhóis.
A história de Miguel de Cervantes é bastante incerta, mas o suficiente para
conhecer o gênio e sua produção. De acordo com alguns documentos, a penúria foi
uma companheira de viagem do berço ao seu leito de morte. Biografia e obra de
Cervantes são esmiuçadas na Entreclássicos 3 (Duetto, 98 págs., R$ 12,90), uma
série especial da revista Entrelivros.


Terceiro de cinco filhos de um médico que vivia de fazer sangrias, Miguel de
Cervantes foi obrigado a mudar de cidade muitas vezes. Aos 22 anos, em 1569, o
rapaz vai para a Itália, após ferir um adversário em um duelo. Pouco tempo
depois se alista na Santa Liga, para combater os turcos otomanos na Europa
central. Apesar da guerra, foi um período bom se comparado com a infância –
comia com regularidade e ainda tinha dinheiro no bolso.


O destaque como soldado valente nos combates – o que resultou na perda dos
movimentos da mão esquerda por toda a vida – , tentativa de voltar para a
Espanha com distinção e honras, com cartas de recomendação no bolso, levaram-no
a crer que poderia ter uma vida melhor. A ilusão durou pouco. O navio em que
viajava foi interceptado por piratas. O soldado, com todas as suas distinções,
foi seqüestrado pelos mouros. Seu resgate foi pago, a duras penas, pelos
familiares.


De volta a sua terra natal, entre outras peripécias, se dedicou à literatura.
Só sua vida renderia um volumoso romance. Dom Quixote, sem dúvida, é uma obra
auto-referente. ‘Cervantes incorpora personagens e episódios de suas
experiências de vida à narrativa ficcional’, observa Marcos Antônio Lopes,
professor da Universidade Estadual de Londrina.


Maria Augusta da Costa Vieira, professora de literatura espanhola da USP,
destaca o talento e a erudição do autor: ‘É provável que Cervantes tenha tido
contato não apenas com os teóricos italianos, mas também com as perspectivas
espanholas, dentre elas, La Philosophía Antigua Poética, de López Pinciano, que
retoma, em particular, as idéias da Poética, de Aristóteles, e da Arte Poética,
de Horácio. Além de orientações teóricas, Cervantes leu profundamente obras
literárias e estabeleceu intenso diálogo com várias formas, não apenas com as
novelas de cavalaria, mas também com os demais gêneros e conceitos. Desse modo,
é plenamente possível ler as andanças do cavaleiro manchego como uma obra sobre
a própria literatura, em toda a sua complexidade.’


O tradutor Sérgio Molina procura estabelecer elos entre o romance e a
atualidade. ‘Vejo como particularmente fértil para o entendimento dos possíveis
pontos fortes de aderência entre Dom Quixote e a consciência contemporânea o
dualismo loucura – sanidade, verdadeiro – falso, entendido ou não segundo certa
visão pós-moderna que busca confundir e igualar os termos antinômicos, mas como
uma tensão dinâmica que, mediante um jogo de paradoxos, contradições e dúvidas
que dá lugar a toda uma gama de entrecruzamentos e passagens, problematiza os
estatutos da ficção e da realidade e amplia a percepção de ambas.’’


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O Estado de S. Paulo


Sábado, 8 de julho de 2006


SELEÇÃO
Mauro Chaves


Derrota do faz-de-conta


‘Nunca uma seleção representou tanto o momento do Brasil como esta do
Parreira. Com soberba desproporcional à sua capacidade funcional, sentindo-se
desobrigada de exibir as hipotéticas qualidades a si mesma atribuídas, montada
em cima do puro marketing, da meia-lógica sem substância, investindo no que
julgava ser um irresistível carisma, tentando ‘faturar’ conquistas do passado,
como se do presente (e dela) fossem, com seus integrantes ganhando muito ‘por
fora’ (em contratos milionários de publicidade que lembram quem?), esparramando
desculpas esfarrapadas ao negar as próprias falhas, como se tentasse levar ao
pódio o próprio fracasso, a seleção do ‘Barreira’ foi a autêntica expressão do
faz-de-conta, do ‘como se fosse’, da impostura geral que envolve o poder num
manto de fingimento, sem conseguir disfarçar sua falta de fibra, de coragem, de
raça. Em matéria de pretensão megalomaníaca extrapolou as medidas, ao fazer
colocar no ônibus embandeirado que a transportava pela Alemanha, com a devida
versão em inglês, a ridícula frase: ‘Veículo monitorado por 180 milhões de
corações brasileiros.’


O Brasil jogou sem conhecimento, sem plano, sem treino, sem estratégia, sem
tática, sem jogada ensaiada, sem estudo do adversário, sem esforço de
aprendizado, sem sistema de marcação, sem garra, sem vontade, sem orgulho, sem
vergonha. Não caiu de pé, depois de uma luta renhida, nem foi injustiçado pela
arbitragem, como Portugal, diante da mesma seleção adversária. Caiu de cócoras.
E, indo muito além do que seria o espírito esportivo, alguns de nossos
jogadores, após a derrota, cumprimentavam os vencedores com uma euforia que mais
parecia um agradecimento, batendo as palmas das duas mãos contra as deles, num
gesto de cumplicidade. Parecia que o que lhes importava, muito mais do que a
torcida do Brasil, era o fato de pertencerem à mesma turma de craques dos times
europeus – da mesma forma que ao governo brasileiro, depois da humilhação que
nos foi imposta por Evo Morales e seu guru Hugo Chávez, importa mais a alegre e
afetuosa submissão a nuestros hermanos del (fracasado) Mercosur.


Não há como negar o fato de Luiz Inácio Lula da Silva ter sido o presidente
da República que mais explorou a paixão brasileira pelo futebol – a ponto de
quase não haver falas suas sem metáforas futebolísticas – e mais se envolveu com
a seleção, numa Copa do Mundo, desde os temos em que o general-presidente Emílio
Garrastazu Médici, no auge da ditadura militar, portava seu radinho de pilha
encostado no ouvido, dava conselhos de escalação ao técnico, adivinhava
resultados de jogos e era aplaudido nos estádios, por essa tão popular afinidade
– insuflada pelo terrível slogan ‘ame-o ou deixe-o’.


Depois da desastrada videoconferência em que tentou associar fortemente sua
imagem à seleção, mas ao ter se referido à gordura de Ronaldo deu margem a que o
jogador lhe desse um também indelicado troco, mencionando seu suposto hábito de
beber em excesso, o presidente certamente foi aconselhado por seus assessores a
manter uma certa distância da seleção, pelo menos até vê-la bem-sucedida. A
videoconferência não deu certo, não só pela repercussão da polêmica
calórico-alcoólica tida com Ronaldo Fenômeno, mas de outros conselhos infelizes
dados ao treinador, tal como aquele de mandar o Ronaldinho Gaúcho ‘não fazer
cara feia, como se quisesse matar o adversário’, mas manter o habitual sorriso
em suas cobranças de faltas, o que mereceu de Parreira a resposta: ‘Esse
conselho eu não posso dar, presidente, porque para bater falta ele precisa estar
focado, concentrado. Sorrisos e brincadeiras são para os treinos.’


Por falar em Ronaldinho Gaúcho, o presidente Lula fez a associação mais
absurda já ouvida de um homem público, ao comparar o jogador a nada menos que a
Petrobrás. Arre! Agora, alguém duvidará do tamanho do estardalhaço que o
presidente-candidato haveria de fazer, em festas e recepções apoteóticas, talvez
nas cidades de cada um dos jogadores da seleção (titulares e reservas), se esta
nos trouxesse o hexa? É claro que nada mais justo seria o chefe de Estado e de
governo brasileiro oferecer tais homenagens aos patrícios que teriam conquistado
o maior troféu internacional de futebol do mundo. E isso, decerto, não criaria
problemas com a Justiça Eleitoral, pois não significaria inauguração alguma – no
máximo, haveria de ser uma inspeção, ou vistoria, feita pelo presidente em seu
trabalho rotineiro, quem sabe para comprovar o controle de calorias na dieta
alimentar de nossos craques.


Não há como deixar de associar o conceito de ‘quadrado mágico’ à estruturação
primordial de um governo que, inicialmente, concentrou em quatro figuras
fundamentais, basilares, toda a sua estratégia político-administrativa,
econômica e comunicológica. Realmente, foi no quadrado Lula-Dirceu-Duda-Palocci
que se montou um projeto de poder de longo alcance, destinado a deitar raízes
sólidas em todo o território nacional. Mas o quadrado não deu certo e não se
treinaram, no devido tempo, alternativas para sua imprescindível substituição.
De qualquer forma, a derrota do faz-de-conta pode significar uma tomada de
consciência que conduza à reversão de expectativas: do futebol à ética na
política.


P. S. 1 – Será que ninguém entendeu? Parreira dá uva, uva dá vinho e vinho é
com os franceses mesmo.


P. S. 2 – Está certo que o Hino Nacional é difícil de decorar. Mas também não
precisava disfarçar, lambendo os beiços.


P. S. 3 – Já se podem ver, em São Paulo, carros circulando com o adesivo:
‘Lula é um pé-frio (13 letras).’


Mauro Chaves é jornalista, advogado, escritor, administrador de empresas e
produtor cultural. E-mail: mauro.chaves@attglobal.net


 


ITÁLIA
O Estado de S. Paulo


Berlusconi será julgado por fraude na Mediaset


‘Um juiz de Milão decidiu ontem processar o ex-primeiro-ministro italiano
Silvio Berlusconi por fraude fiscal e balanço fraudulento em sua empresa de
comunicação, a Mediaset. Outras 13 pessoas também serão processadas no mesmo
caso envolvendo a compra de direitos cinematográficos nos EUA.


O julgamento contra Berlusconi – o homem mais rico da Itália – começará em 21
de novembro. Segundo a promotoria de Milão, a Mediaset aumentou artificialmente,
por meio de companhias off-shore, os preços de direitos de divulgação de filmes
americanos. O caso, que Berlusconi qualificou de politicamente motivado, foi
aberto após quatro anos de investigações sobre apropriação indevida de fundos,
contabilidade falsa, fraude fiscal e lavagem de dinheiro de direitos de
televisão obtidos entre 1994 e 1999. Berlusconi, que governou a Itália por cinco
anos até perder o posto para Romano Prodi em abril, pode pegar até 6 anos de
prisão se for condenado por fraude fiscal.


Apesar das repetidas acusações, até agora Berlusconi conseguiu evitar a
prisão. O ex-líder conseguiu livrar-se da prisão em pelo menos outros sete
julgamentos por suborno. Ele foi considerado culpado quatro vezes, mas recorreu
e as sentenças foram suspensas ou as acusações, retiradas.’


 


CAPÍTULO FINAL
O Estado de S. Paulo


Acaba ‘Belíssima’. Bia Falcão é a vilã e Vitória, a sua filha


‘Bia Falcão (Fernanda Montenegro) é a vilã que mata André (Marcelo Antony),
Medeiros (Ítalo Rossi) e a secretária Ivete (Angelita Feijó) no último capítulo
da novela Belíssima, da TV Globo. Vitória (Cláudia Abreu) é sua filha. Eis o
toque de tragédia grega: sua filha se casara com seu neto no início da
trama.


O capítulo, que teve 60 pontos de audiência (América, a antecessora teve 66)
e 80 de share (total de televisores ligados na Globo), também explica o sumiço
de Bia no meio da novela: ela estava na Suíça, armando seu plano, com a ajuda de
Medeiros e da secretária Ivete, e passou pelo Rio para conversar com
investidores quando foi vista por Júlia. Bia conta a Júlia que voltou quando
soube que seu pretenso corpo seria exumado. Prestes a ser presa, consegue
escapar da polícia de jatinho.


Na Grécia, Nikos (Tony Ramos) e Júlia acabam casando. Sabina aparece e leva
Nikos até Cemil (Leopoldo Pacheco, que finalmente fica com Mônica/Camila
Pitanga), que finalmente o aceita como pai.


Casais gays se formam: Rebeca (Carolina Ferraz) aparece com Karen (Mônica
Torres), brindando em um iate ao mundo novo que Érica lhe mostrou. Gigi (Pedro
Paulo Rangel ) sai do teatro com um dos funcionários do espetáculo que criou.
Ornela (Vera Holtz) arranja outro garotão. Vitória fica com o delegado Gilberto
(Marcos Palmeira). Murat (Lima Duarte) e Katina (Irene Ravache) reúnem a família
em festa no casarão grego.


Bia Falcão, em Paris, olha a cidade do alto, em uma belo e amplo apartamento.
Está acompanhada por Mateus (Cauã Raymond, ex de Ornela).’


 


JAMES JOYCE
Ruy Castro


Retrato do artista quando refém do próprio neto


‘No dia 16 de junho último, um homem chamado Stephen Joyce, morador de La
Flotte, na costa atlântica da França, ficou atento ao noticiário sobre os pubs
irlandeses espalhados pela Europa. Pela data e pelo sobrenome do indigitado,
alguns leitores já sabem do que se trata: 16 de junho é Bloomsday, o Dia de
Bloom, as 24 horas em que se passa Ulisses, o romance de James Joyce; os
joyceanos do mundo inteiro o comemoram como se fosse um feriado, dia santo ou
coisa assim; e Stephen Joyce é neto do homem e seu único sobrevivente direto
vivo. À primeira vista, pode-se pensar que Stephen Joyce estaria apenas se
certificando de que, naquele dia tão feliz, o mundo continuaria a cultuar seu
avô com as pompas que ele merece. Mas a verdade é o contrário: a missão a que
Stephen se atribuiu é a de impedir que os vagabundos de toda parte continuem
usando o nome de vovô em vão. E, por vagabundos, ele entende os biógrafos,
ensaístas, críticos, historiadores, professores e todos que se propõem a estudar
a obra de James Joyce. Isso inclui também os bebuns que, todo dia 16 de junho,
recitam trechos de Ulisses nos pés-sujos irlandeses por todo o planeta e que,
com essa prática, segundo ele, infringem os seus direitos autorais. O homem é
louco.


Stephen Joyce tem 74 anos, belos olhos azuis (puxou ao avô) e uma disposição
canina para lutar pelo que considera seus direitos. Há cerca de 20 anos é o
titular do espólio de James Joyce, que inclui toda a obra publicada do escritor
(os contos de Dublinenses, os romances Retrato do Artista Quando Jovem, Ulisses
e Finnegans Wake, uma peça de teatro, alguns poemas e uma quantidade de cartas –
pelo menos 3.000, em grande maioria ainda inéditas -, manuscritos, bilhetes,
róis-de-roupa da lavanderia, listas da feira etc). Qualquer pessoa que se
proponha a estudar a obra de Joyce, ou a biografá-lo (a ele ou a qualquer um de
seus parentes), e que julgue necessário transcrever um trecho mais extenso
escrito por Joyce, precisa da permissão do espólio para fazer essa transcrição.
Tal procedimento é corriqueiro (aplica-se a qualquer escritor), e os
responsáveis pelos espólios costumam ser lenientes. Eles sabem que nenhuma
publicação de alcance acadêmico é capaz de disputar nas livrarias com a obra do
parente ilustre. Daí são liberais nessas autorizações. Menos Stephen Joyce.


Qualquer solicitação nesse sentido que chegue à sua mesa é respondida com um
rotundo ‘NÃO’, sem que ele se interesse em saber de quem ou para quê. A
comunidade joyceana internacional, que até hoje não desistiu de descobrir o
significado da palavra
‘bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarrhounawnska
w-ntoohoohooordenenthurnuk!’, que aparece logo na primeira página do Finnegans
Wake, fica triste e decepcionada diante de tanta insensibilidade. Para ela, os
estudos sobre Joyce estão paralisados desde que Stephen tomou o poder. Por causa
dele, são poucas as chances de que se venham a produzir novos livros tão
importantes quanto James Joyce’s ‘Ulysses’, de Stuart Gilbert (publicado em
1930!) e A Skeleton Key to ‘Finnegans Wake’, de Joseph Campbell e Henry Morton
Robinson, sem os quais seria quase impossível ler os originais, ou mesmo o A
Shorter Finnegans Wake, que é o livrão de 628 páginas (na minha edição da Faber,
de 1961) reduzido às essências por Anthony Burgess. Na cabeça de Stephen, esses
livros levaram o século criando a (segundo ele, falsa) idéia de que James Joyce
era complicado, difícil de ler e ininteligível, o que teria afastado milhões de
leitores e causado grandes prejuízos ao espólio.


Mas, na prática, o próprio Stephen (que gosta de ser chamado pelo nome
completo: Stephen James Joyce) é a prova de que a leitura de Joyce não é para
qualquer um. Não é para ele, pelo menos – que, ao se referir à obra do avô, só
fala de Dublinenses e Retrato do Artista Quando Jovem (duvida-se que tenha lido
Ulisses ou sequer aberto o Wake.) Isso não o impede de aceitar propostas para
dar palestras sobre Joyce e cobrar por elas quantias que nem o falecido Richard
Ellman, definitivo biógrafo do escritor, sonhou cobrar. Os organizadores de
seminários e ciclos sobre Joyce aprenderam na carne: de tanto ver negados por
Stephen seus pedidos de autorização para organizar tais seminários, passaram a
convidá-lo a participar deles. Vendo sua vaidade atendida, Stephen começou a
autorizar – e a ditar cátedra sobre o assunto, para constrangimento geral. Uma
de suas frases lapidares nesses colóquios é: ‘Eu sou um Joyce, não um joyceano’
– como se aqueles velhinhos sinceramente joyceanos vissem nisso uma grande
vantagem. Outra, muito mais ofensiva, é: ‘Se meu avô estivesse aqui, estaria
morrendo de rir.’ O que apenas confirma uma descrição de Stephen quando jovem,
feita por uma velha amiga da família: ‘preguiçoso’, ‘intelectualmente medíocre’
e cheio de ‘arrogância injustificada’ – vivia arrotando sua condição de neto de
James Joyce sem ter feito nada para merecer isto.


Joyce, que morreu em 1941 aos 58 anos, cego e com todos os órgãos arruinados
por 40 sólidos anos de birita, teve dois filhos: Giorgio, que também teve um
problema sério de alcoolismo, e Lucia, considerada esquizofrênica e que passou
décadas no hospício. Stephen é filho de Giorgio. Nasceu em Zurique, em 1932, e
teve os nove anos seguintes para conviver com o avô, principalmente depois que
seus pais se separaram e ele foi morar por uns tempos com Joyce e a mulher
deste, Nora. Há relatos de que Joyce punha Stephen no colo, contava-lhe
histórias e conversava muito com ele. Mas isto apenas prova que o gênio não é
transmissível. Em 1948, aos 16 anos, Stephen escreveu um ‘ensaio’ sobre o avô,
intitulado ‘O homem que eu mais amei e respeitei neste mundo’ – algo assim como
uma composição escolar, tipo ‘Minha visita ao Zoológico’.


Essa postura de dificultar a vida dos estudiosos seria apenas lamentável se
Stephen, de algum tempo para cá, não estivesse destruindo partes inéditas do
espólio. Começou por queimar as cartas de sua tia Lucia, filha de Joyce,
dirigidas a ele, Stephen. Ele não quer que os biógrafos falem de Lucia, e ponto
– nem mesmo os que tentam provar que ela podia não ser esquizofrênica, mas
talvez genial e apenas incompreendida (é a tese da biógrafa Carol Shloss, que
Stephen está tentando bloquear). Nada o impedirá de queimar também as cartas de
Joyce que tocam no assunto ou que mencionem outros aspectos menos primorosos da
família. Mas quem pode dizer que esses aspectos sejam desprimorosos? E por que
um descendente maníaco teria o poder de negar aos biógrafos do futuro a
possibilidade de reconstruir a vida de uma pessoa ilustre? Tudo bem – há sempre
o argumento de que tal material é particular, e que o responsável pode decidir
se quer ou não que ele venha à tona. Mas quem disse que James Joyce (ou qualquer
outro defunto equivalente) é uma pessoa privada?


O escritor D. T. Max, que levantou estas e outras informações sobre o neto de
Joyce num importante artigo na revista The New Yorker de 19 de junho último,
pode ter puxado a ponta de um fio que interessa a todos que ainda tentam
escrever a História nos dias de hoje. E, sem querer, comprovou uma tese que todo
biógrafo um dia aprende na prática: com as exceções de praxe, o biografado ideal
não deveria ter filhos, nem sobrinhos, nem netos. Para isso, precisaria ser
órfão, filho único, solteirão, estéril e, se possível, brocha.’


 


TÊTE-À-TÊTE
Aluízio Falcão


Para odiar Sartre e Beauvoir


‘O leitor jovem, quando elege o escritor de sua máxima estima, idealiza de
tal forma o ser admirado que perde o discernimento para vê-lo em sua real e
pobre condição humana. Reage, diante dele, com a fé cega dos beatos. A
intensidade na reverência leva-o a situar o ídolo numa dimensão onde não há
lugar para o mais leve desvio de caráter. Depois, na maturidade, lendo memórias,
cartas e biografias, enfrenta decepções nunca imaginadas. Este é o caso dos
leitores de Jean Paul Sartre que somente agora estão descobrindo a sua mais que
discutível aventura pessoal. De tudo que foi escrito pelos biógrafos (quase
todos respeitosos aos seus méritos intelectuais) resta um indivíduo quase torpe,
com espantosa falta de respeito pelo próximo.


Muitos desses desdouros se insinuam, para nossa estupefação, nos escritos de
sua companheira Simone de Beauvoir. Ela alcovitava os ‘amores contingentes’ do
escritor, segura de que somente os dois, ela e ele, tinham direito a uma
verdadeira reciprocidade integral. As outras mulheres, atraídas pelo brilho de
Sartre, eram manipuladas pelo casal de forma próxima da vileza.


Depois de percorrer léguas de memórias dessa senhora malcomportada, textos
autobiográficos do seu companheiro, cartas de ambos e, sobretudo, o recente
livro Tête-à-Tête, uma dupla biografia escrita pela inglesa Hazel Howley, tenho
o dever de abordar por inteiro uma situação paralela que somente em parte, e de
forma oblíqua, foi descrita por Mme. de Beauvoir.


O meu relato é do início dos anos 60, quando Sartre e Simone vieram ao Brasil
e passaram alguns dias no Recife, onde eu era repórter do Diário de Pernambuco.
Uma colega de profissão, Cristina Tavares, ofereceu-se como intérprete do casal.
Ela dominava o idioma francês como língua materna e, embora muito jovem, tinha
um sólido conhecimento da obra de ambos, pela qual nutria desmedido
interesse.


Abro parêntese para dizer que essa moça foi uma das pessoas mais íntegras que
conheci, desde o tempo de nossa mútua juventude até a fase em que ganhou
respeito nacional por sua luta parlamentar contra a ditadura. Ela morreu
prematuramente no início dos anos 90. Fecho parêntese e digo que não teve a
minha amiga o devido reconhecimento de Beauvoir pela dedicação com que tratou a
escritora em Pernambuco. No volume A Força das Coisas, a memorialista desdenha
de sua intérprete: moça rica, irresponsável, guiando velozmente para assustar os
pedestres do Recife e velejando no clube mais seleto da cidade, enquanto se
compadecia dos miseráveis por ser ‘católica devota’.


A indelicadeza da escritora chega a ponto de registrar que o quarto na casa
de praia que lhe fora emprestada pela família da jovem possuía ‘um aparelho de
ar-condicionado primitivo e barulhento’. Estes detalhes grosseiros já me
desagradavam há tempos, mas a gota d’água veio agora com a leitura de
Tête-à-Tête, onde se reproduz trecho de uma carta de Beauvoir a Nelson Algren, a
quem descrevia sua passagem pelo Recife e voltava a falar de Cristina:


‘A moça (…) acredita em Deus, e quando compreendeu que Sartre não devia ter
odiado dormir com ela, achou que ele era o Diabo em pessoa. Os dois brigaram.
Sartre passou um mau bocado naquela cidadezinha monótona e hostil (…) a moça
ruiva quebrou copos com as mãos nuas e sangrou muito dizendo que ia se matar,
porque amava e odiava Sartre e nós íamos embora no dia seguinte. (…) Ela virá
a Paris e Sartre diz que talvez se case com ela!’


Temos aí duas hipóteses. A primeira é a de que Beauvoir mentiu, evidenciando
imaginação doentia para tornar mais picantes as fofocas epistolares; a segunda é
a de que não mentiu, mas atropelou normas elementares de respeito a uma pessoa
fragilizada pela sensibilidade. Em ambos os casos, a sua imagem não fica
bem.


Esta falha de Beauvoir ao contar ou inventar um episódio envolvendo pessoa
que conheci tão de perto, levou-me a compreender a reação indignada de Algren ao
ver seu nome usado pela ex-amante, que não hesitou em descrever sua intimidade
com ele. Eis o desabafo do romancista norte-americano, em legítima defesa: ‘Já
estive em bordéis no mundo inteiro, e a mulher ali sempre fecha a porta, seja na
Coréia seja na Índia. Mas essa mulher escancarou a porta e chamou o público e a
imprensa.’ Antes, resenhando as memórias da francesa, Algren escreveu na
Harper’s: ‘A determinação inicial de Mme. de Beauvoir de ‘escrever ensaios
sacrificados em que a autora se desnuda sem desculpas’, ela passou a empregar
com tanta honestidade e habilidade que praticamente todo mundo já foi
sacrificado menos ela …’


Um professor da USP, José Tavares de Lira, sobrinho da jornalista recifense,
exibiu cartas de Sartre, recebidas por sua tia, nas quais inexiste qualquer tom
de romance, e sim de uma grande amizade. Hazel Rowley esteve no Recife para
entrevistar antigos companheiros e familiares da jornalista. A socióloga Lúcia
Bezerra, testemunha destes contatos, informa que Rowley prometeu modificar, na
próxima edição francesa do livro, em outubro, aquele trecho deformado pelo uso
da leviana carta de Beauvoir. Aguardemos.


E Sartre, de que forma ele, na posteridade, frustrou os seus leitores? Há
muitas revelações documentadas e a primeira delas foi de seu estranho
relacionamento com as mulheres. Aproveitando-se da veneração intelectual de
algumas, exerceu ilegalmente a profissão de terapeuta, tornando-as ‘pacientes’
do que chamava ‘psicanálise existencial’. Como sustentava financeiramente estas
infelizes, procurava dar-lhes a impressão de que tais consultas poderiam
curá-las de neuroses e perturbações. Ao seu amigo psicanalista Jean Bertrand
Pontalis declarou ironicamente: ‘Os doentes vão ao seu consultório, e lhe pagam.
No meu caso, sou eu quem faz a ronda, e lhes paga.’


Não menos cínico era o seu hábito de mentir para todas ao mesmo tempo, em
sucessivos telefonemas testemunhados por seu secretário particular, Jean Cau.
Sartre chegou a reconhecer tais procedimentos como ‘podres’ e a dizer que ‘em
alguns casos, a gente é obrigado a recorrer a um código moral temporário’.
Surpreende esta noção de decência interina manifestada por um indivíduo que
pregava, em seus escritos, a franqueza e a liberdade como fundamentais nas
relações humanas.


A uma de suas nove amantes simultâneas (a russa Lena Zonina) chegou a contar
os truques para enganar as outras. Zonina recusou-se a sair de Moscou e morar em
Paris quando se convenceu de que não suportaria compor aquela ‘família’ de
manteúdas governadas por Sartre e Beauvoir. No final do seu relacionamento com o
filósofo, ela revelou que o amara por sua liberdade, mas percebera que ele não
era livre, omitia coisas em que acreditava e não fazia o que queria. Havia nisso
uma queixa contra o comportamento pendular de Sartre em face da União Soviética.
Zonina exigia um posicionamento mais crítico e mais sincero.


Quando recusou o Prêmio Nobel, em 1964, o autor de As Palavras quis
beneficiar, com o impacto da recusa, o regime soviético, embora ciente de todas
as suas ações liberticidas: ‘É lamentável que Pasternak tenha sido contemplado
antes de Cholocov, e que a única obra soviética premiada até ontem seja uma que
não foi publicada – aliás é proibida – em seu país.’ Zonina, que trabalhava na
União dos Escritores Soviéticos, reprovou estes comentários. Não percebia ele
que Cholocov era um lacaio do stalinismo? Mesmo depois de condenar a brutal
invasão da Hungria, Sartre não hesitou em visitar a URSS e dialogar com os
invasores sobre o que chamou de ‘coisas positivas’ no regime.


Esta leniência vinha de longe, desde 1936, no auge do terror de Stalin contra
os seus opositores. Beauvoir, em suas memórias, conta que juntamente com Sartre
apoiou Merleau-Ponty em sua interpretação dos processos de Moscou. Em síntese,
Merleau-Ponty argumentava que a URSS isolada, ameaçada, precisava usar
internamente um rigor monolítico. Albert Camus indignou-se e brigou com eles
muitas vezes por causa desta postura de cúmplices. Em 1975, Sartre admitiu que
mentira em favor do regime, depois de sua primeira visita à URSS.


Nós, da geração que idolatrou Sartre e Beauvoir, vemos estarrecidos que estes
ídolos foram capazes de baixezas insuspeitadas. Só nos resta vê-los como
ex-amigos que animaram a nossa juventude com teorias libertárias e deixaram para
o fim, em cartas e memórias, o triste retrato de suas vidas mal vividas.’


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