Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O formato e o vazio

Encerrada a primeira rodada de inauguração oficial da campanha eleitoral, nenhum dos ‘produtos’ agendados pela mídia (entrevistas da Rede Globo e debate da Rede Bandeirantes) provocou, no eleitor, a julgar pelas pesquisas, a menor alteração a respeito de suas tendências. Por certo, a inalterabilidade das intenções de voto não será por profunda convicção política. É mais fácil imaginar que a causa se origine na vacuidade do formato dos programas que, a pretexto de rígidas regras a atestarem a seriedade dos eventos, serve mesmo para alimentar o tédio dos receptores.

No razoável circuito de público com o qual lido diariamente, poucos foram os que acompanharam as programações ofertadas, principalmente no tocante ao ‘debate’ da TV Bandeirantes. Dentre os que a tudo assistiram (ou resistiram) – situo-me entre eles –, fizeram-no por injunções profissionais. Parece que a mídia e a classe política firmaram, há décadas, um pacto de conveniência mútua, e a ele se acomodaram. Nesse estéril formato congelado, nenhuma das partes se sente ameaçada por imprevistos, por apartes acalorados ou discursos mais radicais. Na base do um minuto para isso e dois minutos para aquilo, o que resta é um falatório de ineficiências de parte a parte que mais se assemelha a retórica de administrador de condomínio.

Terminada a ‘obrigação cívica’, a mídia finge haver cumprido seu papel de informar à população e a classe política finge haver desempenhado a função requerida pelo perfil de agente público. Na verdade, porém, tudo não passa de uma ‘estética cosmética’, variante do modelo talk show, agravado pela dissimulação da seriedade que camufla os ingredientes do verdadeiro produto de entretenimento.

Imperativo ético

Não bastasse o formato de sonífero, ainda se acresce o fato de candidatos se darem o direito de não comparecerem. De início, deixo claro que a crítica é extensiva a todos, bem como válida para o passado quanto para o presente. As ausências de Fernando Henrique Cardoso, quando então candidato à presidência, em 1994, e depois na condição de presidente-candidato, em 1998, e agora, em 2006, a de Luiz Inácio Lula da Silva, a exemplo da igual ausência de José Serra ao debate para o governo de São Paulo, por estratégia ou qualquer outra justificativa, não passam de desrespeito ao eleitor. Podem argumentar que não estão infringindo nenhuma lei. É fato. Não quer dizer, porém, que não incorram em fratura ética.

Quem almeja uma função pública de representação não tem o direito de omitir-se. Trata-se de imperativo ético. Afinal de contas, disputa eleitoral não é (ou não deveria ser) competição esportiva na qual se pensa a melhor estratégia para obtenção da vitória, mesmo que, para isso, se tenha de recorrer ao ‘antijogo’.

Algum cérebro marqueteiro, lá atrás, vislumbrou a chave mágica com a qual se abre (ou fecha-se) qualquer porta e, assim, sentenciou: ‘Quem está na frente das pesquisas só tem a perder, comparecendo a confrontos’. À astúcia do cérebro marqueteiro, uniu-se a percepção ardilosa do ‘cérebro político’ e pronto: a fórmula se converteu em norma. Frustra-se o eleitor e salva-se a sagacidade de plantão. Na inversão da lógica ética, covardia se transforma em virtude do vitorioso.

É óbvio que, com a ausência de quem seria naturalmente alvo do ataque dos demais concorrentes (e é natural que assim seja), o que fica é aquele quadro melancólico de conversinhas entre comadres cuja conseqüência outra não é senão a progressiva despolitização do eleitorado. Que lástima! No debate da Band, era pífio quando os candidatos se valiam de réplica e tréplica. Não havia nem uma nem outra. Perderam-se os fundamentos da retórica, se é que, algum dia, a estudaram. Apenas mais comentários de blablablá. Que fardo!

O jornalista-mediador, por sua vez, também faz o papel de passar recibo, fingindo conceder direito a réplica, que réplica não é, e assim por diante. Talvez o mais grave seja o fato de o público jovem interiorizar a idéia de que política é isso que ele vê: exposição de números, promessa de novos percentuais disso e daquilo e similares. Infelizmente, é provável que já o tenha percebido. Afinal, é o único cenário que o eleitorado jovem conhece, isto é, a indiferenciação total entre político e síndico.

‘Festa da democracia’

No que se refere ao formato dos programas, afora o que já foi pontuado nos parágrafos iniciais, não há o que se esperar nos próximos. As próprias assessorias dos candidatos, embora publicamente declarem o contrário, nas negociações com a direção das emissoras, tudo fazem para que nada se modifique. Falar em um minuto sobre educação, saúde, corrupção, habitação é tudo que eles desejam. A rigor, ninguém parece demonstrar ter algo a oferecer em termos de programa de governo. É pura falação oca.

Enfim, de vazio em vazio, enche-se a sacola da ‘festa da democracia’. Quem conhece um pouco a realidade de outros países bem sabe que a contenda política, no auge da campanha, se nutre de outras substâncias, próprias da verdadeira democracia. Quem sabe, um dia, também a essa teremos direito (ou não). Por enquanto, vamos suportando os ares amenos da suavidade tropical.

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio de Janeiro)