Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O fato e o factóide

A proposta de criação do Conselho Federal de Jornalismo (CFJ) voltou a gerar polêmica entre membros do governo federal e veículos de comunicação. No entanto, o fato volta a mexer em ‘feridas’ devido ao envolvimento do correspondente Larry Rohter, do jornal The New York Times‘, o mesmo que publicou uma matéria a respeito de um suposto hábito de beber do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em maio deste ano.

Na ocasião, a repercussão da matéria ganhou projeção nacional e internacional porque o governo brasileiro chegou a pedir a revogação do visto do jornalista no país como forma de punição, mas acabou desistindo diante da imagem negativa da medida.

A exemplo da matéria anterior, o texto ‘Plano para domar jornalistas apenas os revolta no Brasil’, cuja tradução é de George El Khouri Andolfato e pode ser consultado no link (http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/nytimes/2004/
09/06/ult574u4459.jhtm
), publicada pelo NYTimes em 6/9, demonstra a falta de critério do profissional americano e de seus editores.

Não pretendo retomar as questões envolvendo o projeto de criação do CFJ, que já foi alvo de debate neste espaço e que merece uma ampla discussão de forma apropriada devido à importância da proposta e à necessidade de ajustes no texto original. Por isso, vou me ater aos conceitos técnicos utilizados pelo correspondente durante a produção de seu material e que podem ser facilmente observados em seu texto final.

Ao ler o material, a primeira sensação que se tem é que o texto não passa de uma matéria ‘cozinhada’ [jargão para definir que o texto foi reescrito e teve como base matéria publicada em outro(s) veículo(s) de comunicação], o que desqualifica em boa parte a credibilidade do profissional por dois motivos: 1) não creditou a(s) autoria(s) do texto original e, 2) não apresentou qualquer tipo de comprometimento em apurar os fatos como sugere qualquer manual básico de redação.

Questões éticas ou a ausência delas

Uma leitura um pouco mais atenta nos remete ao questionamento dos conceitos éticos que são exigidos de um profissional de imprensa, principalmente sendo correspondente de um dos veículos de comunicação mais conceituados dos EUA.

De acordo com Eugênio Bucci, em seu livro Sobre Ética e Imprensa (Companhia das Letras, 2003), o jornalismo moderno precisa estar organizado de forma a garantir os interesses da população.

‘A liberdade de imprensa, a propósito, é um princípio assegurado não por eles, jornalistas, mas pela sociedade, que deles precisa para mediar a comunicação pública. Do mesmo modo, está no fundamento da ética jornalística, qualquer que seja a sua acepção, a defesa da liberdade, da verdade, da justiça, da pluralidade de opiniões e de pontos de vista, e da vigilância dos atos do governo. De forma que o que pode haver de melhor na imprensa é aquilo que contribua para o aperfeiçoamento dos princípios e dos valores sobre os quais repousa a sua própria liberdade. É claro que pode haver publicações e programações de rádios e TV sob regimes despóticos, mas o espírito do jornalismo, tal qual ele foi gerado pelas revoluções que entregaram o poder ao cidadão (e ao povo), só faz sentido quando conjugado com o projeto democrático’. (Bucci, 2003, p. 18-19)

Tomando como base as observações de Bucci e fazendo um paralelo com o texto publicado pelo New York Times, alguns fundamentos básicos como ‘pluralidade de opiniões e de pontos de vista’ foram ignorados pelo repórter e deixaram de ser exigidos pelos seus editores.

Isso fica claro ao observar que, em nenhum momento, houve a preocupação de buscar e ouvir uma fonte favorável ao projeto. O texto reproduz exatamente o tom do título ao induzir o leitor de que existe uma unanimidade contra o projeto. Não disponho de dados para estabelecer um parâmetro entre os favoráveis e os contrários, mas é de conhecimento público que existe uma parcela – pelo menos nos quadros da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e nos sindicatos – favorável à criação do CFJ.

Conceitos e valores

Diante desse quadro, é possível observar outro ponto frágil na produção do repórter Larry Rohter ao abordar o tema. Ele abusa dos conceitos e valores formados com base no noticiário nacional e traça uma narrativa ‘viciada’ ao tomar como base elementos paralelos como a questão da Agência Nacional de Cinema e Audiovisual e os escândalos envolvendo membros do governo, como o ex-assessor da Casa Civil Waldomiro Diniz e o presidente do Banco Central.

Esses fatos teriam uma relevância muito maior se tivesse ocorrido uma contextualização por meio de uma análise política do governo Lula. No entanto, esses ‘fragmentos’ só reforçam a sensação de direcionamento da matéria.

O mexicano Adolfo Sánchez Vázquez afirma em Ética (Civilização Brasileira, 2004) que os valores são criados e desenvolvidos pelo homem e para o homem, ou seja, suas referências seguem objetivos, padronizações sociais e interesses específicos de acordo com a situação histórica, política ou cultural de seu meio.

‘Nem o objetivismo nem o subjetivismo conseguem explicar satisfatoriamente a maneira de ser dos valores. Estes não se reduzem às vivências do sujeito que avalia, nem existem em si, como um mundo de objetos independentes cujo valor se determina exclusivamente por suas propriedades naturais objetivas. Os valores existem para um sujeito, entendido não no sentido de mero indivíduo, mas de ser social; exigem também um suporte material, sensível, sem o qual não têm sentido. É o homem – como ser histórico-social e com a sua atividade prática – que cria os valores e os bens nos quais se encarnam, independente dos quais só existem como projetos ou objetos ideais. Os valores são, pois, criações humanas, e só existem e se realizam no homem e pelo homem. (Sánchez Vázquez, 2004, p. 146)

Apoiando-se nas observações do autor e fazendo uma rápida reflexão com base no texto publicado pelo correspondente do The New York Times, vemos que não ocorreu a visão do ser ‘social’ e sim do indivíduo com base em suas vivências.

Essa ocorrência serve como um exemplo do que deve ser descartado se o objetivo é produzir um jornalismo informativo e plural. A observação e vivência do repórter devem colaborar para o aprimoramento da apuração e para a busca da diversidade editorial, não para influenciar no conteúdo da matéria que está sendo produzida.

Dèjá vu

Esse episódio envolvendo o New York Times não é um caso isolado nem representa uma novidade para quem acompanha os meios de comunicação. Infelizmente, alguns elementos como a pressão pelo furo, a busca pelo fato ‘sensacionalista’ e a facilidade dos recursos da era digital, entre outros, estão influenciando o jornalismo contemporâneo de forma negativa.

Por outro lado, a percepção dessas falhas deve servir de subsídio para uma reflexão do que os profissionais pretendem transformar o exercício da profissão. Fatos como esse não se diferem em nada da manobras históricas de magnatas da comunicação como Charles Foster Kane e Assis Chateaubriand, que acabaram se tornando referências folclóricas devido ao seu pragmatismo.

Da mesma forma que nos remete a situações constrangedoras como as não menos históricas coberturas do comício das Diretas Já, na praça da Sé, em São Paulo, e da edição do debate entre Collor e Lula, na campanha de 1989. Nos dois casos, a Rede Globo transformou os fatos em versões.

Recentemente, tivemos os acontecimentos envolvendo o repórter Jayson Blair, do próprio New York Times, e o caso do USA Today, no quais foram confirmadas a manipulação das informações e a publicação de históricas fantasiosas.

Esses exemplos são meramente ilustrativos, já que não podemos ignorar que também ocorrem falhas e abusos em nossos veículos de comunicação. No entanto, a superficialidade do texto publicado pelo correspondente Larry Rohter deve servir de alerta para evitarmos que as exceções se transformem em regra.

Afinal, o jornalismo e a liberdade de imprensa, como bem definiu Eugênio Bucci, é um bem ‘assegurado pela sociedade’. Se o exercício da profissão perder esse apoio por falta de credibilidade, estaremos todos fadados a viver de factóides e não de fatos.

Referências:

BUCCI, E. Sobre Ética e Imprensa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

ROHTER, L. Plano para domar jornalistas os revolta no Brasil. The New York Times, 6/9/2004, tradução de George El Khouri Andolfato, disponível em (http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/
nytimes/2004/09/06/ult574u4459.jhtm
); acesso em 6/9/2004

SÁNCHEZ VÁZQUEZ, A. Ética, 25ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. Tradução de João Dell`Anna.

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Jornalista e professor dos cursos de Jornalismo do Imesb e da Unaerp